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TÂNIA MARA
FICHA TÉCNICA TÂNIA MARA DE MATOGROSSO 6ª Edição 2023 LENDAS DO PANTANAL - VOL. l A LENDA DO LOBISOMEM LOBO OU HOMEM Capa: Diego de Brito Ilustração: Paulo Costa Diagramação: Ruyolam Alves de Lima Revisão: Patrícia R C Gomes ISBN: 978-85-905081-1-5
Direitos autorais reservados a autora. Proibida reprodução para comercialização.
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LENDAS DO PANTANAL – VOL.VIII – A LENDA DO LOBISOMEM LOBO OU HOMEM
A LENDA DO LOBISOMEM, LOBO OU HOMEM Era noite de lua cheia e ventava muito. No silêncio da noite, ouvia-se o cantar dos grilos e dos sapos. Na casa da fazenda onde eu morava com os meus pais, avós e irmãos, havia uma cozinha enorme, a bica d’água passava por dentro da cozinha e do lado de fora, além do barulho da água, ouvia-se o tum, tum, tum do velho pilão. O pilão fora feito pelo meu bisavô. Antigo, rústico, forte. Vencia o tempo com muito rigor. E naquela noite de lua cheia, o meu avô começou a contar seus causos, lendas, contos do arco da velha, como costumávamos dizer. A lua, lá fora, parecia que aumentava cada vez mais, e nós, os familiares, ouvíamos tudo com muita atenção. O vovô sempre foi um excelente contador de causos. Mas sempre modificava, fazia suspense, nos deixava atentos e curiosos. Ele ria, gesticulava, caneca aloçada de café nas mãos.
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Impressionava, a cada instante, a nós e aos moradores da região. Esse é o meu avô. Contador de causos. Ele tem o seu banquinho feito por ele mesmo, de madeira, e o assento de couro trançado. Ele é um grande trançador, faz laços, chicotes, arreios. Tudo que é de couro. Também é boiadeiro, faz berrante e, para se divertir, é um alegre pescador. Faz um caldo de piranha como ninguém. O meu avô toma o pó de guaraná todos os dias. Ele disse que os pais dele bebiam e passaram dos cem anos. Eu gosto muito de conversar com o meu avô. Sou alegre, sadio e feliz porque moro no Pantanal, o meu paraíso e paraíso de muitos. Voltando aos causos do vovô. As duas grandes janelas da cozinha estavam abertas. Meus irmãos e eu estávamos com um pouco de medo por causa das histórias de meu avô. Principalmente quando ele contava sobre assombração e lobisomem. E naquela noite, vovô estava inspirado. A estória era sobre o lobisomem. Acho que ele aproveitou a lua que era cheia. Quanto mais ele contava, mais o medo aumentava. 5
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Lá fora, os cachorros começaram a latir. Tínhamos cinco cachorros: Pintado, Bolota, Guapo, Fominha e Sapeca. Os cachorros latiam tanto que o meu pai foi lá fora ver o que estava acontecendo. Olhou, nada viu, voltou e sentou-se para ouvir os causos do vovô. Novamente os cachorros latiam, agora mais perto de casa, e uns uivavam. Meu pai olhou da janela e nada viu. Mandou os cachorros ficarem quietos. - Passa, cachorro! Passa, cachorro! Então se ouviu um único uivo. Tão forte, tão forte que nos deu arrepio. Corremos e fechamos as janelas. Minha avó, com seu tercinho nas mãos, rezavam e faziam o sinal da cruz. O meu avô afirmou por várias vezes: “Isso não é nada. São os cachorros ou algum lobo. Vamos continuar com os nossos causos. Depois vamos dormir, porque a vida continua.” O meu avô contava que o lobisomem gostava de beirar as casas que tinham poleiros de galinha, filhotes de gatos e cachorros. Ele come a cabeça e deixa o corpo dos animais. Mas isso são lenda, e lendas são lendas. Lembrei que 7
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na varanda tinha uma ninhada de cachorrinhos. Pensei em sair para pegá-los. Tive medo. Falei para meu pai. - Vamos lá fora trazer os cachorrinhos aqui pra dentro? Nisso... Au, au, au, au, au, au! - Santo Deus! Vovô, o que é isto? - Acho que é o lobisomem. - Lobisomem? - E os cachorrinhos? O meu pai foi para o quarto pegar sua espingarda. Vovô fez o mesmo. Quando o meu pai foi abrir a porta, alguém gritou lá de fora. “So-cor-ro!” Um gemido estranho vinha lá de fora. “Socorro!” Ao mesmo tempo, os uivos começaram, e nós ficamos, por alguns minutos, quietos. Depois, “Socorro!”. Em seguida: au, au, au. “Papai, acho que o lobisomem está se transformando em lobo ou o lobo está se transformando em homem. Que confusão! E se ele passar por baixo de nossas pernas nós vamos virar lobisomem? Se ele nos morder ou arranhar também viramos lobisomem? 8
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Será que este lobisomem é grande ou pequeno? Peludo ou sem pelo?” Que noite, que horror, que medo! Minha mãe e avó pediam para ninguém abrir a porta. Mais uma vez a voz, agora rouca e fraca. “Ajude-me”, nisso o meu pai abriu a porta e no chão um homem caído, rasgado, sujo. O chapéu velho lhe tapava o rosto.
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Meu pai se abaixou para ajudar o homem. Era o capataz da outra fazenda de meu pai. Havia caído do cavalo, quebrou o pé, estava rasgado e sujo de tanto se arrastar no chão até chegar em nossa casa para pedir ajuda. Por um instante ficamos aliviados. Até nos esquecemos do lobisomem. O homem comeu, tomou um banho para fazer um curativo e tomou um sedativo para aguentar e passar a noite. Conversa vem, conversa vai, a noite foi passando. Mas os cachorros começaram a latir novamente e os cachorrinhos a gritar. Meu pai, enfezado, foi para fora de casa. Recolheu a ninhada de cachorrinhos e fomos dormir. Bem, nós tentamos dormir. Os cachorros latiam, as galinhas gritavam e logo os uivos. Meu avô e meu pai abriram a porta e saíram para fora, cada um com sua espingarda. Logo começaram a correr atrás de algo ou alguém. Corre daqui, corre dali, alguns tiros, depois silêncio. A nossa vontade era sair para fora pra ver o que estava acontecendo. De vez em quando, abríamos a janela, mas a escuridão era muita e nada
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enxergávamos. Tivemos que esperar. Nunca rezei tanto na minha vida. Fiz até promessa. Todos nós estávamos preocupados com vovô e papai. Será que o lobisomem comeu os dois? Ou será que os mordeu e os dois viraram lobisomem? A lua lá fora era gigantesca. De vez em quando a lua era encoberta por algumas nuvens. Então tudo escurecia. Aí o medo aumentava. E o meu pai e meu avô, por que demoravam tanto? Já era madrugada, minha mãe fez café pois ninguém conseguiu dormir. Lá fora o silêncio era total. Nós não sabíamos se o lobisomem estava atrás de meu pai e avô ou se eles estavam atrás do lobisomem. O galo cantou e logo surgiriam os primeiros raios de sol. Então ouvimos a voz de meu pai:
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“Corre para a moita de bananeira”. Nós abrimos a porta e fomos todos juntos e curiosos. O dia amanhecia com os primeiros raios de sol a iluminarem a terra.
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Então fomos ao encontro de papai e vovô no fundo do quintal. Os dois estavam parados, olhavam um para o outro e riam. - Papai, o senhor matou ou prendeu o lobisomem? - Não, ele se deitou de cansaço. Acho que a nossa pontaria não é boa. Ainda bem! E no meio da bananeira, trêmulo e cansado... Um lobo, lobo selvagem, faminto, cansado, assustado. E nós descobrimos que o lobisomem é uma lenda contada de geração para geração. Se existe, eu não sei, não vi e nem quero ver. O lobo, depois de descansar, voltou ao seu habitat natural, o pantanal. E eu, fiquei mais corajoso. A natureza vive sem o ser humano O ser humano não vive sem a natureza.
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