Direitos humanos em evidência - volume 2 | Mattos Filho 100% Pro bono Flipbook PDF

A segunda edição do livro Direitos humanos em evidência, analisa temas como enfrentamento à violência de gênero, direito

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Direitos humanos em evidência Volume 2

Coordenadoras Bianca dos Santos Waks Flavia Regina de Souza Oliveira

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Direitos humanos em evidência – volume 2 © 2022 Mattos Filho 1ª edição – 2022 Editora Edgard Blücher Ltda. Publisher Edgard Blucher Editor Eduardo Blucher Coordenação editorial Jonatas Eliakim Produção editorial Thaís Costa Preparação de texto Évia Yasumaru Diagramação Taís Lago Revisão de texto Danilo de Souza Villa Capa Leandro Cunha Ilustração da capa Linoca Souza

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP) ANGÉLICA ILACQUA CRB-8/7057

Rua Pedroso Alvarenga, 1245, 4° andar 04531-934 – São Paulo – SP – Brasil Tel.: 55 11 3078-5366 [email protected] www.blucher.com.br

Mattos Filho Direitos humanos em evidência II / Mattos Filho, Veiga Filho, Marrey Jr. e Quiroga Advogados. – 2 ed. - São Paulo : Blucher, 2022. 378 p. Bibliografia

Segundo o Novo Acordo Ortográfico, conforme 5. ed. do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, Academia Brasileira de Letras, março de 2009.

ISBN 978-65-5506-512-1 1. Direitos humanos - Legislação 2. Política pública (Direito) 3. Prisões 4. Direito à moradia I. Mattos Filho Advogados II. Mattos Filho, Ary Oswaldo III. Marrey Jr., Pedro Luciano IV. Veiga Filho, Otávio Uchôa da V. Quiroga Advogados

É proibida a reprodução total ou parcial por quaisquer meios sem autorização escrita da editora. Todos os direitos reservados pela EditoraEdgard Blücher Ltda.

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CDD 341.48 Índice para catálogo sistemático: 1. Direitos humanos

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Apresentação

A superação das desigualdades, do racismo estrutural, da discriminação e das diversas formas de violência constitui um desafio permanente para a efetivação dos direitos humanos no Brasil, país em que parcela considerável da população encontra enormes obstáculos para o efetivo acesso à justiça. Soma-se a esse desafio, a crise sanitária de grandes proporções provocada pelo coronavírus, cujos prejuízos sociais e econômicos afetaram de forma mais severa as populações historicamente marginalizadas. Nesse contexto, urge uma advocacia radicalmente comprometida com a sua função social e que se dedique não somente ao patrocínio de casos, mas também à formulação de teses, difusão de informações e perspectivas sobre os direitos humanos. Consciente desses desafios, o Mattos Filho oferece serviços jurídicos gratuitos há mais 20 anos e, em 2018, estruturou uma equipe 100% dedicada a casos de interesse público e impacto social. Neste momento, tem a satisfação de publicar o segundo volume de Direitos Humanos em Evidência, com novos estudos, memorandos e pareceres sobre temas presentes no dia a dia de seu trabalho pro bono. Elaborados entre 2019 e 2021, os textos abordam temas relacionados aos direitos das mulheres, da população LGBTQIAP+, de refugiados e imigrantes, aos direitos sexuais e reprodutivos, ao direito à segurança pública, ao trabalho digno, ao direito antidiscriminatório e, ainda, às prerrogativas para o exercício da advocacia. Escritos de forma colaborativa, interconectam as diferentes expertises jurídicas presentes no escritório que, somadas a pesquisas de outros campos do conhecimento, permitem que nossas equipes desenvolvam perspectivas críticas e soluções criativas para a garantia do acesso à justiça. Nosso objetivo é colaborar, de forma consistente, com a produção de conhecimento neste campo e fortalecer as lutas protagonizadas por organizações da sociedade civil e defensores de direitos humanos.

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1.1 Estrutura da publicação Direitos Humanos em Evidência – Vol. 2 traz um compilado de 11 textos, agrupados em sete temas: Direitos das Mulheres, Direito Antidiscriminatório, Refúgio e Migração, Trabalho Digno e Enfrentamento à Violência no Campo, Segurança Pública e Prerrogativas da Advocacia. No primeiro texto, inserido na seção dedicada aos Direitos das Mulheres, analisamos os direitos reprodutivos à luz da saúde materna no Brasil, a pedido do Center for Reproductive Rights. A pesquisa evidencia a compreensão da saúde materna sob a ótica dos direitos humanos, em perspectiva que vise diminuir não somente os índices de mortalidade materna, mas garantir que mulheres se tornem sujeitos ativos na reivindicação de seus direitos reprodutivos. Em seguida, a pedido da Defensoria Pública do Estado de São Paulo (DPE/ SP), realizamos extensa pesquisa normativa e jurisprudencial sobre o instituto dos alimentos gravídicos. O documento conclui que a aplicação do direito de família deve atentar à desigualdade de gênero existente na sociedade, uma vez que a sobrecarga de mulheres na posição de cuidado lhes impõe situação de desvantagem econômica. No texto “O instituto das imunidades parlamentares no ordenamento jurídico brasileiro: contribuição com o caso Barbosa de Souza e outros vs. Brasil”, contribuímos com as argumentações levadas pelo Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil) à audiência pública em julgamento na Corte Interamericana de Direitos Humanos. Nele, reforçamos que as imunidades parlamentares devem ser aplicadas a fatos estritamente relacionados à função parlamentar para que não constituam obstáculo à justiça, em especial nos casos de violência contra a mulher. Na última pesquisa relacionada aos direitos das mulheres, elaborada ao Núcleo Especializado de Promoção e Defesa de Direitos das Mulheres da DPE/ SP, evidenciamos que a violência de gênero é uma questão estrutural e presente em toda a sociedade, inclusive no ambiente universitário, e que políticas dedicadas ao seu enfrentamento devem preservar a autonomia das mulheres, evitar a revitimização e garantir um atendimento integral. O segundo tema, Direito Antidiscriminatório, apresenta inicialmente um parecer elaborado ao Núcleo Especializado de Defesa da Diversidade e da Igualdade Racial da DPE/SP. Ao longo do texto, analisamos se a rescisão de um contrato de locação de imóvel em função de intolerância religiosa contra praticantes de religião de matriz africana constituiria ilícito civil ou se seria direito do locador amparado pelo exercício de sua autonomia privada. Concluímos que a ótica dos direitos humanos deve prevalecer nas relações entre particulares e

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Apresentação

impossibilitar que a violação a tais direitos – no caso em debate, a intolerância religiosa – seja justificada pela autonomia privada. No texto seguinte, é apresentado o memorando elaborado à Human Rights Watch sobre o direito de acesso à educação sexual em sala de aula no contexto em que movimentos como o Escola Sem Partido têm apresentado projetos de lei que objetivam limitar o ensino sobre gênero e sexualidade em escolas brasileiras. O trabalho buscou destacar, à luz do direito nacional, o direito à liberdade de expressão e de cátedra em relação aos direitos LGBTQIA+. A regulação da situação migratória de venezuelanos no Brasil é tratada no tópico sobre Refúgio e Migração, que evidencia a compreensão da migração como direito humano, discorrendo sobre as variadas formas jurídicas pelas quais uma pessoa migrante pode se estabelecer no Brasil. O trabalho foi realizado, por meio do Programa Trust Law, à organização venezuelana Un Mundo Sin Mordaza. O tema Trabalho Digno e Enfrentamento à Violência no Campo, conta com dois pareceres elaborados ao Cejil. O primeiro evidencia a necessidade de intervenção estatal quando da verificação de trabalho análogo à escravidão como medida necessária de proteção aos direitos humanos. O segundo analisou os critérios de atualização monetária da pensão mensal vitalícia aos familiares das vítimas do caso Fazenda Ubá, em Acordo de Solução Amistosa celebrado com a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, cujo pagamento foi assumido pelo Estado do Pará como forma de garantir à família reparação material e moral. O texto reforça que questões envolvendo violações a direitos humanos devem garantir a interpretação mais favorável à dignidade da pessoa humana, sendo necessária, no caso discutido, a atualização monetária dos valores devidos de forma a beneficiar os familiares das vítimas da execução. O tema da Segurança Pública é tratado em memorando que discorre sobre os marcos normativos da atual política de segurança pública do Estado do Rio de Janeiro e suas consequências para a situação enfrentada pelos habitantes do Complexo da Maré. O texto defende a necessidade de participação popular na construção de uma política de segurança pública que efetivamente proteja direitos da população. O último tema, Prerrogativas da Advocacia, traz memorando elaborado à Law Society of England and Wales com análise da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça sobre casos relativos à proteção das garantias relacionadas ao exercício da advocacia, traçando paralelos com os Princípios Básicos sobre o Papel dos Advogados da ONU. O memorando evidencia que, mesmo sem terem sido formalmente internalizados pelo ordenamento jurídico brasileiro, os direitos e as garantias previstos no documento da ONU estão, em sua maioria, presentes em dispositivos legais já existentes no país.

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Conteúdo

Lista de Siglas e Abreviaturas ....................................................................  11 Direitos das Mulheres .....................................................................................  17 1. Direitos reprodutivos: a saúde materna no Brasil .............................  19 2. Pensão alimentícia como direito das mulheres: estudo sobre alimentos gravídicos .....................................................  65 3. O instituto das imunidades parlamentares no ordenamento jurídico brasileiro: contribuição com o caso Barbosa de Souza e outros vs. Brasil ................................................................................  91 4. Políticas de enfrentamento ao assédio e à violência de gênero em universidades ....................................................................  115

Direito Antidiscriminatório ........................................................................  175 5. Direito à indenização decorrente da rescisão unilateral de contrato de locação em razão de ato discriminatório ..................  177 6. Educação sexual em sala de aula no Brasil: a liberdade de cátedra para promoção e respeito à orientação sexual e identidade de gênero .......................................................................  197

Refúgio e Migração ...........................................................................................  221 7. Regulação da situação migratória de venezuelanos no Brasil ..........  223

Trabalho Digno e Enfrentamento à Violência no Campo ..........  239 8. O instituto da desapropriação em casos de trabalho análogo à escravidão e de propriedades localizadas em unidades de conservação ....................................................................................  241

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9. Reparações em função de violência no campo: pensão especial no Acordo de Solução Amistosa do caso nº 12.277 da CIDH/OEA .........................................................  257

Segurança Pública .............................................................................................  291 10. Memorando sobre Ação Civil Pública da Maré ..................................  293

Prerrogativas da Advocacia .........................................................................  331 11. Princípios básicos das Organizações das Nações Unidas sobre o papel da advocacia: jurisprudência nacional e internacional ......................................................................  333

Autores .....................................................................................................................  377

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Lista de Siglas e Abreviaturas

ACNUDH

Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos

Acnur

Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados

ACP

Ação Civil Pública

ADI

Ação Direta de Inconstitucionalidade

ADPF

Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental

AgR

Agravo Regimental

AL

Alagoas

Alerj

Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro

AM

Amazonas

ANS

Agência Nacional de Saúde Suplementar

BA

Bahia

BNCC

Base Nacional Comum Curricular

Bope

Batalhão de Operações Especiais

BPCHQ

Batalhão de Policiamento de Choque

CADH

Convenção Americana sobre Direitos Humanos

CDC

Código de Defesa do Consumidor

CDH

Comissão de Direitos Humanos e Participação Social

CE

Comissão de Educação

Cejil

Centro pela Justiça e Direito Internacional 11

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Direitos humanos em evidência

CF

Constituição Federal

CIDH

Comissão Interamericana de Direitos Humanos

CIDH/OEA

Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos

CMULHER

Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher

CNIg

Conselho Nacional de Migração

CNJ

Corregedoria Nacional de Justiça

Conare

Comitê Nacional para os Refugiados

Conitec

Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologia

Corte-IDH

Corte Interamericana de Direitos Humanos

CPF

Cadastro de Pessoa Física

CPI

Comissão Parlamentar de Inquérito

CRNM

Carteira de Registro Nacional Migratório

CRR

Centro de Direitos Reprodutivos

CSSF

Comissão de Seguridade Social e Família

DF

Distrito Federal

ECA

Estatuto da Criança e do Adolescente

EEG

Escola de Estudos de Gênero da UNC 

Engepar

Engepar Engenharia e Participações LTDA

EOAA

Office of Equal Opportunity and Affirmative Action de Columbia

ESF

Estratégia de Saúde da Família

ESP

Escola Sem Partido

ESUNESP

Estatuto dos Servidores Técnicos e Administrativos da Unesp

FGV

Fundação Getulio Vargas

FGV-Rio

Fundação Getulio Vargas do Rio de Janeiro

FGV-SP 

Fundação Getulio Vargas de São Paulo

FULP

Federação Universitária de La Plata

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Lista de Siglas e Abreviaturas

GAM

Grupamento Aeromóvel da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro

GPS

Global Position System

HC

Habeas Corpus

HUAP

Hospital Universitário Antônio Pedro

IBCCRIM

Instituto Brasileiro de Ciências Criminais

IBGE

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

ICMBio

Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade

IDDD

Instituto de Defesa do Direito de Defesa

IFCS

Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ

IN

Instrução Normativa

ITTC

Instituto Terra Trabalho e Cidadania

IUD

Dispositivo Intrauterino

LAG

Lei de Alimentos Gravídicos

LAUT

Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo

Law Society

Law Society of England and Wales

LGBTQIA+

Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros, Queer, Intersexuais, Assexuais

Mercosul

Mercado Comum do Sul

MG

Minas Gerais

MIT

Massachusetts Institute of Technology

MMC

Comitê de Mortalidade Materna

MPF

Ministério Público Federal

MPMS

Ministério Público de Mato Grosso do Sul

MPPR

Ministério Público do Paraná

MPRJ

Ministério Público do Rio de Janeiro

MPSP

Ministério Público do Estado de São Paulo

MPT

Ministério Público do Trabalho

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Direitos humanos em evidência

MS

Mato Grosso do Sul

Nuddir

Núcleo Especializado de Defesa da Diversidade e da Igualdade Racial

Nudem

Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres da Defensoria Pública do Estado de São Paulo

OAB

Ordem dos Advogados do Brasil

OAG

Observatório de Assuntos de Gênero da UNC 

OEA

Organização dos Estados Americanos

ONU

Organização das Nações Unidas

OPAS

Organização Pan-Americana da Saúde

PA

Pará

PACA

Colectivo Pares de Acompañamiento Contra el Acoso da Uniandes

PAD

Processo Administrativo Disciplinar

PAISM

Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher

PB

Paraíba

PCN

Parâmetros Curriculares Nacionais

PEC

Proposta de Emenda Constitucional

PGMD

Programa de Estudos de Gênero, Mulher e Desenvolvimento da UNC 

PGR

Procuradoria-Geral da República

PHPN

Programa de Humanização do Pré-Natal e do Parto

PIDCP

Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos

PIDESC

Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais

PMERJ

Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro

PNE

Plano Nacional de Educação

PNSIPN

Política Nacional de Saúde Integral da População Negra

PR

Paraná

Prouni

Programa Universidade Para Todos

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Lista de Siglas e Abreviaturas

PSB

Partido Socialista Brasileiro

PSOL

Partido Socialismo e Liberdade

PTI

Parecer Técnico

PUC-SP

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Rcl

Reclamação

RE

Recurso Extraordinário

RHC

Recurso Ordinário em Habeas Corpus

RJ

Rio de Janeiro

SAHA

University Sexual Assault and Harassment Advisor de Cambridge

SAPPE

Serviço de Assistência Psicológica e Psiquiátrica ao Estudante da Unicamp

SciencesPo

Institut d’Études Politiques de Paris

SDDH

Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos

SEI

Sistema de Informação Eletrônica

Sisconare

Sistema do Conare

Sistema IDH

Sistema Interamericano de Direitos Humanos

Snuc

Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza

Sorbonne

Sorbonne Université

SP

São Paulo

STA

Suspensão da Tutela Antecipada

Stanford

Stanford University

STF

Supremo Tribunal Federal

STJ

Supremo Tribunal de Justiça

SUS

Sistema Único de Saúde

SVR

Sexual Violence Response da Universidade de Columbia

TJMG

Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais

TJMS

Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul

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TJRJ

Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro

TJSP

Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

TRF1

Tribunal Regional Federal da 1ª Região

UB

Universitat de Barcelona

UBA

Universidad de Buenos Aires

UC

Unidade de Conservação

UCM

Universidad Complutense de Madrid

UFF

Universidade Federal Fluminense

UFMG

Universidade Federal de Minas Gerais

UFPE

Universidade Federal de Pernambuco

UFRJ

Universidade Federal do Rio de Janeiro

UnB

Universidade de Brasília

UNC

Universidad Nacional de Colombia

Unesp

Universidade Estadual Paulista

UNFPA

Fundo de População das Nações Unidas

Uniandes

Universidad de Los Andes

Unicamp

Universidade Estadual de Campinas

UNICEF

Fundo das Nações Unidas para a Infância

UNLP

Universidad Nacionalde La Plata

USP

Universidade de São Paulo

UTI

Unidade de Tratamento Intensivo

UWC

University-Wide Committee on Sexual Misconduct de Yale

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Direitos das Mulheres

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1. Direitos reprodutivos: a saúde materna no Brasil

Neste capítulo, apresentaremos a pesquisa elaborada ao Center for Reproductive Rights (CRR) em outubro de 2019 sobre legislação, projetos de lei, políticas públicas e jurisprudência brasileira relacionados à saúde materna. O seu objetivo foi colaborar com as estratégias de advocacy do CRR na América Latina, que atua na defesa dos direitos reprodutivos como direitos humanos fundamentais. A pesquisa evidencia a necessidade de compreensão da saúde materna sob a ótica dos direitos humanos, visando não somente diminuir índices de mortalidade materna, mas garantir que mulheres se tornem sujeitos ativos na reivindicação de seus direitos.

Introdução Este memorando foi preparado a pedido do Center for Reproductive Rights (CRR) para subsidiar as suas estratégias de advocacy sobre a saúde materna no Brasil.1 O relatório analisa quatro aspectos principais sobre o assunto no país: legislação, projetos de lei, políticas públicas e jurisprudência de janeiro de 2012 a julho de 2019.

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Amanda Rocha Vieira Tavares, Ana Paula Chudzinski Tavassi, Bárbara Correia Florêncio Silva, Beatriz Cristina de Araújo Perez, Bianca Lopes Rodrigues, Bianca dos Santos Waks, Bruna Caroline Hernández Neves, Camila Rozzo Maruyama, Fernanda Basaglia Teodoro, Gustavo Vieira de Sousa, Isabelle James Giordano Simões, Larissa Barcellos Carrasqueira Duarte, Laura Davis Mattar, Leticia De Conti Serec, Letícia Ueda Vella, Letícia Raquel Leme, Mariana Contreras Barroso, Mariana Guimarães Borborema Braga, Mariana Hiromi Sonoda, Rafael Edelmann de Oliveira Baptista, Renata Rothbarth. 19

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O trabalho adotou uma abordagem da saúde materna baseada nos direitos humanos, de acordo com as referências da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH),2 que não limita a análise sobre saúde materna apenas à redução da mortalidade e morbidez materna, mas busca garantir que mulheres sejam capazes de reivindicar seus direitos, exigindo a construção de políticas públicas pelo Estado.3 Essas referências também ressaltam que marcadores sociais tais como educação, acesso ao mercado de trabalho, acesso a métodos contraceptivos e acesso ao aborto podem agravar a discriminação e desigualdade vivenciadas por diferentes mulheres em muitos aspectos de sua vida.4 Considerando as necessidades do projeto desenvolvido pelo CRR, este documento limitou a análise à saúde materna na gestação, parto ou pós-parto e aos índices de mortalidade materna, uma vez que o Brasil avançou, mas não alcançou as metas internacionais estabelecidas. A análise é baseada em documentos produzidos pelo Estado brasileiro nessa temática, em trabalhos acadêmicos e materiais publicados por organizações da sociedade civil e universidades, dentre outros. O memorando contém (i) uma análise de como os diferentes níveis de legitimidade e aceitação social da maternidade estão relacionados às diferentes características das mães (raça, idade, orientação sexual, classe social e outros marcadores sociais relevantes); (ii) uma visão geral sobre legislação, projetos de lei, políticas públicas e jurisprudência relacionada à gravidez (assistência pré-natal), parto, pós-parto e mortalidade materna; e (iii) uma descrição das organizações da sociedade civil e instituições do Sistema de Justiça que realizam diferentes atividades relacionadas à saúde materna e aos direitos reprodutivos, com alcance local, regional, nacional ou global.

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ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Conselho de Direitos Humanos. Resolução n. 11/8. Preventable maternal mortality and morbidity and human rights. Doc. da ONU A/HRC RES/11/8, 11ª Sessão. Disponível em: https://www2.ohchr.org/english/issues/women/docs/A. HRC.21.22_en.pdf. Acesso em: 19 jul. 2019.

3

ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Conselho de Direitos Humanos. Summary reflection guide on a human rights-based approach to health: Application to sexual and reproductive health, maternal health and under-5 child health. Disponível em: https://www2.ohchr. org/english/issues/women/docs/A.HRC.21.22_en.pdf. Acesso em: 19 jul. 2019.

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YAMIN, Alicia Ely. Applying human rights to maternal health: UN Technical Guidance on rights-based approaches. International Journal of Gynecology and Obstetrics, v. 121, p. 190-193, 2013. Disponível em: https://www.law.utoronto.ca/utfl_file/count/documents/reprohealth/ ijgo-61_applying_hr_yamin.pdf. Acesso em: 19 jul. 2019.

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Direitos reprodutivos: a saúde materna no Brasil

1.1 Hierarquias reprodutivas: vulnerabilidades, direitos humanos e desigualdades maternas na saúde Do ponto de vista dos direitos humanos, a maternidade deve ser sempre voluntária, segura, socialmente apoiada e prazerosa.5 Entretanto, essa não é necessariamente uma descrição que se verifica na vivência de mulheres brasileiras que experimentam a maternidade. Apesar de sua notável dimensão individual – e considerando as marcantes desigualdades sociais do país6 ao lado da cultura racista e LGBTfóbica7 –, existem8 diferentes níveis de legitimidade e aceitação social das maternidades em sua pluralidade, que estão relacionados às características de cada mãe. Nesse sentido, a vivência da maternidade, enquanto um fenômeno social, é marcada por desigualdades sociais, raciais, étnicas e de gênero e, com base nessas questões, não é qualquer maternidade que é socialmente aceitável.9 A imagem de uma maternidade ideal tende a ser aquela em que a mãe é saudável, possui 20 ou 30 anos, casada ou em união estável monogâmica com parceiro masculino, com recursos financeiros e culturais suficientes e endereço fixo. Isso significa que tudo o que diverge desse ideal de construção social pode reduzir o nível de aceitação social da maternidade e, portanto, o respeito a ela e aos direitos humanos de seu bebê.10 5

MATTAR, L. D.; DINIZ, C. S. G. Hierarquias reprodutivas: Maternidade e desigualdades no exercício de direitos humanos pelas mulheres. Interface – Comunic., Saúde, Educ., v. 16, n. 40, pp. 107-119, jan./mar. 2012.

6

Segundo dados divulgados pela Oxfam Brasil em novembro de 2018, o Brasil é o nono país mais desigual do mundo em termos de renda. Fonte: OXFAM. País estagnado: Um retrato das desigualdades brasileiras. 2018. Disponível em: https://www.oxfam.org.br/ um-retrato-das-desigualdades-brasileiras/pais-estagnado/#:~:text=A%20roda%20da%20 redu%C3%A7%C3%A3o%20das,acontecendo%20ainda%20que%20timidamente%2C%20 recuou . Acesso em 26 set. 2022.

7

Um exemplo do impacto concreto do racismo estrutural dos países é a desigualdade de renda entre as raças, que sempre foi significativa e vem aumentando nos últimos anos. Ainda de acordo com o estudo da Oxfam, em 2018 a renda dos negros era de apenas 53% da renda dos brancos no país. Fonte: Ibidem. Sobre isso, ver também: https://noticias.uol.com.br/ cotidiano/ultimas-noticias/2019/02/20/brasil-matou-8-mil-lgbt-desde-1963-governodificulta-divulgacao-de-dados.htm.

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No Brasil, entre 2011 e 2018, houve um total de 4.422 homicídios motivados pela orientação sexual da vítima, o que corresponde a uma vítima fatal de homofobia a cada 16 horas. Os dados estão em: SOBRINHO, Wanderley Preite. Brasil registra uma morte por homofobia a cada 16 horas, aponta relatório. UOL, 2019. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ cotidiano/ultimas-noticias/2019/02/20/brasil-matou-8-mil-lgbt-desde-1963-governodificulta-divulgacao-de-dados.htm. Acesso em: 26 set. 2022.

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MATTAR, Laura Davis; DINIZ, Carmen Simone Grilo. Op. cit.

10 Ibidem. 21

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O exercício dos direitos reprodutivos pelas mulheres, portanto, é impactado pelas desigualdades de poder inerentes à nossa sociedade.11 Questões, como racismo, machismo, colonialismo, pobreza e outros fatores, como status de imigração, deficiência, identidade de gênero, saúde, orientação sexual e idade, podem afetar se as mulheres recebem ou não cuidados da saúde materna adequados.12 Desde que o movimento feminista começou a levar em consideração as interseccionalidades que permeiam a vida das mulheres13 na análise de suas experiências de maternidade e acesso à saúde materna, o discurso existente sobre direitos e saúde reprodutiva se transformou em um discurso de justiça reprodutiva. Como resultado, o acesso aos direitos reprodutivos começou a ser pensado a partir do discurso de justiça social e direitos humanos,14 passando-se a compreender que, como qualquer outro direito humano, uma decisão reprodutiva verdadeiramente livre depende do acesso a recursos materiais, sociais e políticos que estão distribuídos desigualmente.15 Dito isso, abordaremos aspectos que tendem a afetar as experiências da maternidade no Brasil como raça, idade, orientação sexual e classe social.

1.1.1 Raça Uma análise da saúde materna requer o reconhecimento do racismo como um dos principais responsáveis pelas desigualdades enfrentadas pelas mulheres negras brasileiras no acesso aos serviços públicos de saúde e ao exercício

11

ASIAN COMMUNITIES FOR REPRODUCTIVE JUSTICE. A new vision for advancing our movement for reproductive health, reproductive rights and reproductive justice. Disponível em: https:// forwardtogether.org/wp-content/uploads/2017/12/ACRJ-A-New-Vision.pdf. Acesso em: 19 jul. 2019.

12

ROSS, Loretta J. Reproductive justice as intersectional feminist activism. Souls: A Critical Journal of Black Politics, Culture, and Society, v. 19, n. 3: Combahee at 40: New Conversations and Debates in Black Feminism, p. 286-314, 2017. Disponível em: https://www.tandfonline. com/doi/pdf/10.1080/10999949.2017.1389634. Acesso em: 19 jul. 2019.

13

CRENSHAW, Kimberle. Demarginalizing the intersection of race and sex: A black feminist critique of antidiscrimination doctrine, feminist theory and antiracist politics. University of Chicago Legal Forum, n. 1, vol. 1989, n. 1, article 8. Disponível em: https://chicagounbound. uchicago.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1052&context=uclf. Acesso em: 19 jul. 2019.

14

ASIAN COMMUNITIES FOR REPRODUCTIVE JUSTICE. Op. cit.

15

CORREA, Sonia; PETCHESKY, Rosalind. Direitos sexuais e reprodutivos: Uma perspectiva feminista. DOI: https://doi.org/10.1590/S0103-73311996000100008. Acesso em: 19 jul. 2019.

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Direitos reprodutivos: a saúde materna no Brasil

adequado de seus direitos sexuais e reprodutivos.16 Essa realidade afeta diretamente a experiência da maternidade. Alguns dos problemas enfrentados pelas mulheres negras no Brasil são: esterilizações forçadas, altos índices de mortes maternas, violência obstétrica, atendimentos médicos de baixa qualidade, perda injustificada da guarda de seus filhos e filhas e a interrupção de sua maternidade pela morte violenta sistemática de seus filhos, jovens negros.17 Nos anos 1990, durante a criação do sistema público de saúde nacional, o Sistema Único de Saúde (SUS), o movimento negro brasileiro teve um papel central na garantia e ampliação do acesso aos serviços de saúde. Em 2007, o governo federal criou a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN),18 com o objetivo de promover a saúde da população negra e contribuir para a redução das desigualdades raciais por meio do enfrentamento ao racismo institucional e à discriminação na estrutura do SUS. Passados quase 13 anos da criação da PNSIPN, dados sobre raça no sistema público de saúde ainda demonstram que as mulheres negras estão entre as mais vulneráveis devido ao acesso dificultado aos serviços de saúde adequados.19 Estudos também demonstram que a gravidez e o parto de mulheres negras são marcados por violência institucional, racial e obstétrica. Em comparação com as mulheres brancas, as mulheres negras (i) correm maior risco de receber cuidados pré-natais inadequados, (ii) são mais propensas a não ter acompanhante durante o trabalho de parto; (iii) tendem a receber menos anestesia;

16

WERNECK, Jurema. Racismo institucional e saúde da população negra. Saúde soc. [online]. v. 25, n. 3, p. 535-549, 2016. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/sausoc/v25n3/ 1984-0470-sausoc-25-03-00535.pdf. Acesso em: 15 jul. 2019.

17

GÓES, Emanuelle. Mãe preta pode ser? Mulheres negras e maternidade. Geledés, 2016. Disponível em: https://www.geledes.org.br/mae-preta-pode-ser-mulheres-negras-ematernidade/. Acesso em: 15 jul. 2019

18

“O PNSIPN define os princípios, marca, objetivos, diretrizes, estratégias e responsabilidades de gestão que visam à melhoria das condições de saúde dessa população específica. Inclui ações de cuidado e atenção, promoção da saúde e prevenção de doenças, tanto quanto gestão participativa, participação popular e controle social, produção de conhecimento, educação permanente à saúde, profissionais da área de saúde para a promoção da equidade no acesso à saúde da população negra”. (BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. Política nacional de saúde integral da população negra.) SEPPIR: Brasília, 2017. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/ politica_nacional_saude_populacao_negra_3d.pdf. Acesso em: 16 jul. 2019.

19

THEOPHILO, Rebecca Lucena; RATTNER, Daphne; PEREIRA, Éverton Luís. Vulnerabilidade de mulheres negras na atenção ao pré-natal e ao parto no SUS: análise da pesquisa da Ouvidoria Ativa. Ciência & Saúde Coletiva. v. 23, n. 11, p. 3505-3516, 2018. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1413-812320182311.31552016. Acesso em: 15 jul. 2019. 23

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e (iv) precisam procurar mais de um hospital no momento do parto.20 Como resultado, os níveis de mortalidade materna são duas vezes e meia maiores entre as mulheres negras do que entre as brancas no Brasil.21 Em números precisos, apenas 55% das mulheres negras no ano de 2012 tiveram as sete consultas de pré-natal recomendadas pelo Ministério da Saúde, percentual abaixo da média nacional de 62,4%.22 O tempo de espera pelo atendimento é maior para mulheres negras/pardas (16,6%) se comparadas às brancas (14,5%). Além disso, 68% das mulheres negras/pardas não tiveram acompanhante no momento do parto e para mais de 50% delas, embora seja um direito previsto em lei, o motivo da ausência de acompanhante foi a recusa do serviço de saúde.23 Por fim, as mulheres negras são 62% das vítimas de mortes maternas no Brasil.24 Assim, conforme mencionado anteriormente, o racismo precisa ser reconhecido como aspecto central para determinar limites e possibilidades de uma vivência livre dos direitos sexuais e reprodutivos para mulheres negras, o que significa violações frequentes dos direitos humanos e a constante negação de uma experiência de maternidade segura, socialmente apoiada e prazerosa.25 Há décadas, o movimento de mulheres negras vem denunciando o uso de políticas de controle de natalidade para reduzir a população negra, como esterilizações forçadas26 e a imposição de métodos anticoncepcionais de longa duração.27 Em 2018, por exemplo, Janaína Quirino foi submetida a procedimento de 20

LEAL, Maria do Carmo et al. A cor da dor: Iniquidades raciais na atenção pré-natal e ao parto no Brasil. Cad. Saúde Pública [online]. v. 33, 2017. Disponível em: http://www.scielo. br/pdf/csp/v33s1/1678-4464-csp-33-s1-e00078816.pdf. Acesso em: 18 jul. 2019

21

Sistema de Informações sobre Mortalidade. Disponível em: http://tabnet.datasus.gov.br/ cgi/tabcgi.exe?sim/cnv/mat10uf.def. Acesso em: 16 jul. 2019.

22

CRIOLA; GELEDÉS. A situação dos direitos humanos das mulheres negras no Brasil: violências e violações. Geledés. Disponível em: https://www.geledes.org.br/wp-content/ uploads/2016/11/Dossie-Mulheres-Negras-PT-WEB3.pdf. Acesso em: 16 jul. 2019.

23

THEOPHILO, Rebecca Lucena; RATTNER, Daphne; PEREIRA, Éverton Luís. Op. cit.

24

CRIOLA; GELEDÉS. Op. cit.

25

É importante mencionar que, segundo Emanuelle Góes, a maternidade só é autorizada para mulheres negras quando praticada como substituta de outra mulher, geralmente mulheres brancas, em situações profissionais como babás ou amas de leite. GÓES, Emanuelle. Op. cit.

26 DAMASCO, Mariana Santos; MAIO, Marcos Chor; MONTEIRO, Simone. Feminismo negro: raça, identidade e saúde reprodutiva no Brasil (1975-1993). Rev. Estud. Fem. [online]. v. 20, n.1, p. 133-151, 2012. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-026X2012000100008&script=sci_abstract&tlng=pt. Acesso em: 16 jul. 2019. 27

WERNECK, Jurema. Ou belo ou puro? Racismo, eugenia e novas (bio)tecnologias. Disponível em: http://www.criola.org.br/artigos/artigo_ou_o_belo_ou_o_puro.pdf. Acesso em: 16 set. 2022.

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esterilização compulsória após determinação judicial deferida a pedido do Ministério Público.28 Mais recentemente, em 2019, um acordo governamental para a colocação compulsória de dispositivo anticoncepcional intrauterino (DIU) de longa duração em adolescentes que estão em centros de acolhida no município de Porto Alegre foi alvo de intensas críticas.29 Vale ressaltar que tal dispositivo não está disponível no SUS, uma vez que a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologia (Conitec) entende que não há evidências de sua eficiência e segurança em relação a outros métodos anticoncepcionais disponíveis. Além disso, o exercício da maternidade por mulheres negras está sob constante ameaça no Brasil. Mulheres negras constantemente têm a perda da guarda de seus filhos e filhas determinada judicialmente apenas por estarem em situação de vulnerabilidade social e têm sua maternidade interrompida pelos altos índices de homicídio de jovens negros no país.30 De acordo com o Atlas da Violência de 2018,31 a taxa de homicídios de jovens negros era duas vezes e meia maior do que a de não negros (16,0% versus 40,2%), enquanto a taxa de homicídios de mulheres negras era 71% superior à de não negras. Dados do Mapa da Violência 201632 confirmam as seguintes conclusões: enquanto o número de homicídios de jovens brancos caiu 32,3% de 2002 a 2012, o de jovens negros aumentou 32,4%. Por trás desses números estão milhares de mulheres negras, em sua maioria mães, que se esforçam, geralmente no isolamento e na solidão, para proteger seus filhos, tentando preservar suas vidas ou, após sua morte, tentando garantir

28

VIEIRA, Oscar Vilhena. Justiça, ainda que tardia: Moradora de rua teve esterilização determinada sem direito de defesa. Folha de S.Paulo, jun. 2018. Disponível em: https://www1. folha.uol.com.br/colunas/oscarvilhenavieira/2018/06/justica-ainda-que-tardia.shtml. Acesso em: 18 jul. 2019.

29 Mais informações em: THEMIS. Liminar suspende aplicação de DIU em jovens acolhidas, Themis – Gênero, Justiça, Direitos Humanos, abr. 2019. Disponível em: http://themis.org. br/liminar-suspende-aplicacao-de-diu-em-jovens-acolhidas/. Acesso em: 16 jul. 2019. 30 CLÍNICA DE DIREITOS HUMANOS LUIZ GAMA. Primeira infância e maternidade nas ruas da cidade de São Paulo. São Paulo: Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2017. Disponível em: https://www.neca.org.br/wp-content/uploads/Primeira-infanciae-maternidade-nas-ruas-de-SP-CDH-LG.pdf. Acesso em: 19 ago. 2019. 31

INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA; FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Atlas da violência 2018. Rio de Janeiro: IPEA, FBSP, 2018. p. 40 Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/relatorio_institucional/180604_atlas_ da_violencia_2018.pdf.

32 FLACSO. Mapa da violência: Homicídios por armas de fogo no Brasil. Disponível em: https:// www.mapadaviolencia.org.br/pdf2016/Mapa2016_armas_web.pdf. Acesso em: 16 set. 2022. 25

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dignidade de tratamento aos jovens assassinados para enterrar seus corpos e buscar reparação e justiça.33 Os dados apresentados indicam que o acesso das mulheres negras à saúde materna é marcado por inúmeras desigualdades em decorrência das hierarquias reprodutivas presentes na sociedade. O racismo, como um dos principais aspectos que estruturam a sociedade brasileira, é um fator determinante dentre as vulnerabilidades sociais e deve ser um ponto de partida para qualquer análise do exercício dos direitos reprodutivos das mulheres negras e das experiências de maternidade no país.

1.1.2 Idade Além da raça, uma segunda característica que determina a aceitação social da maternidade é a idade. De acordo com a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), entre 2010 e 2015, o Brasil teve a terceira maior taxa de fecundidade dentre adolescentes na região da América Latina e Caribe, estimada em 68,4 nascimentos a cada 1.000 meninas de 15 a 19 anos, em comparação com 66,5 nascimentos a cada 1.000 meninas na mesma faixa etária na região. A média do país também foi superior à média mundial, que foi de 46 nascimentos a cada 1.000.34 Para muitas adolescentes, a gravidez e o parto não são planejados nem desejados.35 Dados da pesquisa “Nascimento no Brasil: Inquérito Nacional sobre o Trabalho de Parto e Nascimento”, da Fundação Oswaldo Cruz, mostram que, entre 2011 e 2012, 66% das gestações de adolescentes foram indesejadas.36 Por sua vez, quando a maternidade na adolescência é desejada, tornar a gravidez mais segura para adolescentes mães e seus bebês é extremamente difícil: acesso tardio aos serviços de saúde materna e o enfrentamento do estigma ou

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CRIOLA; GELEDÉS. Op. cit.

34 OPAS. Acelerar o progresso em direção à redução da gravidez na adolescência na América Latina e no Caribe. Relatório de uma consulta técnica. Organização Pan-Americana da Saúde, Fundo das Nações Unidas para a População e Fundo das Nações Unidas para a Infância. Washington, DC, EUA, 29-30 ago. 2016. ISBN: 978-92-75-11976-1. Disponível em: https:// lac.unfpa.org/sites/default/files/pub-pdf/Accelerating%20progress%20toward%20the%20 reduction%20of%20adolescent%20pregnancy%20in%20LAC%. Acesso em: 22 set. 2022. 35 OMS. Gravidez adolescente. Fev. 2018. Disponível em: https://www.who.int/news-room/ fact-sheets/detail/adolescent-pregnancy. Acesso em: 27 ago. 2019. 36

FIOCRUZ. Nascer no Brasil. Inquérito nacional sobre parto e nascimento. Saúde Reprodutiva, 13(Supl. 3), 2016.

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rejeição por parte dos pais, profissionais de saúde e ameaças de violência são muito comuns.37 A gravidez na adolescência é uma grande preocupação do Brasil, uma vez que impacta a vida de adolescentes – especialmente meninas – em termos de saúde,38 sociais, econômicos e educacionais, já que continua sendo um dos principais fatores para a mortalidade materna e infantil e para os ciclos intergeracionais de saúde precária e pobreza.39 Um estudo nacional realizado em 2004 mostrou que adolescentes grávidas, especialmente as muito jovens (menores de 15 anos), demonstraram atraso para iniciar o pré-natal (48,2%) e realizam um menor número consultas pré-natais (48,3%),40 resultados também observados em outros estudos.41 Além disso, de acordo com o Ministério da Educação, em 2015, a gravidez na adolescência foi responsável por 18% da evasão escolar das meninas no Brasil.42 Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2013 indicam que apenas 24,8% das mães adolescentes voltaram à escola a fim de continuar sua educação.43 Finalmente, a mortalidade materna é um fator relevante para análise da mortalidade de adolescentes no Brasil. Durante 2012, complicações na gravidez, parto e puerpério foram responsáveis por 4% das mortes de mulheres de 10 a 19 anos.

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OMS. A gravidez na adolescência. Fev. 2018. Disponível em: https://www.who.int/news-room/ Acesso em: 22 set. 2022.

38 Segundo a OPAS, o elevado risco de mortalidade materna “é resultado da exposição a fatores biológicos, como sistemas reprodutivos insuficientemente amadurecidos, e a fatores socioeconômicos e geográficos, como o fraco acesso aos cuidados de saúde em áreas rurais remotas, preconceito racial/étnico das minorias, estigma e pobreza” (OPAS; OMS. Implementação da estratégia e plano de ação regional para a saúde do adolescente e do jovem 2010-2018. Washington, DC, 2018). 39 OMS. A gravidez na adolescência. Op. cit. 40

VIELLAS, Elaine Fernandes et al. Assistência pré-natal no Brasil. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 30(Supl. 1), p. S85-S100, 2014. DOI: https://doi.org/10.1590/0102-311X00126013. Acesso em: 26 ago. 2019.

41

GAMA, S. G. N.; SZWARCWALD, C. L.; SABROZA, A. R.; BRANCO, V. C.; LEAL, M. C. Fatores associados à assistência pré-natal precária em uma amostra de puérperas adolescentes em maternidades do Município do Rio de Janeiro, 1999-2000. Cad. Saúde Pública, v. 20(Suppl), p. 101-111, 2004.

42

ABRAMOVAY, Miriam. Juventudes na escola, sentidos e buscas: Por que frequentam? Brasília: Flacso-Brasil, OEI, MEC, 2015.

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INDICA; UNICEF. vozes de meninas e de especialistas. Brasília: INDICA, 2017. 27

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No caso das mulheres de 15 a 19 anos, esses óbitos representaram 6,14% do total de óbitos, ocupando, para essa faixa etária específica, o sexto lugar entre as principais causas de morte.44 No Brasil, o impacto da gravidez indesejada na adolescência depende, em grande parte, de sua condição socioeconômica. Para adolescentes de classe média, a gestação e maternidade geralmente não representam fatores de ruptura em sua vida, embora possam atrasar sua carreira acadêmica. Por sua vez, entre adolescentes de baixa condição socioeconômica, o impacto é geralmente maior e contribui para a evasão escolar, menores níveis de escolaridade, dificuldade de acesso a oportunidades de emprego e, consequentemente, menores níveis de renda.45 De acordo com um estudo de caso realizado no estado da Paraíba, os principais fatores associados à gravidez indesejada na adolescência são: falta de consultas ginecológicas anteriores e falta de acesso a métodos contraceptivos.46 A gravidez na adolescência aumenta quando é negado às meninas o direito de tomar decisões sobre sua saúde sexual e reprodutiva e bem-estar, enfrentando barreiras ao acesso à contracepção e à obtenção de informações sobre o uso de métodos anticoncepcionais para garantir seu direito ao planejamento familiar. Nos últimos anos, as mudanças em relação à saúde reprodutiva e aos adolescentes são particularmente preocupantes.47 Por exemplo, em março de 2019, o governo proibiu ilustrações de cartilhas distribuídas a adolescentes que forneciam instruções sobre como usar preservativos.48 Além disso, houve 44 FUNDO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A POPULAÇÃO (UNFPA). A gravidez na adolescência: Uma revisão das evidências. Nova York: UNFPA, 2013. 45

ALMEIDA, Maria da Conceição Chagas; AQUINO, Estela M. L. O papel da escolaridade no padrão intergeracional da gravidez na adolescência no Brasil. International Perspectives on Sexual and Reproductive Health, v. 35, n. 3, p. 139-146, 2009. Disponível em: https:// repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ri/13082/1/3513909-1.pdf. Acesso em: 27 ago. 2019.

46

AMORIM, Melania Maria Ramos et al. Fatores de risco para a gravidez na adolescência em uma maternidade-escola da Paraíba: estudo caso-controle. Rev. Bras. Ginecol. Obstet., Rio de Janeiro, v. 31, n. 8, p. 404-410, ago. 2009. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo. php?script=sci_arttext&pid=S0100-72032009000800006&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 26 ago. 2019.

47

CASTRO, Marcia et al. Sistema Único de Saúde no Brasil: Os primeiros 30 anos e perspectivas para o futuro. The Lancet, v. 394, n. 10195, p. 345-356, 27 jul. 2019. Disponível em: https://www. thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(19)31243-7/fulltext. Acesso em: 27 ago. 2019.

48

FERREIRA, Paula; GRANDELLE, Renato. Bolsonaro sugere que pais rasguem páginas sobre educação sexual de Caderneta de Saúde da Adolescente. O Globo, mar. 2019. Disponível em: https://oglobo.globo.com/sociedade/bolsonaro-sugere-que-pais-rasguem-paginassobre-educacao-sexual-de-caderneta-de-saude-da-adolescente-23506442. Acesso em: 28 ago. 2019.

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maior atuação do Movimento Escola Sem Partido,49 que tem por objetivo coibir discussões sobre identidade de gênero, diversidade, educação sexual e política nas escolas.50

1.1.3 Orientação sexual e identidade de gênero Desde o fim da ditadura militar, o governo brasileiro introduziu inúmeras leis e políticas destinadas a melhorar o reconhecimento dos direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros, Queer, Intersexuais, Assexuais (LGBTQIA+).51 Em 1996, o Brasil foi um dos primeiros países a oferecer medicamentos antirretrovirais gratuitos às pessoas com HIV.52 Em 2011, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a união de pessoas do mesmo sexo e, em 2018, decidiu que as pessoas transgêneras têm o direito de mudar seu nome e gênero no registro civil sem fazer cirurgias de modificações corporais.53 Finalmente, em 2019, o STF decidiu que a lei que regula os crimes raciais deveria ser aplicada à homofobia e à transfobia até que o Congresso Nacional aprovasse uma legislação sobre o assunto.54 Homens e mulheres que rompem as expectativas sociais de expressão de gênero e sexualidade no Brasil estão particularmente expostos a situações de

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O movimento Escola sem Partido surgiu em 2004 e provocou uma disputa de narrativas na rede sobre o modelo ideal de educação. Eles lutam “pela descontaminação e desmonopolização política e ideológica das escolas”, “pelo respeito à integridade intelectual e moral dos alunos” e “pelo respeito ao direito dos pais a uma educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções” (mais informações disponíveis em: http://www. escolasempartido.org/. Acesso em: 25 ago. 2019).

50 Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/internacional/en/saopaulo/2018/12/sexeducation-takes-aim-at-disease-and-teen-pregn-but-bolsonaro-planeja-para-expungeit.shtml. Acesso em: 22 set. 2022. 51

CARRARA, Sergio. Discriminação, políticas e direitos sexuais no Brasil. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 28, n. 1, p. 184-189, jan. 2012. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo. php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2012000100020&lg=en&nrm=iso. Acesso em: 25 ago. 2019.

52 PARKER, Richard. Os 20 anos de luta para acesso universal ao tratamento do HIV no Brasil e no mundo. São Paulo: ABIA, 2017. Disponível em: http://abiaids.org.br/wp-content/ uploads/2017/11/Publicação-Acesso-a-Medicamentos_ABIA_site.pdf. Acesso em: 25 ago. 2019. 53

Disponível em: https://www.nytimes.com/2016/07/06/world/americas/brazil-anti-gayviolence.html. Acesso em: 28 ago. 2019.

54

Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/vernoticiadetalhe.asp?idconteudo=414010. Acesso em: 25 ago. 2019. 29

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discriminação.55 Enfrentamos uma verdadeira epidemia de violência contra pessoas LGBTQIA+: o Brasil é considerado um dos países que mais mata pessoas LGBTQIA+ no mundo. De acordo com o Grupo Gay da Bahia,56 houve 420 mortes de pessoas LGBTQIA+ registradas no Brasil durante 2018, incluindo 100 suicídios. A organização estima que ocorreu um assassinato a cada 20 horas.57 Como resultado, embora no Brasil houvesse em 2010 pelo menos 58 mil famílias autodeclaradas LGBT,58 a sociedade não tem sido capaz de fornecer um apoio adequado e efetivo à parentalidade LGBTQIA+. Esse número provavelmente está subestimado, uma vez que dados coletados nas estatísticas do registro civil de 2017, realizadas pelo IBGE, mostraram que o casamento entre pessoas do mesmo sexo aumentou 10% em relação a 2016,59 resultado também observado em estudos anteriores.60 No Brasil, estudos retratam duas possibilidades para a parentalidade LGBT: acesso a métodos conceptivos e adoção.61 A adoção passou a ser reconhecida na sociedade e ganhou espaços de discussão, ampliando a visão sobre as possibilidades de constituição familiar.62 Embora não haja legislação específica para regulamentar essa questão no Brasil, em 2010, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) concedeu pela primeira vez o direito de adoção a um casal de lésbicas e, desde então, a jurisprudência tende a reconhecê-lo para outros casais também.63 No entanto, as barreiras relacionadas à discriminação devido à orientação sexual ainda existem e a

55 Disponível em: https://www.nytimes.com/2016/07/06/world/americas/brazil-anti-gayviolence.html. Acesso em: 28 ago. 2019. 56

O Grupo Gay da Bahia é um antigo grupo brasileiro de direitos humanos LGBT.

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GRUPO GAY DA BAHIA. População LGBT morta no Brasil. Relatório GGB 2018. Rio de Janeiro, 2018. Disponível em: https://homofobiamata.files.wordpress.com/2019/01/relatorio-2018-1. pdf. Acesso em: 25 ago. 2019.

58 IBGE. Censo demográfico 2010: Nupcialidade, fecundidade e migração – Resultados da amostra. Rio de Janeiro: Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, 2017. 59 IBGE. Estatísticas do registro civil 2017. São Paulo, 2018. Disponível em: https://biblioteca. ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/135/rc_2017_v44_informativo.pdf. Acesso em: 25 ago. 2019. 60 Dados coletados em Estatísticas do Registro Civil de 2016-2011. 61

RUIZ, Juliana Machado et al. Gênero e adoção no contexto brasileiro: Uma revisão integrativa da literatura científica. Trends Psychol., Ribeirão Preto, v. 27, n. 2, p. 293-308, jun. 2019. DOI: http://dx.doi.org/10.9788/TP2019.2-01. Acesso em: 25 ago. 2019.

62 Ibidem. 63

MIGALHAS. STJ permite adoção de crianças por casal homossexual. Migalhas Quentes, abr. 2010. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI106245,81042-STJ+per mite+adocao+de+criancas+por+casal+homossexual. Acesso em: 25 ago. 2016.

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adoção por casais LGBTQIA+ pode se tornar mais difícil do que se o procedimento for realizado por um casal heterossexual. Quanto à reprodução assistida, infelizmente, há poucos investimentos públicos, o que geralmente causa longas listas de espera no sistema público de saúde e limita o acesso aos métodos de concepção apenas aos casais heterossexuais inférteis. A par dos custos consideravelmente elevados para tais tratamentos em clínicas privadas, o acesso de casais LGBTQIA+, especialmente casais de lésbicas, a esse método tende a ser dificultado ou, pelo menos, limitado.64 Mesmo quando a adoção ou reprodução assistida é possível, outras barreiras permanecem: (i) acesso a cuidados de saúde por mães lésbicas, (ii) nomeação de ambos os pais/mães nas certidões de nascimento e, finalmente, (iii) igualdade de acesso à licença-maternidade e paternidade. Apesar dos avanços obtidos após a criação em 2011 da chamada Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais,65 mulheres lésbicas enfrentam desafios específicos no acesso aos cuidados de saúde, incluindo barreiras sociais, políticas e econômicas.66 Segundo a Rede Feminista de Saúde, em 2006, 40% das mulheres lésbicas não revelavam sua orientação sexual durante as consultas de saúde. Entre as que revelam, 28% relatam consultas médicas mais rápidas e 17% afirmam que os profissionais de saúde não pedem exames que consideram importantes.67 O mesmo se aplica às mulheres lésbicas grávidas: elas enfrentam muitas dificuldades com a assistência à maternidade no Brasil. Uma vez que a prestação de cuidados obstétricos tem sido historicamente baseada no pressuposto da heterossexualidade,68 as lésbicas relatam algumas situações desconfortáveis envolvendo os profissionais de saúde durante a concepção, gravidez, parto e pós-parto: presunção da heterossexualidade, dúvidas ou questionamentos 64

RODRIGUES, Tamy. Maternidade lésbica: Os métodos, as escolhas, os custos e a burocracia. Os caminhos para ser mãe sendo uma mulher lésbica, maio 2018. Disponível em: https:// azmina.com.br/especiais/maternidade-lesbica/. Acesso em: 18 jul. 2019.

65

BRASIL. Ministério da Saúde. Política nacional de saúde integral de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. Brasília, 2013. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_nacional_saude_lesbicas_gays.pdf. Acesso em: 25 ago. 2019.

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REDE NACIONAL FEMINISTA DE SAÚDE, DIREITOS SEXUAIS E DIREITOS REPRODUTIVOS. Rede Feminista de Saúde. Dossiê saúde das mulheres lésbicas: Promoção de equidade e da integralidade. São Paulo: Fundação Ford, UNFPA, 2006.

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BUSHE, Sierra; ROMERO, Iris L. Lesbian pregnancy: Care and considerations. Semin. Reprod. Med. v. 35, n. 5, p. 420-425, 2017. DOI: 10.1055/s-0037-1606385. Epub 2017, 26 out. 31

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sobre a legitimidade das relações dos casais e alguns casos de discriminação e violação de direitos.69 Além disso, até 2016, a nomeação de ambos os pais ou mães na certidão de nascimento dependia exclusivamente de decisões judiciais. A Corregedoria Nacional de Justiça publicou o Provimento nº 52/2016, que regulamenta a emissão de certidão de nascimento para crianças concebidas por meio de reprodução assistida ou nascidas de mãe substituta, o que significa que casais do mesmo sexo que desejam ter seus nomes na certidão de nascimento dos filhos podem fazê-lo.70 Além disso, em 2017, o CNJ publicou o Provimento nº 63/2017,71 instituindo o procedimento de reconhecimento extrajudicial da parentalidade socioafetiva, que é a relação de afiliação baseada exclusivamente nos laços afetivos entre pai/mãe e filho, uma vez que não há vínculo biológico entre eles. A lei também facilitou a inclusão dos nomes dos pais nas certidões de nascimento. Embora essas normativas buscassem reduzir as barreiras durante o registro civil, elas não foram suficientes para resolver o problema. Os pais socioafetivos só são reconhecidos após um determinado período e, no caso de reprodução assistida, é necessário ter “declaração da clínica de reprodução, do posto de saúde ou do centro de reprodução humana, assinada pelo seu diretor e/ou pelo médico assistente, relacionando as técnicas utilizadas e seus destinatários”. Por fim, outra preocupação para a população LGBTQIA+ é a licença-maternidade e paternidade. A legislação brasileira prevê licenças de maternidade (120 a 180 dias) e paternidade (5 a 20 dias), mas não há previsão legal para a situação de duas mães ou de dois pais. Com exceção das empresas que adotaram formalmente a licença parental, inclusive para pais/mães homossexuais e adotivos, normalmente, apenas uma mãe tem licença-maternidade e a outra, no máximo, terá seus direitos iguais à concessão da licença-paternidade ou apenas uma. A concessão de licença a ambas as mães, portanto, depende de uma análise caso a caso pelos empregadores.72 69

CARVALHO, Paula Galdino Cardin de. Homoparentalidade feminina: Nuances da assistência à saúde durante concepção, gravidez, parto e pós-parto. 2019. Tese (Doutorado) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/6/6136/tde-12042018-143259/publico/PaulaGaldinoCardindeCarvalhoSIMPLIFICADA. pdf. Acesso em: 29 ago. 2019.

70

Disponível em: http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2016/03/6bd953c10912313a24633f1a1e6535e1.pdf. Acesso em: 22 set. 2022.

71

Disponível em: http://www.cnj.jus.br/files/atos_administrativos/provimento-n-63-14-11 -2017-corregedoria.pdfAcesso em: 22 set. 2022.

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BRASIL. Ministério da Saúde. Política nacional de saúde integral de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. Op. cit.

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Os dados apresentados permitem concluir que a compreensão do que se considera família deve ser questionada no Brasil, destacando a necessidade de ampliar os significados do arranjo familiar para além da tradição heteronormativa. Ainda há muito a ser feito para que se avance na efetiva implementação de políticas públicas com o objetivo de estabelecer serviços de saúde que atendam às demandas específicas da população LGBTQIA+.

1.1.4 Classe social De acordo com a renda, é possível dividir a população feminina brasileira em dois grupos: um formado por aquelas, que têm acesso a plano de saúde privado, que representa 30% das mulheres brasileiras; e um segundo formado pelos 70% restantes das mulheres, que dependem exclusivamente do SUS.73 Embora existam desafios para o exercício dos direitos humanos relacionados à maternidade pelas mulheres nos sistemas de saúde público e privado no Brasil,74 os problemas relacionados ao sistema público tendem a ser mais graves, portanto, afetando principalmente as mulheres mais pobres. São dois exemplos emblemáticos: (i) a falta de continuidade do acompanhamento médico pelo mesmo profissional durante o pré-natal e parto e (ii) a peregrinação das mulheres para recebimento de atenção obstétrica adequada no momento do parto. Em relação ao primeiro, geralmente o médico que acompanha o pré-natal da gestante não é o mesmo que a assiste no parto. Mais comumente, as mulheres recebem atendimento pré-natal na unidade de saúde do seu território, mas serão assistidas durante o parto pelo médico que está de plantão no momento em que ela chega ao hospital em trabalho de parto. Quanto ao segundo, muito frequentemente, o hospital de escolha da mulher não possui leitos disponíveis para interná-la quando ela chegar (geralmente já durante o trabalho de parto), o que significa que terá que fazer mais de uma tentativa (e, não raramente, várias) para encontrar um hospital capaz de recebê-la. Isso tem

73

DINIZ, S. G.; CHACHAM, A. S. O “corte por cima” e o “corte por baixo”: O abuso de cesáreas e episiotomias em São Paulo. Questões de Saúde Reprodutiva, v. I, n. 1, p. 80-91, 2006.

74

Por exemplo, existe um elevado número de intervenções médicas desnecessárias durante o parto no Brasil, considerando os sistemas de saúde público e privado. A episiotomia é realizada em mais de 50% das mulheres que dão à luz, o que é cinco vezes a taxa esperada pela OMS, e o Brasil tem o segundo maior índice de cesáreas do mundo. Veja: https:// pre-textouel.com/2017/06/02/episiotomia-ainda-e-comum-no-brasil/ e https://www1. folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2018/10/brasil-e-o-segundo-pais-com-maior-taxade-cesareas-do-mundo.shtml. Acesso em: 15 jul. 2019. 33

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sido chamado de “peregrinação obstétrica” e tem sido relacionado à grande parte das mortes maternas.75 Portanto, é importante considerar as violências vivenciadas por mulheres em razão de sua classe social76 – denominada por alguns estudos críticos de “criminalização da pobreza” –, que tente a estigmatizar também a maternidade.77

1.1.5 Outros marcadores sociais relevantes Além dos marcadores sociais já mencionados, variantes como condições de saúde, uso de álcool e drogas, status migratório e antecedentes criminais criam outros “níveis” de legitimação social da maternidade. Quanto maior a interseccionalidade e mais aspectos considerados negativos, pior é a experiência da maternidade.78 Fica clara, portanto, a urgência de políticas públicas que garantam as condições adequadas ao exercício da maternidade. Isso pode ser alcançado por meio da implementação de políticas que considerem as múltiplas vulnerabilidades que permeiam a vida das mulheres e proporcione os meios necessários para que toda e qualquer maternidade seja socialmente amparada.

1.2 Gravidez (cuidados pré-natais), parto e pós-parto Nos últimos anos, o Brasil tem obtido alguns avanços em relação à saúde materna: o atendimento pré-natal atinge 98,6% de cobertura e a realização de 75

DINIZ, S. G.; CHACHAM, A. S. Op. cit. Veja também: BITTENCOURT, S. D. A. et al. Adequacy of public maternal care services in Brazil. Saúde Reprodutiva. Nascimento de crianças no Brasil. Disponível em: https://reproductive-health-journal.biomedcentral.com/articles/10.1186/ s12978-016-0229-6. Acesso em: 15 jul. 2019.

76

Disponível em: https://www.rioonwatch.org/?p=30636. Acesso em: 15 jul. 2019.

77

MATTAR, Laura Davis; DINIZ, Carmen Simone Grilo. Op. cit.

78 Ibidem. Veja também: OMS, Carolina. Mulheres que correm o mundo. AzMina, mar. 2019. Disponível em: https://azmina.com.br/especiais/mulheres-imigrantes/; MATIOLI, Victor. Imigrantes enfrentam dificuldades para acessar serviços de assistência médica, apontam pesquisadores. IEA-USP, nov. 2018. Disponível em: http://www.iea.usp.br/noticias/imigrantes-enfrentam-dificuldades-para-acessar-servicos-de-assistenciamedica-apontam-pesquisadores; Reproductive Health. Nascer no Brasil. Inquérito Nacional sobre Parto e Nascimento. Saúde Reprodutiva, v. 13(Supl. 3), Child Birth in Brazil, 2016; BRASIL. Dar à luz na sombra: Condições atuais e possibilidades futuras para o exercício da maternidade por mulheres em situação de prisão. Ministério da Justiça, Secretaria de Assuntos Legislativos. Brasília: Ministério da Justiça, IPEA, 2015. 34

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parto assistido por profissionais qualificados (médico e/ou enfermeiro) é vivenciada em 98% dos casos.79 A despeito disso, desafios substanciais permanecem. O Brasil ainda enfrenta (i) a baixa qualidade dos atendimentos ofertados; (ii) desigualdades socioeconômicas, regionais e raciais no tratamento; (iii) intervenções médicas desnecessárias, principalmente para acelerar o trabalho de parto, maximizando, assim, a “produtividade” e a “eficiência” nas enfermarias obstétricas;80 (iv) elevada ocorrência de partos prematuros;81 e (v) violência obstétrica generalizada, com altas taxas de cesarianas. Uma pesquisa realizada entre fevereiro de 2011 a outubro 201282 mostrou que apenas 60,6% das mulheres no Brasil começaram consultas pré-natais antes da 12ª semana de gestação, conforme recomendado pelo Ministério da Saúde.83 Quando incluídos outros parâmetros, como realização de rotina, exames pré-natais e informações sobre parto e amamentação,84 menos de 10% das mulheres receberam os procedimentos recomendados. As diferenças regionais e as desigualdades no acesso aos cuidados de saúde também são evidentes. Segundo o Ministério da Saúde, em 2014, a chance de realizar sete ou mais consultas de pré-natal foi maior entre as gestantes residentes nas regiões Sul e Sudeste (80%) do que nas residentes no Norte (57,7%).85 No mesmo ano, residentes da região Norte também tiveram maiores chances de realizar menos de três consultas de pré-natal (20%) do que a média nacional (10%).86 79 DINIZ, Simone. Materno-infantilism, feminism and maternal health policy in Brazil. Reproductive Health Matters, v. 20, n. 39, p. 125-132, 2012. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/1766559/mod_resource/content/1/DINIZ_materno-infantilism (1).pdf. Acesso em: 19 jul. 2019. 80 Ibidem. 81

VICTORA, Cesar; AQUINO, Estela; LEAL, Maria do Carmo et al. Maternal and child health in Brazil: progress and challenges. The Lancet, v. 377, n. 9780, p. 1863-1876, maio 2011. Disponível em: https:// www.pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/21561656. Acesso em: 19 jul. 2019.

82

VIELLAS, Elaine Fernandes et al. Assistência pré-natal no Brasil. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 30(Supl. 1), p. 85-100, ago. 2014. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo. php?script=s-ci_arttext&pid=S0102-311X2014001300016&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 19 jul. 2019.

83

BRASIL. Ministério da Saúde. Cadernos de Atenção Básica: Atenção ao pré-natal de baixo risco. Brasília, 2012. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/cadernos_atencao_basica_32_prenatal.pdf. Acesso em: 23 ago. 2019.

84

VIELLAS, Elaine Fernandes et al. Op. cit.

85

BRASIL. Ministério da Saúde. Saúde Brasil 2014: Uma análise da situação de saúde e das causas externas. Brasília, 2015. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/ saude_bra sil_2014_analise_situacao.pdf. Acesso em: 23 ago. 2019.

86 Ibidem. 35

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As disparidades raciais, étnicas e de classe também persistem. Em 2013, as mulheres com 12 ou mais anos de estudo tinham 9,82 vezes mais chance de fazer sete ou mais consultas de pré-natal quando comparadas às analfabetas. Mulheres que tiveram bebês declarados como indígenas e negros tiveram menos chance de fazer sete ou mais consultas de pré-natal quando comparadas às mulheres que tiveram bebês brancos.87 Além disso, muitos estudos no Brasil registraram atitudes discriminatórias na assistência ao parto.88 De acordo com a pesquisa nacional “Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado”,89 realizada pela Fundação Perseu Abramo em 2010, uma a cada quatro mulheres que tiveram a experiência do parto e metade das mulheres que fizeram aborto relataram ter vivenciado algum tipo de violência.90 Por fim, em relação à cesárea, o sistema de saúde brasileiro tem registrado aumento nesse tipo de cirurgia.91 Embora várias políticas e programas para reduzir as taxas tenham sido implementadas nos últimos 30 anos, a tendência de aumento das cesáreas persiste. Em 2017, por exemplo, relatório do Ministério da Saúde apontou que 55% dos quase três milhões de partos no país foram realizados por cesariana.92 Recentemente, ocorreram mudanças em relação às políticas públicas de saúde reprodutiva. Em uma conferência da ONU em março de 2019, o representante do

87

ANJOS, Juliana Cristine dos; BOING, Antonio Fernando. Diferenças regionais e fatores associados ao número de consultas de pré-natal no Brasil: análise do Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos em 2013. Rev. Bras. Epidemiol., São Paulo, v. 19, n. 4, p. 835-850, out.-dez. 2016. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415-790X2016000400835&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 25 ago. 2019.

88

DINIZ, Simone Grilo et al. Abuse and disrespect in childbirth care as a public health issue in Brazil: origins, definitions, impacts on maternal health, and proposals for its prevention. J. Hum. Growth Dev., São Paulo, v. 25, n. 3, p. 377-384, 2015. Disponível em: http://pepsic. bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-12822015000300019. Acesso em: 19 jul. 2019.

89 VENTURI, G.; GODINHO, T. Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado. São Paulo: Sesc/Fundação Perseu Abramo, 2013. 90 A pesquisa entrevistou 2.365 mulheres brasileiras em 176 municípios brasileiros. 91

GUALDA, Dulce Maria Rosa; NARCHI, Nádia Zanon; CAMPOS, Edelmilson Antunes de. Strengthening midwifery in Brazil: Education, regulation and professional association of midwives, Midwifery, v. 29, n. 10, p. 1077-1081, out. 2013. Disponível em: https://repositorio.usp.br/directbitstream/af0c09cd-af2c-4dc3-a52e-f6dd64bd6b87/GUALDA%2C%20 D%20M%20R%20doc%2078.pdf. Acesso em: 27 set. 2022.

92

BRASIL. Ministério da Saúde. Painéis Saúde Brasil: nascimentos. Brasília, 2015. Disponível em: http://svs.aids.gov.br/dantps/centrais-de-conteudos/paineis-de-monitoramento/ saude-brasil/nascimentos/. Acesso em: 23 ago. 2019.

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governo brasileiro rejeitou a menção da declaração “acesso universal aos serviços de saúde sexual e reprodutiva”, citando que ela poderia promover o aborto.93 No mesmo mês, o Ministério da Saúde afirmou que o termo “violência obstétrica” é “inadequado e não agrega valor para a conquista de um atendimento de saúde de qualidade durante a gravidez, o parto e o pós-parto”.94 Essa posição foi alvo de intensas críticas de grupos feministas, instituições acadêmicas e até mesmo do Ministério Público Federal.95 Por fim, apesar de diversos esforços para incentivar o parto normal e limitar as cesarianas, a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo aprovou, em agosto de 2019, o Projeto de Lei 435/2019.96 Proposto pela deputada Janaina Paschoal, o PL permite que as mulheres optem pela cesariana sem indicação clínica no setor público. Os deputados Carla Zambelli, Alê Silva e Filipe Barros propuseram outro projeto de lei com o mesmo propósito na esfera federal (Projeto de Lei 3.635/2019).97

1.2.1 Legislação A seguir, estão dispostas e resumidas as principais legislações, bem como regulamentações do Ministério da Saúde e da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) sobre gestação, parto e pós-parto. • Lei nº 13.769/2018, de autoria da Senadora Simone Tebet (PMDB): alterou o Código de Processo Penal, a Lei Execução Penal e a Lei dos Crimes Hediondos para estabelecer a substituição da prisão preventiva por prisão domiciliar da mulher gestante ou que for mãe ou responsável por crianças ou pessoas com deficiência e para disciplinar o regime de cumprimento de pena privativa de liberdade de condenadas na mesma situação, garantindo, portanto, a aplicação das Regras de Bangkok, que 93

QUERO, Caio. Para “evitar promoção do aborto” Brasil critica menção à saúde reprodutiva da mulher em documento da ONU. BBC News Brasil, 26 mar. 2019. Disponível em: https:// www.bbc.com/portuguese/brasil-47675399. Acesso em: 26 ago. 2019.

94

Disponível em: https://www.febrasgo.org.br/pt/noticias/item/797-posicionamento-oficial -do-ministerio-da-saude-sobre-o-termo-violencia-obstetrica. Acesso em: 19 jul. 2019.

95

Disponível em: http://www.mpf.mp.br/sp/sala-de-imprensa/docs/recomendacao_ms_violencia_obstetrica.pdf/. Acesso em: 23 ago. 2019.

96 Disponível em: https://www.al.sp.gov.br/propositura/?id=1000262934. Acesso em: 19 jul. 2019. 97

Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2208686. Acesso em: 19 jul. 2019. 37

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versam sobre o encarceramento em massa e o uso excessivo de prisões provisórias. A despeito desta legislação, o Departamento Penitenciário Nacional (Depen) informou ao Supremo Tribunal Federal (STF) que 10.693 mulheres seriam elegíveis à prisão domiciliar por serem mães de filhos de até 12 anos e/ou grávidas, ao passo que apenas 426 mulheres haviam recebido prisão domiciliar até então, o que equivale a cerca de 4% do total.98 • Lei nº 13.434/2017, de autoria da Deputada Federal Ângela Albino (PCdoB): acrescentou parágrafo único ao artigo 292 do Código de Processo Penal para vedar o uso de algemas em mulheres grávidas durante o parto e em mulheres durante a fase de puerpério imediato. • Lei nº 13.287/2016, de autoria do Deputado Federal Sandres Junior (PP): acrescentou dispositivo à Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) para proibir o trabalho da gestante ou lactante em atividades, operações ou locais insalubres. • Lei nº 11.942/2009, de autoria da Deputada Federal Fatima Pelaes (PSDB): deu nova redação aos artigos 14, 83 e 89 da Lei de Execução Penal para assegurar às mães presas e aos recém-nascidos condições mínimas de assistência, como (i) atendimento médico às mulheres e ao recém-nascido; (ii) existência de um setor penitenciário voltado a gestantes e parturientes; (iii) existência de vagas em creches penitenciárias para filhos de presidiárias durante a amamentação até os seis meses de idade; (iv) existência de vagas em creche para crianças de seis meses a sete anos de idade para atender à criança indefesa, cuja mãe esteja cumprindo pena privativa de liberdade; e (v) setor e berçário penitenciários com profissionais qualificados, atendendo aos padrões educacionais.99 98 D’ÁVILA, Maria Clara et al. Aprovado Projeto de Lei que garante prisão domiciliar para mães gestantes. ITTC – Instituto Terra, Trabalho e Cidadania, dez. 2018. Disponível em: http:// ittc.org.br/aprovado-lei-13769-prisao-domiciliar/. Acesso em: 18 jun. 2019. 99

“Na década de 1990, como resultado do ativismo das mulheres e do surgimento da medicina baseada em evidências, um movimento mundial começou a documentar os benefícios emocionais e de saúde e a alta satisfação materna com a presença e apoio contínuos durante o parto. [...] Isso levou à recomendação internacional da OMS na década de 1990 de que o apoio contínuo durante o trabalho tem benefícios clinicamente significativos para mulheres e crianças e nenhum dano conhecido, e que todas as mulheres devem ter apoio durante o parto e nascimento. [...] No Brasil, as evidências da primeira revisão sistemática sobre apoio ao trabalho (1996) foram utilizadas para propor as primeiras leis sobre o direito de acompanhamento no nascimento na década de 1990, como as adotadas em São Paulo, Rio de Janeiro e Santa Catarina. Em 2005, uma lei nacional que se aplica a todas as mulheres em serviços públicos e privados (Lei n. 11.108.23) afirmou seu direito de ter um companheiro de sua escolha durante o pré-natal e todas as fases do confinamento,

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• Lei nº 11.634/2007, de autoria da Deputada Federal Luiza Erundina (PSB): dispõe sobre o direito da gestante ao conhecimento e a vinculação à maternidade onde receberá assistência no âmbito do SUS. • Lei nº 11.108/2005, de autoria da Senadora Ideli Salvatti (PT): alterou a Lei nº 8.080/90, para garantir às parturientes o direito à presença de acompanhante durante o trabalho de parto, parto e pós-parto imediato, no âmbito do SUS. Embora haja gradual e consistente melhora na implementação deste direito em geral, a presença do acompanhante pode ser considerada um privilégio de mulheres brancas com maior renda e escolaridade, que pagam pela assistência médica e que realizaram cesárea.100 • Portaria Ministerial 569/2000 (Atualmente incluída na Portaria de Consolidação 6/2017), do Ministério da Saúde: instituiu o Programa de Humanização no Pré-natal e Nascimento no âmbito do SUS, cujo principal objetivo é reorganizar a assistência obstétrica, vinculando formalmente o pré-natal ao parto e ao puerpério, e ampliar o acesso das mulheres a um conjunto mínimo de procedimentos. • Portaria Ministerial 570/2000 (Atualmente incluída na Portaria de Consolidação 6/2017), do Ministério da Saúde: instituiu o Componente I do Programa de Humanização no Pré-natal e Nascimento – Incentivo à Assistência Pré-natal no âmbito do Sistema Único de Saúde, visando estimular estados e municípios a incrementar a qualidade do acompanhamento pré-natal, promovendo o cadastramento de suas gestantes, organizando seus sistemas assistenciais, municipais e estaduais, garantindo a realização do acompanhamento pré-natal completo e a articulação deste com a assistência ao parto e puerpério. • Portaria Ministerial 571/2000 (Atualmente incluída na Portaria de Consolidação 6/2017), do Ministério da Saúde: institui o Componente II do Programa de Humanização no Pré-natal e Nascimento, responsável pela adoção das medidas necessárias à organização e regulação da assistência obstétrica e neonatal e à realização de investimentos nesta área assistencial. Refere-se também à adoção de medidas e procedimentos baseados em evidências comprovadamente benéficos ao parto, incluindo os períodos de trabalho de parto, parto e pós-parto.” (DINIZ, Carmen Simone Grilo et al. Implementação da presença de acompanhantes durante a internação para o parto: Dados da pesquisa nacional Nascer no Brasil. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 30 (Supl. 1), p. S140-S153, 2014. DOI: https://doi.org/10.1590/0102-311X00127013. Acesso em: 3 jun. 2019). 100 DINIZ, Carmen Simone Grilo et al. Op. cit. 39

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evitando práticas intervencionistas com maiores riscos para a mãe e para o recém-nascido.101 • Portaria Ministerial 572/2000 (Atualmente incluída na Portaria de Consolidação 6/2017), do Ministério da Saúde: instituiu o Componente III do Programa de Humanização no Pré-natal e Nascimento Nova Sistemática de Pagamento à Assistência ao Parto, que estabelece alterações na sistemática de pagamento da assistência ao parto, possibilitando a melhoria da qualidade assistencial. • Portaria Ministerial 693/2000, do Ministério da Saúde: introduziu o Padrão de Atendimento Humanizado ao Recém-nascido de Baixo Peso (Método Canguru), cujos objetivos envolvem (i) favorecer a criação de vínculo mãe-filho e (ii) reduzir o risco de infecção hospitalar, dentre outros.102 • Portaria Ministerial 1.459/2011, do Ministério da Saúde: estabeleceu a Rede Cegonha, rede de assistência que visa garantir às mulheres o direito ao planejamento reprodutivo e o direito da criança ao parto seguro. Além disso, visa a uma assistência humanizada à gestação, parto e puerpério. • Portaria Ministerial 766/2004, Ministério da Saúde: amplia o exame VDRL para todas as gestantes internadas e inclui o teste rápido anti-HIV na tabela SIA/SIH para todos os hospitais do SUS, com o objetivo de fornecer exames e tratamento pré-natal da sífilis, estabelecendo a obrigação de realizar sistematicamente testes, pelo menos duas vezes, com mulheres grávidas durante a gestação (no início do pré-natal e perto da 30ª semana) e no momento da internação hospitalar, seja para a curetagem pós-parto ou pós-aborto do útero. Apesar da recomendação da portaria, na prática, estudos mostram que tais diretrizes não tinham sido seguidas por alguns profissionais da rede básica de saúde e que, quando

101 SERRUYA, Suzanne Jacob; CECATTI, José Guilherme; LAGO, Tania di Giacomo do. O Programa de Humanização no Pré-natal e Nascimento do Ministério da Saúde no Brasil: resultados iniciais. Cad. Saúde Pública [online], v. 20, n. 5, p. 1281-1289, 2004. Disponível em: http:// www.scielo.br/pdf/csp/v20n5/22.pdf. Acesso em: 19 jul. 2019. 102 NEVES, Priscila Nicoletti; RAVELLI, Ana Paula Xavier; LEMOS, Juliana Regina Dias. Atenção humanizada ao recém-nascido de baixo-peso (método Mãe Canguru): Percepções de puérperas. Rev. Gaúcha Enferm. (online), Porto Alegre, v. 31, n. 1, p. 48-54, mar. 2010. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1983-14472010000100007. Acesso em: 19 jul. 2019. 40

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realizados, os exames de VDRL, muitas vezes, estão sendo solicitados em horários inadequados.103 • Portaria Ministerial 2.418/2005, do Ministério da Saúde: regulamenta o direito à presença de um acompanhante para mulheres no trabalho de parto, parto e pós-parto imediato em hospitais públicos e outros hospitais que tratam pacientes relacionados ao SUS. • Portaria Ministerial 1.020/2013, do Ministério da Saúde: estabeleceu diretrizes para a organização da assistência médica na gravidez de alto risco, por meio da definição de critérios para implantação e habilitação dos serviços de referência, com o objetivo de interferir no curso de uma gravidez que tem uma chance de ter um resultado desfavorável para reduzir o risco para a mulher grávida e o feto ou para reduzir possíveis consequências adversas. • Portaria Ministerial 3.265/2017, do Ministério da Saúde: previu a expansão do acesso ao DIU de cobre no âmbito do SUS.104 • Resolução Normativa 368/2015, da ANS: estabeleceu o direito de acesso à informação sobre a percentagem e cesarianas e nascimentos normais por profissional de saúde e médico. Também prescreve o uso de Partograma105 e do Cartão da Gestante.106 A iniciativa faz parte da estratégia da ANS para a modificação do modelo de parto em saúde suplementar, com o objetivo 103 BITTENCOURT, Rudinei; PEDRON, Cecilia. Sífilis: Abordagem dos profissionais de saúde da família durante o pré-natal. Faculdade de Enfermagem, Universidade Federal de Pelotas, JONAH – Journal of Nursing and Health, v. 2, n. 1, 2012. Disponível em: https://periodicos. ufpel.edu.br/ojs2/index.php/enfermagem/article/view/3450. Acesso em: 19 jul. 2019. 104 BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Manual técnico para profissionais de saúde: DIU com Cobre TCu 380ª. Brasília: Ministério da Saúde, 2018. Disponível em: http://portaldeboaspraticas.iff. fiocruz.br/wp-content/uploads/2018/12/manual_diu_08_2018.pdf. Acesso em: 19 jul. 2019. 105 BRASIL. Agência Nacional de Saúde Suplementar. ANS publica novas regras para o parto na saúde suplementar. Fev. 2016. Disponível em: http://www.ans.gov.br/aans/noticias-ans/ consumidor/3192-ans-publica-novas-. Acesso em: 19 jul. 2019 106 O Cartão da Gestante é uma forma oficial criada em 1988 pelos serviços de saúde a todas as grávidas durante o pré-natal onde são registrados os exames, procedimentos e medicamentos prescritos. Esse documento visa facilitar a detecção precoce de condições de risco de gravidez importantes e claramente definidas e é um bom instrumento para disponibilizar informações relevantes e transmiti-las a outros profissionais. Também pode servir como um importante meio de avaliação das características epidemiológicas da população gestante, necessárias para a definição de prioridades na perspectiva da saúde pública. Mais informações: SANTOS NETO, Edson Theodoro dos et al. O que os cartões de pré-natal das gestantes revelam sobre a assistência nos serviços do SUS da Região Metropolitana da Grande Vitória, Espírito Santo, Brasil? Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 28, n. 9, p. 1650-1662, set. 2012. DOI: https://doi.org/10.1590/S0102-311X2012000900005. Acesso em: 20 ago. 2019. 41

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de reduzir os riscos de procedimentos desnecessários, como cesarianas, e para melhorar o cuidado da mulher e do bebê. Atualmente, a percentagem de cesarianas na suplementar é de 84,6%. Esse procedimento, quando não clinicamente indicado, acarreta riscos desnecessários à saúde da mulher e do bebê, como partos prematuros, o que aumenta a probabilidade de problemas respiratórios para o recém-nascido em 120 vezes e triplica o risco de morte da mãe.107 • Resolução Normativa 398/2016, da ANS: previu a obrigação do credenciamento dos obstetras e enfermeiras obstétricas por operadoras de planos privados de saúde e hospitais que constituem suas redes e pela obrigação dos médicos de entregar a Nota de Orientação à Gestante, com o objetivo de incentivar o parto normal e o aleitamento materno.108

1.2.2 Projetos de lei109 O Congresso Nacional, responsável pela edição e aprovação de leis no Brasil, é composto pelo Senado Federal e pela Câmara dos Deputados. Na Câmara dos Deputados, a representatividade do povo é proporcional à população de cada estado – enquanto São Paulo (estado com mais de 41 milhões de habitantes) tem 70 deputados (limite máximo), Amapá (estado com 450 mil habitantes) tem apenas oito parlamentares. O Senado, por sua vez, representa o equilíbrio entre 27 estados e o Distrito Federal, com um total de 81 parlamentares, sendo três senadores por estado com mandato de 8 anos. Senadores e deputados podem redigir projetos de lei no Senado e na Câmara, respectivamente. Se o projeto começa no Senado, é enviado à Câmara para revisão e vice-versa. Tradicionalmente, a quantidade de projetos de lei redigidos na Câmara é maior, o que significa que o Senado atua mais como revisor do que como autor. Existem diferentes tipos de projetos e todos passam por comissões temáticas. Alguns dos projetos não precisam passar pelo Plenário, ou seja, os votos daqueles que compõem a comissão são suficientes para aprovação de um projeto de lei. Os procedimentos geralmente começam em comissões. Podem chegar

107 Disponível em: http://www.ans.gov.br/aans/noticiasans/qualidade-da-saude/2923-entramem-vigor-novas-regras-sobre-parto-na-saude-suplementar. Acesso em: 19 jul. 2019. 108 BRASIL. Agência Nacional de Saúde Suplementar. ANS publica novas regras para o parto na saúde suplementar. Op. cit. 109 A pesquisa restringiu-se à esfera federal. 42

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ao Plenário e, se aprovados, vão para a Casa revisora. Se aprovado pelas duas Casas, o projeto é encaminhado para sanção presidencial. Nesta seção, descrevemos todos os projetos de lei federais encontrados por meio das seguintes palavras-chave: humanização do parto, obstetrícia, pré-natal gestação, puerpério e violência obstétrica. Os projetos se referem ao período de 2012 a 2019.

Câmara dos Deputados • Projeto de Lei 912/2019, de autoria da Deputada Federal Camilo Capiberibe: Objetiva regulamentar a atividade das parteiras tradicionais a fim de descrever o escopo da prática tradicional da obstetrícia110 e estabelecer os requisitos que as parteiras tradicionais devem cumprir para poder praticar.111 • Projeto de Lei 119/2019, de autoria da Deputada Federal Renata Abreu: objetiva alterar a Lei Orgânica da Saúde (8.080/90) para incluir a execução de ações relacionadas à mortalidade materna, saúde mental, aborto, contracepção, menopausa, violência doméstica e sexual, adolescência, mulheres negras, lésbicas, indígenas, mulheres que trabalham em áreas rurais e, pelo menos, mulheres presas. • Projeto de Lei 130/2019, de autoria da Deputada Federal Renata Abreu: objetiva ampliar a atenção às gestantes e mães nos períodos pré e pós-natal. • Projeto de Lei 11.008/2018, de autoria da Deputada Federal Mariana Carvalho: objetiva dispor da adequação gestacional do pré-natal pelo SUS, com foco nos protocolos de diagnóstico e tratamento da pré-eclâmpsia.

110 “A midwife’s “scope of practice” is the range of things that the midwife has the skills, knowledge and proficiency to do.” (THE NURSING AND MIDWIFERY COUNCIL. In: Practising as midwife in the UK: An overview of midwifery regulation, mar. 2017. Disponível em: https:// www.nmc.org.uk/globalassets/sitedocuments/nmc-publications/practising-as-a-midwife-in-the-uk.pdf. Acesso em: 25 ago. 2019). 111

É importante destacar que o debate sobre a regulamentação para fortalecer a obstetrícia não é simples. Alguns entendem que o envolvimento com a regulamentação pode criar pressão para que a obstetrícia se conforme aos padrões de prática médica e crie modelos hierárquicos de treinamento e prática que minariam a escolha das mulheres. Por outro lado, alguns profissionais veem a falta de reconhecimento legal como falta de respeito tanto pelas parteiras quanto pelas mulheres que desejavam atendimento obstétrico. Eles veem as seguintes vantagens de buscar legislação sobre obstetrícia: (i) aumentar o acesso aos cuidados obstétricos, (ii) melhorar a forma como as parteiras poderiam fornecer cuidados, e (iii) aumentar o acesso à prática. 43

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• Projeto de Lei 3.206/2019, de autoria da Deputada Federal Flávia Arruda: objetiva criar o Programa “Mãezinha Brasileira”. • Projeto de Lei 8.363/2017, de autoria da Deputada Federal Erika Kokay: objetiva regulamentar a prática profissional de assistência de doula112 a fim de descrever o escopo de sua prática113 e estabelecer os padrões que as doulas devem atender para poderem exercer suas funções. • Projeto de Lei 2.589/2015, de autoria do Deputado Federal Marco Feliciano: objetiva dispor sobre a criminalização da violência obstétrica.

Senado Federal • Projeto de Lei Complementar 12/2018, de autoria do Deputado Federal Jean Wyllys (Projeto de Lei 2.350/2015): garante à estudante gestante o regime de exercícios escolares domiciliares. • Projeto de Lei 259/2016, de autoria da Senadora Rose de Freitas: cria um benefício de assistência financeira para famílias que esperam trigêmeos ou mais bebês (gravidez múltipla).

1.2.3 Políticas públicas114 As políticas públicas de saúde no Brasil geralmente fazem parte do SUS, que foi criado a partir da Constituição de 1988 para oferecer saúde pública gratuita e universal. Como política pública, o SUS é responsabilidade conjunta das três esferas de governo brasileiras (federal, estadual e municipal), cada uma com sua participação no financiamento e na organização do sistema.

112 De acordo com a OMS, doula é uma “mulher que tem treinamento especializado em apoio ao parto, mas não faz parte da equipe profissional da unidade de saúde” (OMS. Acompanhante de escolha durante o trabalho de parto e parto para melhoria da qualidade do atendimento. Genebra, 2016. Disponível em: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/250274/ WHO-RHR-16.10-eng.pdf. Acesso em: 25 ago. 2019). 113 THE NURSING AND MIDWIFERY COUNCIL. Op. cit. 114 As definições utilizadas para descrever as políticas públicas analisadas foram extraídas de: CASA CIVIL DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA, INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Avaliação de políticas públicas: Guia prático de análise ex ante. Brasília: IPEA, 2018. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/livros/livros/180319_ avaliacao_de_politicas_publicas.pdf. Acesso em: 6 out. 2019. 44

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A estrutura pública é financiada principalmente por impostos federais. Nesse sentido, o Ministério da Saúde brasileiro desenha, coordena e executa políticas públicas de saúde – incluindo a operacionalização do SUS – que atende cerca de 75% da população brasileira. A cobertura e assistência privada também são permitidas pela legislação em vigor. No que se refere à incorporação, exclusão e atualização de tecnologias em saúde, bem como aos protocolos clínicos e diretrizes desenvolvidas no SUS, o Ministério da Saúde é assessorado pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologia (Conitec), órgão técnico responsável por avaliar a (i) disponibilidade de medicina baseada em evidências, (ii) sua relação custo-benefício e (iii) impactos orçamentários de determinada tecnologia ou produto no SUS. Um segundo conselho consultivo do Ministério da Saúde é o Conselho Nacional de Saúde, que regulamenta a pesquisa clínica em humanos e avalia as políticas públicas de saúde. Para melhor compreensão do atendimento à saúde das mulheres, é importante voltar a 1983, antes do SUS, quando foi criado o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM). O PAISM não foi apenas uma política de saúde pública, mas também um movimento político destinado a trazer as mulheres para o centro de sua própria saúde por uma série de meios, dentre eles: 1. uma relação mais horizontal entre mulheres e profissionais de saúde; 2. enfoque nas mulheres como sujeitos de sua própria atenção à saúde e não apenas como meio de reprodução social (abordagem “mãe e filho”); e 3. assistência em todos os períodos da vida clínico-ginecológica (planejamento reprodutivo, gravidez, parto e puerpério). O PAISM foi claramente marcado por uma perspectiva feminista em relação à saúde da mulher e, como tal, representou um avanço no sistema público de saúde brasileiro. Pode-se dizer que a filosofia do PAISM orientou os primeiros anos de implantação do SUS. Recentemente, políticas públicas centradas na saúde das mulheres, como o PAISM, perderam espaço para outras políticas com enfoque materno-infantil115 em que as mulheres não são vistas como sujeitos de direitos. A seguir, apresentamos uma visão geral de sete políticas selecionadas sobre gravidez, parto e pós-parto, consideradas as mais relevantes no nível federal.

115 AQUINO, Estela. Para reinventar o parto e o nascimento no Brasil: De volta ao futuro. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 30(Supl.), p. S1-S3. Disponível em: https://www.scielosp. org/pdf/csp/2014.v30suppl1/S8-S10. Acesso em: 19 jul. 2019. 45

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O (i) Programa de Humanização do Pré-Natal e Nascimento (Programa de Humanização do Pré-Natal e do Parto – PHPN), em vigor desde 2000, engloba uma série de parcerias entre o Ministério da Saúde e os municípios, por meio do SUS, para o oferecimento de melhores cuidados de obstetrícia e neonatais, buscando, principalmente, promover os cuidados de saúde e a prevenção de doenças à gestante e ao recém-nascido e reduzir as taxas de mortalidade materna no Brasil. Dentre suas principais ações estão o incentivo à assistência pré-natal, a organização, regulamentação e os investimentos em assistência obstétrica, além do estabelecimento de um sistema para financiar a assistência ao parto. Anualmente, o Ministério da Saúde avalia os municípios que fazem parte do PHPN por meio da análise dos dados que compõem a base de dados nacional do SUS. A (ii) Estratégia Saúde da Família (ESF) está em vigor desde 2006 e tem por objetivo funcionar como “porta de entrada” do SUS, estabelecendo grupos locais para fornecer cuidados de saúde contínuos para famílias com baixa-renda, que, por sua vez, são compostos por, no mínimo, um médico, um enfermeiro e um auxiliar de enfermagem. Também há grupos de Saúde Oral, compostos, por, no mínimo, um cirurgião-dentista, uma enfermeira e uma técnica em saúde bucal. Como estratégia de monitoramento, utiliza-se os mecanismos gerais do controle e governança do SUS no nível municipal. A (iii) Rede Cegonha, por sua vez, visa à promoção de um novo modelo de atenção à saúde da mulher e da criança, com foco no parto, neonatal e infantil, e está em vigor desde 2011. A política prevê que o Ministério da Saúde organizará, em cada estado que necessita de apoio federal, um grupo de trabalho que gerencia as parcerias com municípios a fim de melhorar os cuidados de saúde locais e, como estratégia de monitoramento e avaliação, realizará, junto a representantes municipais e estaduais, auditorias em cada componente da rede. Suas ações envolvem o financiamento de projetos neonatais, obstétricos e puérperos com diferentes perfis de risco; a qualificação de profissionais de saúde locais; e o financiamento de medicamentos, hospitais, suprimentos hospitalares e transporte para grávidas e puérperas, bem como recém-nascidos. A (iv) Iniciativa Hospital Amigo da Criança tem por objetivo diminuir a mortalidade infantil por meio do incentivo ao aleitamento materno; da capacitação de profissionais de saúde para evitar ações inadequadas que possam prejudicar a amamentação e provocar o desmame precoce; e da interrupção de distribuição de suprimentos que substituem o leite materno para maternidades e hospitais. Anualmente, os Hospitais Amigos da Criança realizam uma autoavaliação no site

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do Ministério da Saúde e, trienalmente, o Estado e/ou secretários municipais realizam pessoalmente uma reavaliação. Já a (v) Estratégia Amamenta e Alimenta Brasil (EAAB), em vigor desde 2012, pretende estimular a promoção do aleitamento materno e da alimentação saudável para crianças menores de dois anos no âmbito do SUS por meio da capacitação dos profissionais de saúde que atuam nas Unidades Básicas de Saúde (UBS). Cada UBS conta com uma pessoa responsável por informar as atividades realizadas nas respectivas Unidades para implementação da EAAB. As (vi) Diretrizes de Atenção à Gestante116 estabelecem que as gestantes deverão ser informadas de todos os riscos e efeitos adversos potenciais relacionados ao procedimento de cesariana, sendo que não há qualquer estratégia de monitoramento prevista na política. Por fim, o (vii) Projeto Parto Adequado117 busca identificar modelos inovadores e viáveis de cuidados com o parto, valorizando o parto normal e a redução do percentual de cesáreas sem indicação clínica no Sistema de Saúde Suplementar do Brasil. Até agosto de 2019, a iniciativa contou com a adesão de 35 hospitais privados e evitou 10 mil cesarianas desnecessárias. A estratégia de monitoramento e avaliação da política está pautada nos dados relatados por empresas privadas de saúde e planos de saúde à ANS.118

116 BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria n. 306, de 28 de março de 2015. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/sas/2016/prt0306_28_03_2016.html. Acesso em: 19 jul. 2019. 117 AGÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE SUPLEMENTAR. Estímulo ao parto normal: Organização de atenção ao pré-natal, parto e nascimento. Disponível em: http://www.ans.gov.br/images/ stories/noticias/Parto_Adequado_final.pdf. Acesso em: 19 jul. 2019. 118 Responsável pela regulação, controle e fiscalização dos seguros e planos privados de saúde. Esse setor é composto por diversas pessoas jurídicas, como cooperativas de assistência médica e odontológica, medicina de grupo, autogestão e seguradoras. A ANS desempenha um papel significativo e, ocasionalmente, conservador neste setor suplementar ao estabelecer regulamentação sobre: i) reservas atuariais, normas financeiras e regras para aprovação de transações comerciais ou corporativas para as entidades reguladas, ii) termos e condições de compra e rescisão de planos individuais ou coletivos, iii) doenças preexistentes, iv) restrições. 47

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1.2.4 Jurisprudência Nesta seção, analisamos a jurisprudência sobre gravidez, parto e puerpério do STF, STJ119 e Tribunais de Justiça dos Estados de São Paulo (TJSP),120 Minas Gerais (TJMG)121 e Rio de Janeiro (TJRJ).122 119 A pesquisa consultou os processos nº 1.386.389, de relatoria do Ministro Herman Benjamin; nº 634.373, de relatoria do Ministro Moura Ribeiro; e nº 1.426.349, de relatoria do Ministro Luis Felipe Salomão. 120 A pesquisa consultou os processos nº 0094547-91.2007.8.26.000, de relatoria do Desembargador Roberto Maia; nº 0248756-09.2007.8.26.1000, de relatoria do Desembargador José Luis Germano; nº 000336-24.2007.8.26.0498, de relatoria do Desembargador Fábio Podestá; nº 0009699-61.2007.8.26.0554, de relatoria do Desembargador J. M. Ribeiro de Paula; nº 0117817-14.2007.8.26.0011, de relatoria do Desembargador Silvério da Silva; nº 0003483-49.2003.8.26.0126, de relatoria do Desembargador Oswaldo Luiz Palu; nº 9088723-32.2006.8.26.0000, de relatoria do Desembargador Piva Rodrigues; nº 915875120.2009.8.26.0000, de relatoria do Desembargador Paulo Eduardo Razuk; nº 101808629.2015.8.26.0114, de relatoria do Desembargador Nilton Santos Oliveira; nº 0101016-8.26.2003, de relatoria do Desembargador Álvaro Passos; nº 0004273-43.2005.8.26.0100, de relatoria do Desembargador Teixeira Leite; nº 0003074-83.2012.8.26.0053, de relatoria do Desembargador Marcelo Martins Berthe; nº 0199081-77.2007.8.26.0100, de relatoria do Desembargador Carlos Alberto Salles; 0001314-07.2015.8.26.0082, de relatoria do Desembargador Fábio Podestá; nº 1002589-57.2014.8.26.0292, de relatoria do Desembargador José Carlos Ferreira Alves; nº 0020745-53.2012.8.26.0269, de relatoria do Desembargador J. B. Paula Lima; nº 0002307-27.2003.8.26.0161, de relatoria do Desembargador Rebouças de Carvalho; nº 1096561-41.2015.8.26.0100, de relatoria do Desembargador Moreira Viegas; nº 100889802.2014.8.26.0161, de relatoria do Desembargador Luiz Antonio de Godoy; nº 100080873.2018.8.26.0439, de relatoria do Desembargador Ponte Neto; nº 1006270-77.2016.8.26.0126, de relatoria do Desembargador José Maria Câmara Junior; nº 1008370-05.2016.8.26.0126, de relatoria da Desembargadora Paola Lorena; nº 1000881-14.2014.8.26.0278, de relatoria da Desembargadora Rosangela Telles; nº 4001481-64.2013.8.26.0004, de relatoria do Desembargador Alcides Leopoldo; nº 1007291-48.2017.8.26.0322, de relatoria da Desembargadora Mary Grün; nº 1011906-35.2015.8.26.0554, de relatoria do Desembargador Piva Rodrigues; nº 1006665-79.2017.8.26.0176, de relatoria do Desembargador Felipe Mascarenhas Tavares; nº 0216974-13.2009.8.26.0100, de relatoria do Desembargador Araldo Teles; e nº 4005857-31.2013.8.26.0348, de relatoria do Desembargador Dimitrios Zarvos Varellis. 121 A pesquisa consultou os processos nº 1.0024.12.137.666-9/004, de relatoria da Desembargadora Mônica Libânio; nº 1.0024.14.097.839-6/001, de relatoria do Desembargador José Marcos Vieira; nº 1.0491.09.005132-8/003, de relatoria do Desembargador Tiago Pinto; nº 1.0024.14.318334-1/001, de relatoria da Desembargadora Teresa Cristina da Cunha Peixoto; nº 1.0024.06.307984-2/001, de relatoria do Desembargador Márcio Idalmo Santos Miranda; nº 1.0000.18.052786-3/001, de relatoria do Desembargador Pedro Bernardes; e nº 1.0708.15.001260-5/001, de relatoria do Desembargador Alberto Henrique. 122 A pesquisa consultou os processos nº 0106193-95.2004.8.19.0001, de relatoria da Desembargadora Mônica Sardas; nº 0005702-09.2016.8.19.0212, de relatoria do Desembargador Antônio Iloízio Barros Bastos; nº 0001141-58.2013.8.19.0078, de relatoria da Desembargadora Myriam Medeiros da Fonseca Costa; nº 0002612-26.2016.8.19.0007, de relatoria da Desembargadora Cintia Santarém Cardinali; nº 0009961-89.2016.8.19.0004, de relatoria do Desembargador Marcos André Chut; nº 0069570-93.2010.8.19.0042, de relatoria do Desembargador Murilo Kieling; nº 0006522-32.2015.8.19.0028, de relatoria 48

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A pesquisa considerou a ferramenta de busca de jurisprudência disponível nos sites do STF, STJ, TJSP, TJMG e TJRJ, abrange o período de 1º de janeiro de 2010 até 30 de junho de 2019, e utilizou as seguintes palavras-chave: “número de consultas de pré-natal”; “risco gestacional”; “plano de parto”;123 “procedimentos dolorosos”; “procedimentos invasivos”; “ultrassom”; “pré-natal”; “procedimentos dolorosos”; “pré-natal e serviços de saúde”; “pré-natal e diabetes”; “pré-natal e hipertensão”; “pré-natal e HIV”; “pré-natal e tratamentos”; “pré-natal e plano de parto”; “pré-natal e gravidez"; e, por fim, “violência obstétrica”. Não foram encontrados resultados no website do STF e apenas três casos foram encontrados no website do STJ.124 A busca pelas palavras-chave citadas nos levou à conclusão de que, embora não houvesse referências sobre “violência obstétrica”, a maioria dos casos compilados relaciona-se a esse tipo de violência. Em sua maioria, versam sobre: negligência em oferecer tratamento de qualidade durante o pré-natal,125



do Desembargador Marcos Alcino de Azevedo Torres; nº 0006412-60.2010.8.19.0205, de relatoria do Desembargador Jose Alcir Lessa Giordani; e nº0001271-54.2012.8.19.0055, de relatoria do Desembargador Augusto Alves Moreira Junior. A pesquisa restringiu-se a São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais por serem estes os estados com maior população do Brasil.

123 “Plano de Parto” é um documento que visa informar e expandir a participação e a tomada de decisões durante o parto. Difundida entre as mulheres de classe média no Brasil, essa ferramenta tem sido utilizada em alguns serviços de atenção primária no país. 124 Analisamos um total de 58 casos. 125 Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Número do processo 0094547-91.2007.8.26.0000. Pedido de Danos Morais e Materiais movido pela parturiente e sua filha contra a seguradora e o médico responsável pelo pré-natal. Os autores alegaram que a parturiente não recebeu tratamento adequado para toxoplasmose durante a gravidez, o que resultou em muitos problemas de saúde para seu filho. O juízo reverteu a decisão do juízo de primeira instância e condenou as Rés ao pagamento (i) de indenização por danos morais e morais, fixada em R$ 300.000,00, acrescida de atualizações monetárias e juros de mora; e (ii) todas as despesas com tratamento que a filha necessitaria (inclusive escola especial), pois a parturiente não recebeu o tratamento médico recomendado pelo Ministério da Saúde durante a gravidez. Data do julgamento: 5 de fevereiro de 2013. 49

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agressões verbais,126 proibição de acompanhante durante o trabalho de parto, episiotomia127 e procedimentos que causaram dor ou lesão física durante o parto.128 A pesquisa expôs as limitações do sistema de justiça para abordar a violência obstétrica, que trata o assunto como um erro médico em vez de uma violação dos direitos das mulheres ou violência de gênero, deixando de observar normativas internacionais.129 Nesse sentido, apesar da gravidade das violações sofridas pelas mulheres, pode-se dizer que a justiça é pouco permeável à compreensão da violência obstétrica como forma de violação de seus direitos humanos. Na verdade, o entendimento dos tribunais é de que, quando uma mulher enfrenta danos físicos e emocionais irreparáveis decorrentes do atendimento obstétrico, trata-se de um problema individual, ou seja, uma negligência médica. Os julgadores resistem em compreender que tais maus-tratos representam abuso e negligência em níveis sistêmicos, decorrentes da implementação inadequada de políticas de saúde materna. Conclui-se que a falta de assistência obstétrica 126 Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Número do processo 0001314-07.2015.8.26.0082. Pedido de indenização por danos morais movido pela parturiente contra o hospital onde deu à luz ao seu filho. Alegação de violência obstétrica, incluindo agressão verbal, proibição de acompanhante no parto e proibição de visitar a criança na UTI. O tribunal de apelação confirmou a sentença de primeira instância que condenou o hospital a pagar R$ 50.000,00 a título de indenização pelo sofrimento moral sofrido em decorrência da violência obstétrica. Data do julgamento: 11 de outubro de 2017. 127 Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Número do processo 010619395.2004.8.19.0001. Pedido de Danos Morais e Materiais ajuizado pela parturiente contra o Município e o Estado, sob a alegação de que ela foi ferida durante o parto, quando foi realizada uma episiotomia que causou uma conexão inusitada entre a vagina e o ânus, que exigiu cirurgia para correção. A maternidade permaneceu inerte, então a paciente teve que encontrar outro local para realizar a cirurgia restauradora. O tribunal de apelações revisou a decisão do tribunal de primeira instância para encerrar o processo em relação ao Estado e condenar o Município a pagar R$ 20.000,00 a título de indenização por danos morais e R$ 625,20 em indenização por danos materiais. 16 de agosto de 2017. 128 Superior Tribunal de Justiça. Agravo de Instrumento de Recurso Especial 138638. Ação de indenização por danos morais, materiais e estéticos movida pela mãe contra o Município. A autora alegou que durante um procedimento de parto cesáreo um curto-circuito no bisturi elétrico causou a queima do produto químico usado para assepsia, resultando em queimaduras na maior parte do corpo da autora, minutos antes do nascimento de seu filho. O juízo deu provimento ao recurso da autora para aumentar o valor da indenização por danos morais e estéticos, fixando-os em R$ 60.000,00 e R$ 30.000,00, respectivamente. Data do julgamento: 20 de agosto de 2013. 129 Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Número do processo 1.0708.15.001260-5/001. Pedido de danos morais e estéticos movido pela parturiente contra o hospital e o médico. A Autora alegou que o tratamento recebido durante o trabalho de parto ocasionou-lhe distúrbios emocionais e físicos, devido a erro médico, pela escolha do parto vaginal e episiotomia. O tribunal de recursos manteve a decisão do tribunal de primeira instância que negou provimento ao processo por falta de defeito nos serviços médicos. Na opinião da especialista, a episiotomia é um risco inerente ao parto vaginal, que é o procedimento de parto mais indicado. Data do julgamento: 21 de março de 2019. 50

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humanizada e o desrespeito aos direitos da mulher em si são insuficientes para condenar o Estado ou o profissional de saúde a indenizá-la pelos danos morais e materiais se os procedimentos não resultaram em lesão corporal efetiva. Além disso, quando os tribunais tratam a violência obstétrica como uma negligência médica, é mais difícil provar a responsabilidade do médico e de outros profissionais, porque estão sujeitos à responsabilidade subjetiva (baseada na culpa). As mulheres devem demonstrar que a conduta foi negligente ou intencional e provar a relação causal130 entre os cuidados de saúde prestados e os danos físicos ou emocionais. Ao mesmo tempo, os hospitais e, consequentemente, os estados, estão sujeitos à responsabilidade objetiva em casos de danos decorrentes da má assistência durante o pré-natal e nos serviços de parto. De acordo com o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, entretanto, o Estado estaria sujeito à responsabilidade objetiva apenas nos casos em que o dano fosse causado por sua atuação ativa; no caso de serviços que deixam de ser prestados, deve-se comprovar a existência de negligência.131 Em ambos os casos, o tribunal dá especial relevância ao prontuário da paciente, relatórios acerca dos cuidados médicos prestados, bem como opinião de um perito nomeado pelo Poder Judiciário. Outra tendência importante encontrada nas decisões dos tribunais é focar apenas os interesses da criança e, geralmente, ignorar os direitos e a saúde das mulheres. Como resultado, as decisões tendem a dar procedência a ações de

130 Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Número do processo: 024875609.2007.8.26.0100. Pedido de indenização por danos morais movido pela parturiente contra o Estado de São Paulo e os médicos que a atenderam no hospital estadual. A autora alegou que recebeu tratamento inadequado para diabetes gestacional durante o pré-natal, o que levou à morte do feto. O tribunal de apelação confirmou a decisão do tribunal de primeira instância de indeferir o caso. O tribunal entendeu que não havia nexo de causalidade entre a assistência prestada e o óbito do feto, o que ocorreu também por culpa da parturiente, uma vez que ela não compareceu às consultas com nutricionista, conforme preconizado. O laudo pericial produzido em primeira instância determinou que o tratamento pré-natal foi adequado, mas também constatou que não foi possível fazer uma análise do tratamento recebido pela Autora na última internação e da causa da morte do feto em razão da falta de documentos. Data do julgamento: 14 de maio de 2013. 131 Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Número do processo: 1.0024.14.0978396/001. Pedido de indenização por danos morais ajuizado pela parturiente contra o hospital, alegando que ela recebeu tratamento degradante por parte do hospital. Além disso, ela alegou que foi submetida à violência obstétrica e forçada a ter parto vaginal. O tribunal de apelação manteve a decisão do tribunal de primeira instância, que negou provimento ao caso por falta de provas. A autora não comprovou o tratamento degradante, nem a inadequação dos procedimentos a que foi submetida, e o tribunal considerou que o hospital, nesse caso, estaria sujeito à responsabilidade por negligência e não responsabilidade objetiva. Data do julgamento: 13 de julho de 2016. 51

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danos morais em casos de negligência que leve à morte do bebê132 ou quando a criança nasce com graves problemas de saúde.133 A única exceção a essa tendência é observada quando a lei que garante o direito à acompanhante no parto é violada, quaisquer que sejam as consequências para a criança.134 Por último, verificou-se um número significativo de decisões em que o Tribunal julgou as ações movidas por mulheres improcedentes (44%). Isso indica a necessidade de se editar uma legislação para definir a violência obstétrica, de modo a garantir seu reconhecimento como forma de violência e discriminação de gênero frequentemente cometida contra mulheres em um momento de grande vulnerabilidade.

1.3 Mortalidade materna A mortalidade materna constitui uma grave violação aos direitos reprodutivos das mulheres, uma vez que a maioria das mortes maternas pode ser

132 Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Número do processo 9088723-32.2006.8.26.0000. Pedido de danos morais e materiais movido pelos pais contra o médico que realizou o pré-natal e o hospital. Os demandantes argumentaram que a decisão de adiar o parto causou a morte do feto. O tribunal de apelação confirmou a decisão do tribunal de primeira instância, que condenou o médico a pagar 100 salários-mínimos a título de indenização por danos morais e julgou improcedente o processo em relação ao hospital. 133 Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Número do processo 9158751-20.2009.8.26.0000. Pedido de indenização por danos morais apresentado pela parturiente e seu filho contra a companhia de seguro de saúde. Os autores alegaram que a parturiente não foi informada sobre o resultado do exame anti-HIV a que foi submetida durante o pré-natal, tampouco isso foi levado em consideração no momento do parto, ocasionando a transmissão vertical do vírus no parto. O tribunal de apelação confirmou a decisão do tribunal de primeira instância que condenou o seguro-saúde a pagar R$ 100.000 a título de indenização por danos morais. Data do julgamento: 8 de novembro de 2011. 134 Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Número do processo 1007291-48.2017.8.26.0322. Pedido de indenização por danos morais movido pela parturiente contra o hospital. O marido da autora foi proibido de acompanhar a cesárea, embora tenha sido concedida liminar em seu favor — visto que foi concedida poucas horas antes do parto. O juiz de segunda instância deu provimento parcial ao recurso do autor para condenar o réu ao pagamento de R$ 15.000,00 a título de indenização por danos morais. O direito ao acompanhante está previsto na Lei n. 11.108/2005, que pode ser aplicada por analogia ao presente caso, e pela Resolução 35 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Data do julgamento: 28 de maio de 2019. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Número do processo 1.0143.16.002510-0/001. Ação civil pública movida pelo Ministério Público do Estado contra o Município e o hospital público, objetivando fazer valer o direito de acompanhante a toda parturiente durante o trabalho de parto, nascimento e pós-parto. O Tribunal de Justiça manteve a decisão de 1ª instância que condenou os réus a fazerem o que fosse necessário para o cumprimento do artigo 19-J da Lei 8.090/90 e, portanto, garantir o direito ao acompanhante. Julgamento do caso: 25 de abril de 2019. 52

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evitada com cuidados obstétricos adequados e precoces.135 Até o final da década de 1970, as questões de saúde materna não faziam parte da agenda científica ou das políticas de saúde no Brasil. Isso mudou depois de 1980, quando o governo brasileiro implementou várias políticas e programas de saúde materna.136 Sistematizar dados de mortalidade materna é uma tarefa notoriamente difícil e complexa em razão da subnotificação do número de mortes – especialmente em áreas rurais e em pequenas cidades, onde as taxas de mortalidade tendem a ser mais altas – somada à subnotificação das causas das mortes maternas. Em vista disso, as agências internacionais e os governos nacionais têm usado uma variedade de métodos de medição. Estudos recentes no Brasil indicam que a mortalidade materna caiu de 73,3 para 58,2 a cada 100 mil nascidos vivos no período de 2000 a 2013.137 As razões para esse progresso incluem mudanças socioeconômicas e demográficas, tais como crescimento econômico, redução das disparidades de renda entre as populações mais pobres e mais ricas, melhor educação das mulheres e diminuição das taxas de fertilidade, programas de transferência de renda e melhorias no abastecimento de água e saneamento, além de programas específicos na área da saúde que tiveram início na década de 1980, como a promoção do aleitamento materno e o Programa de Saúde da Família em meados da década de 1990.138 Embora tenha havido redução da mortalidade materna ao longo dos últimos 30 anos, o Brasil não atingiu os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio de reduzir a taxa de mortalidade materna para 35 mortes a cada 100 mil nascidos vivos até 2015. Além disso, quando comparado a outros países de renda média da região, a taxa de mortalidade materna do Brasil é marcadamente maior do que, por exemplo, a do Chile, que é de 22 a cada 100 mil nascidos vivos em 2015.139 Em comparação com as taxas de mortalidade materna em países de alta renda, pode-se dizer que a proporção do Brasil é inaceitavelmente alta, pois, mesmo 135 PAHO. Folha Informativa – Mortalidade Materna. 2018. Disponível em: https://www.paho.org/ bra/index.php?option=com_content&view=article&id=5741:folha-informativa-mortalidade-materna&Itemid=820. Acesso em: 22 set. 2022. 136 VICTORA, Cesar; AQUINO, Estela; LEAL, Maria do Carmo et al. Maternal and child health in Brazil: Progress and challenges. The Lancet, v. 377, n. 18, p. 63-76, 2011. Disponível em: https:// www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/21561656. Acesso em: 19 jul. 2019. 137 PAHO. Country report: Brazil. Disponível em: https://www.paho.org/salud-en-las-americas-2017/?page_id=97. Acesso em: 22 set. 2022. 138 VICTORA, Cesar; AQUINO, Estela; LEAL, Maria do Carmo et al. Op. cit. 139 PAHO. Maternal mortality ratio. Disponível em: http://www.paho.org/data/index.php/en/ 106-cat-data-en/380-maternal-mortality-en.html. Acesso em: 22 set. 2022. 53

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com o fator da subnotificação, a taxa é de cinco a dez vezes maiores do que nesses países. A rede brasileira de atenção à maternidade apresenta lacunas estruturais significativas, atrasos e atendimento inadequado, que podem resultar em elevados índices de mortalidade materna.140 Por exemplo, apenas 15% das maternidades públicas possuem Unidades de Terapia Intensiva (UTI) maternas. Além disso, um estudo recente mostrou que, em muitas maternidades em todo o país, a assistência ao parto e nascimento é inadequada,141 principalmente para mulheres com alto risco obstétrico, que não podem ter sua assistência comprometida por falhas na infraestrutura hospitalar.142 Além disso, de 10% a 24% das maternidades de baixo risco foram consideradas inadequadas em termos de estrutura física, serviços de apoio e recursos humanos para uma assistência de qualidade. Nesse cenário, medidas importantes para reduzir o número de óbitos no país são: implantação de protocolos de tratamento para causas diretas (pré-eclâmpsia e eclâmpsia, hemorragia pós-parto, sepse e aborto inseguro); acesso ao pré-natal especializado e a um sistema de referência adequado;

140 PACAGNELLA, Rodolfo Carvalho et al. Mortalidade materna no Brasil: Propostas e estratégias para sua redução. Rev. Bras. Ginecol. Obstet., Rio de Janeiro, v. 40, n. 9, p. 501-506, set. 2018. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pi-d=S0100-72032018000900501&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 22 set. 2022. 141 A pesquisa calculou o escore de adequação de cada hospital por meio do percentual de respostas positivas em relação ao número total de questões pertencentes a cada domínio descrito acima. Eles investigaram quatro outros domínios de instalações ou organizações hospitalares: a) recursos humanos; b) medicamentos; c) equipamentos para atendimento de emergência à gestante; e d) serviços de suporte. Os critérios de recursos humanos foram os seguintes: presença de enfermeiro ou médico que possa estratificar o risco de cada gestante que se apresenta e pelo menos um obstetra e/ou anestesiologista atuando por turnos nas instalações, sem interrupção. Os pesquisadores verificaram a disponibilidade de oito classes de medicamentos, de acordo com a regulamentação brasileira: anti-hipertensivos, ansiolíticos ou hipnóticos, corticosteroides, ocitócicos, tocolíticos, anti-hemorrágicos, sulfato de magnésio e imunoglobulina anti-D para mulheres Rh-negativas. Na área dos equipamentos para atendimento de emergência à gestante, investigou-se a presença dos seguintes itens: laringoscópios e tubos orotraqueais, ventiladores mecânicos e reanimadores manuais. A pesquisa verificou a disponibilidade dos seguintes serviços de apoio: banco de sangue ou unidade transfusional, laboratório de patologia clínica e transporte em ambulância. Para instituições com UTI, que atendem mulheres de alto risco, eles avaliaram mais quatro categorias em recursos humanos: 1) presença de “diretor médico de obstetrícia”; 2) presença da “diretora de enfermagem da obstetrícia”; 3) diretor médico com formação especializada em obstetrícia; 4) diretora de enfermagem com formação especializada em obstetrícia (BITTENCOURT, Sonia Duarte de A. et al. Adequacy of public maternal care services in Brazil. Reproductive Health, v. 13(Supl. 1), n. 120, p. 257-265, 2016. Disponível em: https://www. arca.fiocruz.br/handle/icict/28835. Acesso em: 20 jul. 2019). 142 BITTENCOURT, Sonia Duarte de A. et al. Op. cit. 54

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fornecimento de anticoncepcionais; inserção de DIU pós-parto e pós-aborto, bem como atendimento específico para populações vulneráveis.143

1.3.1 Legislação Nesta seção, destacamos as principais leis e regulamentos do Ministério da Saúde e da ANS no Brasil sobre mortalidade materna. • Portaria Ministerial 1.119/2008, do Ministério da Saúde: regulamenta a Vigilância de Óbitos Maternos, entendendo que a identificação dos principais fatores de risco relacionados aos óbitos permite definir estratégias para evitar novas ocorrências. • Portaria Ministerial 116/2009, do Ministério da Saúde: regulamenta a coleta de dados, fluxo e periodicidade de envio das informações sobre óbitos e nascidos vivos para os Sistemas de Informações em Saúde sob gestão da Secretaria de Vigilância em Saúde, em estratégia de fortalecimento da informação e de vigilância epidemiológica de estados e municípios. • Portaria Ministerial 72/2010, do Ministério da Saúde: estabelece que a vigilância do óbito infantil e fetal é obrigatória nos serviços de saúde (públicos e privados) que integram o SUS. Com base nessa portaria, esperava-se que houvesse mais informações sobre as causas do óbito fetal, o que, infelizmente, não ocorre na prática. Estima-se que a morte fetal seja um fenômeno inexplicável em aproximadamente 60% dos casos.144

1.3.2 Projetos de lei145 Nesta seção, descrevemos todos os projetos de lei (PL) federais encontrados usando as seguintes palavras-chave: “mortalidade materna”, “morbidade materna”, “quase acidente” e “comitê de mortalidade materna”, “hemorragia”

143 PACAGNELLA, Rodolfo Carvalho et al. Op. cit. 144 DELL MENEZZ, América Maria Eleutério et al. Vigilância do óbito fetal: Estudo das principais causas. São Paulo, O Mundo da Saúde, v. 40, n. 2, p. 208-212, 2016. Disponível em: http:// www.saocamilo-sp.br/pdf/mundo_saude/155574/A07.pdf. Acesso em: 19 jul. 2019. 145 A pesquisa restringiu-se à esfera federal. 55

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e “saúde materna”, eclâmpsia e “saúde materna”, sepse e “saúde materna”, “medicamentos essenciais” e “saúde materna”. A seguir são apresentados os projetos de acordo com a casa legislativa (Senado ou Câmara dos Deputados) onde estão tramitando.146 Os projetos se referem ao período de 2012 a 2019.

Câmara dos Deputados • Projeto de Lei 6.567/2013, de autoria do Senador Gim Argello (Projeto do Senado 8/2013): objetiva incluir a obrigatoriedade de obediência às diretrizes e orientações técnicas e o oferecimento de condições que possibilitem a ocorrência do parto humanizado nos estabelecimentos de saúde do SUS. Originalmente, o projeto foi discutido no Senado e aprovado pela Comissão de Assuntos Sociais (CAS), sem votação em Plenário. Ao longo dos anos, diversos projetos de lei foram anexados e discutidos147 a este projeto. Destacamos o Projeto de Lei 7.633/2014, do Deputado Federal 146 A informação sobre a casa legislativa onde cada PL se encontrava em tramitação foi atualizada em junho de 2022. 147 Os seguintes projetos de lei estão anexados: Projeto de Lei 5.304/2013 e Projeto de Lei 446/2019 (ambos contemplam direito a acompanhante de escolha e doula durante o trabalho de parto, nascimento e pós-parto imediato em serviços de saúde públicos e privados); Projeto de Lei 5656/2013 (inclui direito de ter acompanhante no pré-natal); Projeto de Lei 6.062/2013 (inclui a obrigatoriedade dos Planos de Saúde garantirem que o pré-natal e o parto sejam realizados pelo mesmo profissional); Projeto de Lei (inclui a obrigação dos Planos de Saúde de garantir que o pré-natal e o parto sejam prestados pelo mesmo profissional sem custo adicional); Projeto de Lei 4.662/2016 e Projeto de Lei 376/2019 (incluem o direito de ter uma doula durante o trabalho de parto, nascimento e pós-parto imediato); Projeto de Lei 9.749/2018 (inclui direito a acompanhante de escolha e enfermeira obstétrica durante o pré-natal, nascimento e pós-parto imediato); Projeto de Lei 6.888/2013 (disponibiliza ao gestor informações sobre o seu direito à perspectiva humanizada da assistência ao parto e nascimento); Projeto de Lei 3.465/2015 (inclui o direito de ter acompanhantes do sexo masculino durante o trabalho de parto, nascimento e pós-parto imediato); Projeto de Lei 4.126/2015 (regulamenta o direito à assistência humanizada ao parto); Projeto de Lei 10.209/2018 (garantia de acesso à anestesia peridural e raquianestesia durante o parto); Projeto de Lei 3.635/2019 (inclui direito de escolha de cesariana); Projeto de Lei 4.996/2016 (inclui direito a acompanhante de escolha durante os procedimentos de saúde); Projeto de Lei 3.569/2015 (inclui no SUS o princípio da humanização da saúde); Projeto de Lei 7.633/2014, Projeto de Lei 8.219/2017, Projeto de Lei 878/2019 (regulamenta a humanização do pré-natal, parto e puerpério); Projeto de Lei 7.867/2017 (regulamenta medidas para prevenir e eliminar a violência obstétrica); Projeto de Lei 2.693/2019 (cria a Política Nacional de Atendimento à Gestante Política Nacional de Saúde Materna); Projeto de Lei 3.310/2019 (regulamenta o direito de registro de consultas de pré-natal, trabalho de parto e nascimento); Projeto 4.021/2019 (regulamenta a existência de avisos de alerta sobre humanização do pré-natal, parto e puerpério em serviços de saúde); Projeto de Lei 9.372/2017 e Projeto de Lei 10.987/2018 (cria cursos de formação para profissionais de saúde relacionados à humanização do parto); Projeto de Lei 3.905/2019 (cria a Semana 56

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Jean Wyllys, que dispõe sobre a humanização da assistência à mulher e ao neonato durante o ciclo gravídico-puerperal e dá outras providências.

Senado Federal De acordo com as palavras-chave utilizadas e à época de atualização desta pesquisa, não foram encontrados projetos de lei em trâmite no Senado Federal.

1.3.3 Políticas públicas Existem diversas políticas públicas nos níveis federal, estadual e municipal que abordam direta ou indiretamente a questão da mortalidade materna. O SUS responde por parte substancial dessas políticas públicas, já que seu principal objetivo é oferecer saúde pública gratuita e universal. Analisamos algumas dessas políticas na seção anterior sobre gravidez, parto e pós-parto. Em complementação às políticas já detalhadas, a seguir, trazemos uma visão geral de apenas uma política – Vigilância Epidemiológica do Óbito Materno – por considerá-la a mais relevante em nível federal no que se refere à mortalidade materna. Em vigor desde 2008, a política determina diretrizes rígidas para o preenchimento de atestados de óbito para todas as mulheres que falecem entre 10 e 49 anos de idade. Cada morte durante a gravidez ou até um ano após a interrupção da gravidez, de acordo com a política, deve ser investigada como um possível caso de mortalidade materna, mas apenas as mortes que acontecem até 42 dias após a interrupção da gravidez são consideradas para fins estatísticos. Profissionais de saúde coletam informações sobre os casos confirmados e encaminham para o Ministério da Saúde. Os dados são usados para subsidiar políticas de prevenção da mortalidade materna.

de Assistência ao Parto Adequado); Projeto 1.217/2019 e, finalmente, Projeto 2.446/2019 (inclui o direito da gestante com deficiência auditiva a ter um intérprete de língua brasileira de sinais durante as consultas de pré-natal e parto). 57

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1.3.4 Jurisprudência Nesta seção, analisamos a jurisprudência do STF, STJ148 e TJSP149, TJMG e TJRJ150 sobre mortalidade materna. Para a realização da pesquisa foi utilizada a ferramenta de busca de jurisprudência disponível nos sites do STF, STJ, TJSP, TJMG e TJRJ. A pesquisa abrangeu o período de 1º de janeiro de 2010 até 30 de junho de 2019, com as seguintes palavras-chave: mortalidade e materna; morte e mãe e negligência médica e hospitalar; morte e mãe e parto; morte e parto; morte e parturiente; mortalidade e mãe; e, por fim, mãe e parto.151 Não foram encontrados resultados no site do STF e do TJMG e apenas um caso no site do STJ. Na maioria dos casos (76%),152 os tribunais deferiram os pedidos dos autores das ações e condenaram o Estado a pagar indenização por danos morais153 148 A pesquisa consultou o processo nº 1.393.707/CE, de relatoria do Ministro Marco Aurelio Belizze. 149 A pesquisa consultou os processos nº 0027683-77.2005.8.26.0053, e relatoria do Desembargador Coimbra Schmidt; nº 0000015-50.1998.8.26.0418, de relatoria do Desembargador A. C. Mathias Coltro; nº 003587823.2009.8.26.0405, de relatoria do Desembargador Moacir Peres; nº 0006982-96.2011.8.26.0405, de relatoria do Desembargador Piva Rodrigues; nº 0001976-50.2008.8.26.0620, de relatoria do Desembargador James Siano; nº 0301038-62.2009.8.26.0000, de relatoria do Desembargador Theodureto Camargo; nº 0301038-71.2012.8.26.0637, de relatoria do Desembargador Fábio Podestá; e nº 0003416-95.2009.8.26.0604, de relatoria do Desembargador J. B. Paula Lima. 150 A pesquisa consultou os processos nº 0081992-68.2006.8.19.0001, de relatoria do Desembargador Guarici de Campos Vianna; nº 0062838-64.2006.8.19.0001, de relatoria do Desembargador Nagib Slaibi; nº 0004828-06.2003.8.19.0042, de relatoria da Desembargadora Flávia Romano de Rezende; nº 0102666-09.2002.8.19.0001, de relatoria da Desembargadora Mônica Maria Costa; nº 0007817-64.2006.8.19.0014, de relatoria da Desembargadora Natacha Nascimento Gomes Tostes Gonçalves de Oliveira; nº 0371566-45.2011.8.19.0001, de relatoria da Desembargadora Patrícia Ribeiro Serra Vieira; e nº 009031054.2017.8.19.0001, de relatoria da Desembargadora Denise Nicoll Simões. A pesquisa se restringiu a São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais por serem os estados mais populosos do Brasil. 151 Na tradução para o português: “mortalidade” e “materna”; “falecimento” e “genitora” e “hospital” e “erro médico”; “falecimento” e “genitora” e “parto”; “falecimento” e “parto”; “falecimento” e “parturiente”; “mortalidade” e “mãe”; “mãe” e “parto”. 152 Analisamos um total de dezenove casos. 153 Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Número do processo: 009031054.2017.8.19.0001. Ação de indenização por danos materiais e morais movida por familiares da parturiente falecida contra o Município e o Estado. Os autores alegaram que a parturiente morreu de complicações resultantes da gravidez depois que um centro de saúde pública negou a qualidade de seus cuidados de saúde materna. A segunda instância manteve o julgamento que condenou o Município e o Estado a pagarem R$ 100.000,00 a cada reclamante em compensação por danos causados por danos morais. Data do julgamento: 12 de fevereiro de 2019. 58

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e, em alguns casos, estabeleceram uma pensão mensal para o filho ou filha ainda vivo.154 As decisões, no entanto, não se baseiam nas normas de direitos humanos para argumentar que o Estado não está cumprindo suas obrigações de prevenir a mortalidade e morbidade materna. Ao contrário, entre as decisões analisadas, a jurisprudência não classifica os fatos como violência de gênero nem os reconhece como violação dos direitos das mulheres. Em todos os casos, houve a necessidade de comprovar a negligência médica que culminou na morte da mulher. Para comprovar a responsabilidade do médico e de outros profissionais, por estarem sujeitos à responsabilidade culposa, a parte autora deve demonstrar que a conduta foi negligente ou intencional e a relação causal entre os cuidados de saúde prestados e os danos físicos ou emocionais,155 o que ocorreu em apenas um caso.156 Os hospitais e o Estado, por sua vez, estão sujeitos à responsabilidade objetiva, pelo que o autor deve demonstrar a ocorrência do dano, o nexo de causalidade e, por vezes, a culpa do profissional de saúde.157 154 Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Processo número: 0027683-77.2005.8.26.0053 Ação de indenização por danos materiais e morais interposta por filho de parturiente falecida contra o Estado. Evidências médicas atestam que a morte da genitora foi resultado de negligência médica ocorrida no hospital público, por causa da demora para realizar o parto. O juízo de primeira instância julgou a favor do autor e condenou o Estado a pagar R$ 432.000,00 em indenização por danos morais, bem como uma pensão mensal de R$ 3.100,00 até que o autor complete 25 anos. A segunda instância confirmou a decisão, mas encurtou o prazo final da pensão de 25 para 18 anos. Data do julgamento: 24 de julho de 2012. 155 Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Número do processo: 0006982-96.2011.8.26.0405. Pedido de indenização por danos morais do marido e do filho da parturiente falecida contra o hospital. Mãe e bebê morreram durante o parto. Evidências médicas atestam que a morte da genitora foi devida à infecção contraída no hospital, mas que não havia relação causal entre a morte do bebê e o consultório médico. O tribunal de primeira instância acatou parcialmente os pedidos dos autores e condenou o hospital a pagar R$ 46.000,00 a cada um dos autores. A segunda instância concedeu parcialmente o recurso dos autores, confirmando a decisão de primeira instância, mas elevou o valor da indenização para R$ 394.000,00 no total. Data do julgamento: 1º de setembro de 2015. 156 Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Número do processo: 006283864.2006.8.19.0001. Pedido de indenização por danos morais ajuizado pela filha da parturiente contra o hospital, responsável pela cirurgia de seu irmão, que faleceu após procedimentos médicos. A mãe do menino – que estava grávida na época – desenvolveu depressão e eclâmpsia e, por conta disso, também faleceu após o parto. A segunda instância manteve o julgamento que condenou o hospital ao pagamento de R$ 150.000,00 e R$ 75.000,00 em indenização por danos morais devida à morte do menino e da mãe, respectivamente. Data do julgamento: 5 de dezembro de 2012. 157 Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Número do processo: 000341695.2009.8.26.0604. Pedido de indenização por danos materiais e morais decorrentes da morte da parturiente após o parto, movido por sua filha contra o hospital. Evidências médicas atestaram que a morte da genitora se deu por erro médico, uma vez que os médicos não 59

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Em ambos os casos, as decisões se baseiam no prontuário da paciente, nos relatórios sobre a prestação de cuidados médicos, bem como na perícia indicada pelo tribunal para fundamentar sua decisão.158 Em todas as quatro decisões em que a ação foi julgada improcedente, os julgadores justificaram que não havia relação causal entre a morte e a prática do médico, em conformidade com o parecer da perícia do tribunal.159 No campo do litígio internacional, importante destacar o caso de Alyne da Silva Pimentel Teixeira, que gerou a primeira decisão de um órgão internacional para responsabilizar um governo por uma morte materna evitável. Em sua análise, o Comitê para Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Comitê Cedaw) considerou que o Brasil violou suas obrigações de direitos humanos e ordenou que o governo federal adotasse medidas para melhorar o acesso aos serviços de maternidade, além de indenizar a família de Alyne.160 A redução da mortalidade materna requer a compreensão de que se trata de uma forma de violência de gênero e que decorre das desigualdades na prestação

administraram adequadamente o antibiótico à parturiente. Os danos materiais também foram estabelecidos porque o apoio financeiro da parturiente falecida foi considerado vital para o reclamante. A segunda instância confirmou integralmente a decisão de primeira instância, que condenou o hospital a pagar R$ 100.000 a título de indenização por danos morais e R$ 139.006,08 a título de indenização por danos materiais. Data do julgamento: 23 de maio de 2018. 158 Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Número do processo: 010266609.2002.8.19.0001. Pedido de indenização por danos morais interposto por filhos da parturiente, representados por seu pai, contra o Município. Os autores alegaram negligência médica e que a parturiente faleceu devido a uma sepse puerperal, septicemia e choque séptico, ocorridos após o parto de um de seus filhos. O tribunal de recursos manteve a decisão do tribunal de primeira instância que condenou o Município ao pagamento de R$ 150.000,00 a título de indenização por danos morais. Data do julgamento: 8 de abril de 2014. 159 Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Número do processo: 0005771-71.2012.8.26.0637. Pedido de indenização por danos morais decorrentes da morte da parturiente após o parto, movido pelos familiares da parturiente falecida contra o médico, o hospital e a seguradora de saúde. O tribunal reconheceu que não havia relação causal entre a morte da genitora e o consultório médico durante o parto ou depois dele, quando a mulher grávida morreu. A segunda instância confirmou plenamente a decisão da primeira instância, que indeferiu o caso. Data do julgamento: 10 de novembro de 2015; Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Número do processo: 0004828-06.2003.8.19.0042. Pedido de indenização por danos morais ajuizado pela mãe da parturiente falecida contra o hospital, em razão do falecimento de sua filha após o parto. A autora alegou que a morte foi consequência de um erro médico. A segunda instância manteve o julgamento que indeferiu o caso, devido à falta de provas de conexão causal entre as ações dos médicos e o falecimento da adolescente. Data do julgamento: 17 de dezembro de 2013. 160 OMS. Leading the realization of human rights to health and through health: report of the High-Level Working Group on the Health and Human Rights of Women, Children and Adolescents, 2017. Disponível em: https://www.ohchr.org/Documents/Issues/Women/ WRGS/Health/ReportHLWG-humanrights-health.pdf. Acesso em: 21 jul. 2019. 60

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de cuidados adequados à maternidade.161 Visto que os tribunais nacionais não usam argumentos baseados em desigualdades, embora os juízes tenham favorecido os autores na maioria dos casos, condenando o Estado e os hospitais a pagarem indenização por danos morais, ainda não se observa um padrão decisório que obrigue o Estado a cumprir suas obrigações relacionadas à adequação, segurança e assistência materna de qualidade.

1.3.5 Organizações da Sociedade Civil, instituições de justiça e comitês de mortalidade materna As seguintes organizações e instituições do sistema de justiça realizam diferentes atividades relacionadas à saúde materna e aos direitos reprodutivos, com alcance local, regional, nacional ou global: Artemis,162 Abia,163 Anis Instituto de

161 BITTENCOURT, Sônia Duarte de A. et al. Op. cit. 162 Artemis: promove a autonomia das mulheres e a prevenção e erradicação de todas as formas de violência contra as mulheres. Promove a pesquisa e o desenvolvimento de material científico interdisciplinar sobre a mulher e seus ciclos de vida, por meio de parcerias com universidades e outras instituições. Defende políticas públicas que previnam e erradiquem a violência obstétrica e outras formas de violência contra a mulher. Treina ativistas por meio de seu centro cultural, atividades educacionais e publicações; desenvolve projetos relacionados ao acesso da mulher aos serviços de saúde, emprego, geração de renda, bem como projetos relacionados à eliminação das desigualdades sociais, por meio de patrocínios e parcerias com instituições privadas. 163 Abia: atua na defesa de políticas públicas de enfrentamento da epidemia de HIV e aids no Brasil, bem como para o acesso ao tratamento e a defesa dos direitos humanos das pessoas que vivem com HIV e aids, por meio de parcerias com diversas instituições. Promove projetos educacionais sobre HIV e aids, dando acesso, democraticamente, a informações sobre essas questões para sua prevenção e tratamento. Realiza pesquisa e mapeamento de políticas públicas voltadas à prevenção, atenção e tratamento às pessoas que vivem com HIV e aids, por meio de parceria com outras instituições; promove a erradicação das barreiras da sexualidade ao acesso aos serviços de saúde, de forma a prevenir e tratar o HIV e a aids em grupos vulneráveis, como homens que fazem sexo com homens, prostitutas e travestis. Aumenta a conscientização para o financiamento público de serviços de saúde e assistência farmacêutica, com foco no acesso sustentável a medicamentos e no acesso de organizações não governamentais a empresas privadas e recursos públicos. 61

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Bioética,164 Católicas pelo Direito de Decidir,165 Centro de População e Sociedade (Cebrap),166 Cepia,167 Criola,168 Geledés – Instituto da Mulher Negra,169 Grupo

164 Anis Instituto de Bioética: realiza pesquisas em bioética na América Latina, bem como sobre aborto e direitos reprodutivos no Brasil. Faz advocacy e litígio estratégico em temas como direitos sexuais e reprodutivos, aborto seguro e legal; deficiência, saúde mental, violência e sistemas punitivos/ socioeducativos. Promove a cidadania, a igualdade e os direitos humanos das mulheres e outras minorias, através de parcerias com várias instituições; desenvolve publicações acadêmicas e literárias, assim como a produção de documentários sobre diversos temas, como direitos da mulher, serviços de saúde e bioética. 165 Católicas pelo Direito de Decidir: faz advocacy no Congresso Nacional, em diálogo com representantes dos Poderes Executivo e Judiciário, bem como de organismos internacionais (ONU e OEA), visando à implementação de políticas públicas de garantia dos direitos humanos. Promove e participa de diversos eventos com foco nos direitos da mulher, especialmente aqueles que versam sobre aspectos da sexualidade, reprodução e autonomia da mulher. Organiza oficinas em todo o país com mulheres envolvidas com organizações religiosas e movimentos sociais, sobre argumentos éticos e religiosos favoráveis aos direitos das mulheres. Desenvolve pesquisas, artigos, editoriais, publicações, anúncios de materiais acadêmicos, criações gráficas, intervenções artísticas, materiais audiovisuais, campanhas e comunicação digital para contribuir com os movimentos de direitos humanos no Brasil. 166 Cebrap: desenvolve pesquisas por meio de parcerias com universidades e organismos nacionais e internacionais, subsidiando a formulação, acompanhamento e avaliação de políticas públicas. Possui, dentre suas atividades, o Centro de População e Sociedade, que desenvolve trabalhos multidisciplinares sobre questões relacionadas a gênero e direitos sexuais e reprodutivos. 167 Cepia: Desenvolve estudos, pesquisas, projetos educacionais e intervenções sociais em temas tais como saúde, direitos reprodutivos e sexuais, violência contra as mulheres e acesso à justiça e empoderamento de mulheres e jovens. Organiza seminários, cursos e workshops em diálogo com movimentos sociais, advogados, profissionais da saúde, grupos feministas, formuladores de políticas públicas e formadores de opinião. Faz advocacy sobre a proposta, monitorando e avaliando políticas públicas, mantendo diálogo constante com diversos atores sociais. 168 Criola: Cria e aplica novas tecnologias para a luta política das mulheres negras. Produz conhecimento qualificado sobre as mulheres negras. Oferece cursos de capacitação de lideranças negras para que possam elaborar suas demandas de políticas públicas e dialogar com os gestores públicos. Realiza mobilização e ação política junto a setores da sociedade, governos e demais órgãos públicos para a implementação dos direitos humanos, em especial o direito à saúde, o acesso à justiça e gênero, raça e orientação sexual. 169 Geledés – Instituto da Mulher Negra: articula-se politicamente com outras organizações não governamentais, movimentos sociais e instituições internacionais para contribuir com a elaboração e implementação de políticas públicas de saúde, direitos sexuais e reprodutivos que atendam às necessidades e interesses das mulheres negras em particular e da população negra em geral. Desenvolve projetos de prevenção e promoção da saúde, bem como de melhoria da educação e erradicação do racismo e sexismo no Brasil. Contribui para a implantação do Plano Nacional de Saúde da População Negra, como forma de reduzir os elevados padrões de morbidade e mortalidade encontrados na população negra quando comparada à população branca. 62

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Curumim,170 Fundo Elas,171 Coletivo Margarida Alves de Assessoria Popular,172 SOS Corpo,173 Themis,174 Defensoria Pública do Estado de São Paulo: Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher,175 Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro: Núcleo Especializado em Direitos da Mulher e Vítimas de Violência,176 Defensoria Pública do Estado de Mato Grosso: Núcleo Especializado

170 Grupo Curumim: capacita profissionais para a humanização da assistência obstétrica e prevenção da morte materna. Propõe políticas públicas de saúde relacionadas ao parto domiciliar assistido por parteiras tradicionais. Promove atividades educativas para mulheres, adolescentes e jovens sobre política, cidadania, saúde maternal, direitos sexuais e reprodutivos. 171 Fundo Elas: promove e fortalece o empoderamento e o protagonismo das mulheres, mobilizando e investindo recursos em iniciativas relacionadas aos direitos das mulheres e gênero. Investe em projetos relacionados ao acesso da mulher aos serviços de saúde, promoção dos direitos sexuais e reprodutivos, promoção da autonomia e empoderamento econômico das mulheres, dentre outros. 172 Coletivo Margarida Alves de Assessoria Popular: faz litígios estratégicos e advocacia em casos judiciais de violência de gênero; promove treinamentos e debates sobre violência de gênero. Desenvolve outras atividades relacionadas ao feminismo, gênero, diversidade cultural, direitos humanos e interseccionalidade. 173 SOS Corpo: Contribui com movimentos sociais que lutam contra as desigualdades de gênero, pobreza, racismo e homofobia. Desenvolve atividades educacionais, como cursos, oficinas e seminários que abordam temas como gênero, raça e sexualidade; desenvolve pesquisas sobre os direitos das mulheres, como o acesso das mulheres ao emprego, educação, saúde pré-natal e instituições políticas. 174 Themis: contribui para a erradicação da discriminação das mulheres no sistema de justiça através da articulação com diversas instituições públicas e privadas. Promove o fortalecimento do conhecimento das mulheres sobre seus direitos no sistema de justiça, capacitando líderes comunitários em direitos humanos e das mulheres. Produz seminários, cursos e publicações sobre feminismo, dialogando com atores e instituições do sistema de justiça para propor novas abordagens para o uso do direito; faz advocacy e litígios estratégicos para proteger os direitos das mulheres nacionalmente e internacionalmente. 175 Defensoria Pública do Estado de São Paulo - Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher: Promove a igualdade de gênero, com ênfase nas políticas públicas de enfrentamento à discriminação feminina, bem como desenvolve atividades educativas relacionadas a esses temas; contribui para a aplicação da Lei 11.340/2006 (também conhecida como Lei Maria da Penha), de forma a proteger as mulheres que sofrem violência doméstica. Promove a defesa dos direitos sexuais e reprodutivos, atuando em diversos temas, como a interrupção voluntária da gravidez, violência obstétrica e maternidade. 176 Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro - Núcleo Especializado em Direitos da Mulher e Vítimas de Violência: promove a defesa da mulher contra a violência sexual, violência obstétrica e violência institucional, especialmente as do sistema prisional. Monitora políticas públicas relacionadas a questões de gênero, desigualdades raciais e diversidade sexual; faz advocacy e contencioso estratégico para políticas públicas que protegem os direitos das mulheres, como o aborto seguro e legal. 63

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de Promoção e Defesa da Mulher,177 Ministério Público Federal: Procuradoria dos Direitos do Cidadão178 e Ministério Público Estadual de São Paulo.179

177 Defensoria Pública do Estado de Mato Grosso - Núcleo Especializado de Promoção e Defesa da Mulher: promove a defesa da mulher contra a violência sexual e doméstica, bem como contra a violência obstétrica. Desenvolve atividades educacionais sobre esses temas, por meio de parcerias com outras instituições públicas e privadas. 178 Ministério Público Federal - Procuradoria dos Direitos do Cidadão: promove a defesa e o apoio às mulheres, especialmente contra a violência doméstica. Promove os direitos sexuais e reprodutivos, por meio de seus centros especializados – como o centro dos direitos da mulher – e seus escritórios regionais. 179 Ministério Público Estadual de São Paulo: atua na defesa e proteção dos direitos das mulheres em situação de violência doméstica e familiar, por meio da responsabilização dos/das autores/as de violência e pela consecução de ações e projetos voltados à efetivação da Lei Maria da Penha e à prevenção de situações de violência. 64

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2. Pensão alimentícia como direito das mulheres: estudo sobre alimentos gravídicos

Neste capítulo, apresentaremos a síntese de um memorando elaborado ao Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres da Defensoria Pública do Estado de São Paulo (Nudem) em setembro de 2020, sobre a prestação alimentícia durante o período gestacional. O documento traz análise da jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal, levantamento de projetos de lei relevantes no âmbito federal, estadual e municipal, trabalhos acadêmicos relacionados ao tema e disposições, julgados e menções doutrinárias em outras jurisdições. O objetivo foi apoiar a atuação do Nudem nos autos de procedimento administrativo interno instaurado sobre o tema e para análise do posicionamento dos tribunais no momento da concessão dessa modalidade de alimentos. O memorando evidencia que a aplicação do direito de família deve atentar à desigualdade de gênero existente na sociedade, uma vez que a sobrecarga de mulheres na posição de cuidado lhes impõe situação de desvantagem econômica.

Introdução Este memorando foi elaborado pelo Mattos Filho1 a pedido do Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres (Nudem) da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, dentre as atividades do Termo de Cooperação nº 02/2019, cujo Plano de Trabalho prevê o encaminhamento de consultas de pesquisa que

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Beatriz de Almeida Borges e Silva, Marina Guerra Villela, Carolina Tatagiba Sobreira, Anna Laura Silva, Maria Eduarda Caramez Vieira e Letícia Ueda Vella. 65

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possam subsidiar ações estratégicas, coletivas e/ou de alta complexidade no campo de direitos das mulheres. As informações sistematizadas buscam apoiar a atuação do Nudem nos autos do Procedimento Administrativo nº 288/18, instaurado para o estudo de casos de alimentos gravídicos e análise de liminares após contestação, considerando o número elevado de indeferimentos de pedidos de antecipação da tutela sob o argumento genérico de que “não existem indícios de paternidade”. Para tanto, nos foram solicitadas as seguintes informações: 1. Estudo de processos de alimentos gravídicos, com indicação dos itens seguintes: a) período de gestação; b) provas juntadas; c) parecer do ministério público; d) decisão de indeferimento/deferimento da liminar e fundamentação; e) se houve ou não audiência de justificação; f) existência de agravo e resultado; g) existência da contestação e fundamentos; h) análise da decisão final do processo i) indicação se a parte foi representada pela Defensoria Pública; 2. Estudo de jurisprudência sobre provas em alimentos gravídicos; 3. Estudo de trabalhos acadêmicos sobre o tema; 4. Estudo de propostas legislativas sobre o assunto; 5. Estudo comparado sobre legislação internacional sobre liminares em alimentos gravídicos. O trabalho foi dividido nos seguintes tópicos: (i) análise da jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP), Superior Tribunal de Justiça (STJ) e Supremo Tribunal Federal (STF); (ii) levantamento de projetos de lei relevantes no âmbito federal, estadual e municipal;2 (iii) levantamento de trabalhos acadêmicos relacionados ao tema; e (iv) disposições, julgados e menções doutrinárias em outras jurisdições. As informações foram obtidas nas respectivas páginas web do TJSP, STJ, STF, Senado Federal, Câmara dos Deputados, Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo e Câmara Municipal de São Paulo, bem como em documentos e pesquisas disponíveis nas seguintes bases de dados: Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da Universidade de São Paulo (USP), Repositório de Teses da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Repositório Digital Fundação 2

Os projetos de lei foram pesquisados no site do Senado Federal, Câmara dos Deputados, Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo e Câmara Municipal de São Paulo. Os seguintes termos foram utilizados no campo de pesquisa: “alimentos gravídicos”; alimentos e gestação; alimentos e gravidez; “pensão alimentícia” e gestação; “pensão alimentícia” e gravidez.

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Getulio Vargas (FGV), Repositório de Teses e Dissertações da Universidade de Brasília (UnB), Teses e Dissertações da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Teses e Dissertações Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e Biblioteca de Teses e Dissertações Digital do Mackenzie.3 As informações acerca de outras jurisdições foram encontradas em referências acadêmicas de cada país pesquisado, além de páginas web de órgãos oficiais – sejam governamentais, dos poderes legislativo e judiciário – ou, ainda, de organismos multilaterais, como a Organização dos Estados Americanos (OEA) e o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur).

2.1 Análise de jurisprudência4 Os precedentes analisados são oriundos do STF, STJ e TJSP no período de novembro de 2008 a 10 de junho de 2020. O corte temporal foi definido pela data de vigência da Lei nº 11.804 de 5 de novembro de 2008, que tratou especificamente sobre o tema: a Lei de Alimentos Gravídicos (LAG). Para obtenção dos resultados, os seguintes termos foram pesquisados: “alimentos gravídicos”; alimentos e gestação; alimentos e gravidez; “pensão alimentícia” e gestação; “pensão alimentícia”; gravidez; “alimentos gravídicos” e indenização; alimentos e gestação e indenização; alimentos e gravidez e indenização; “pensão alimentícia” e gestação e indenização; “pensão alimentícia” e gravidez e indenização. As buscas foram realizadas nos sites do STF no campo “Pesquisa livre”5 em jurisprudência e, também, em “ADI, ADC, ADO e ADPF”6 e “Repercussão Geral”;7

3

Selecionadas as primeiras cinco universidades do Brasil, além de duas particulares do estado de São Paulo, classificadas conforme o ranking universitário Folha. Disponível em: https://ruf.folha.uol.com.br/2019/ranking-de-cursos/direito/. Acesso em: 12 mar. 2020.

4

A análise de jurisprudência foi disponibilizada integralmente à Defensoria Pública do Estado de São Paulo em setembro de 2020. Nesta publicação são apresentadas apenas as conclusões referentes a cada conjunto de dados analisados.

5

Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/pesquisarJurisprudencia.asp. Acesso em: 11 mar. 2020.

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Disponível em: https://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/pesquisarPeticaoInicial.asp=0. Acesso em: 11 mar. 2020.

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Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudenciaRepercussao/pesquisarProcesso. Acesso em: 11 mar. 2020. 67

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do STJ, no campo “Pesquisa livre” em jurisprudência8 e em “Repetitivos e IAC”;9 e do TJSP, nos campos “Pesquisa livre” e “Ementa”. Ao todo, foram encontrados 121 processos, para os quais foram coletados os seguintes dados: 1. Informações gerais do processo: “número do processo”, “câmara”, “data de julgamento”, “representação pela Defensoria Pública”, “provas juntadas na inicial”, “parecer do Ministério Público sobre a liminar”; “parecer do Ministério Público sobre a procedência da ação”; “provas juntadas no curso do processo”; 2. Análise da decisão liminar: “resultado”, “fundamentação” e “valor”; 3. Análise de eventual agravo de instrumento: “agravante”; “pedido”; “resultado” e “fundamentação” e “valor”; 4. Contestação: “sim/não” e “fundamentação”; 5. Sentença: “resultado”; “fundamentação” e “valor”; 6. Apelação: “apelante”; “pedido”; “resultado” e “valor”. Foi realizada leitura integral de todos os autos com o objetivo de encontrar as principais categorias de (i) fundamentação das decisões analisadas, (ii) argumentos presentes nas contestações apresentadas e (iii) provas juntadas. Na análise do pedido liminar ou de mérito, as seguintes fundamentações se destacaram: (i) decisão proferida após o nascimento da criança; (ii) ausência de elementos suficientes de paternidade; (iii) ausência de exame de DNA; (iv) busca de enriquecimento ilícito por parte da gestante; (v) casamento entre as partes; (vi) existência de elementos suficientes de paternidade; (vii) existência de relacionamento amoroso; (viii) homologação de acordo entre as partes; (ix) indícios da existência do relacionamento amoroso; (x) necessidade da autora; (xi) necessidade de manifestação do réu; (xii) necessidade de realização de audiência de justificação; (xiii) possibilidade de pagamento do réu; (xiv) relacionamento efêmero; (xv) relacionamento não exclusivo com o réu; (xvi) réu não nega relação sexual; (xvii) réu não assume a paternidade; e (xviii) réu assume a paternidade. Em relação à contestação, os seguintes argumentos foram encontrados: (i) ausência de elementos suficientes de paternidade; (ii) necessidade de exame de DNA; (iii) busca de enriquecimento ilícito por parte da gestante; (iv) necessidade

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Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/. Acesso em: 11 mar. 2020.

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Disponível em: http://www.stj.jus.br/repetitivos/temas_repetitivos/. Acesso em: 11 mar. 2020.

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da autora; (v) possibilidade de pagamento do réu; (vi) relacionamento efêmero; (vii) relacionamento não exclusivo com o réu; e (viii) réu assume a paternidade. Por fim, no que se refere às provas juntadas, as seguintes categorias foram listadas: (i) acordo de divórcio; (ii) certidão de casamento; (iii) certidão de nascimento (da criança ou de outros filhos em comum); (iv) comprovação da gravidez; (v) declaração de testemunhas; (vi) exame de DNA; (vii) fotografias do relacionamento; (viii) mensagens de voz; (ix) mensagens eletrônicas; (x) oitiva de testemunhas; e (xi) publicações em redes sociais. Importante pontuar que, haja vista que as ações tramitam em segredo de justiça, o acesso à cópia integral dos autos nem sempre foi possível, de forma que, nesses casos, os dados analisados e destacados no Anexo I foram obtidos a partir da análise das decisões e dos acórdãos disponíveis. Para melhor compreensão dos precedentes encontrados, dividimos a análise em relação ao (1.1) deferimento de alimentos gravídicos e (1.2) condenação da alimentada, em momento posterior à investigação de parentalidade, que tenha comprovado eventual equívoco da sua parte.

2.1.1 Deferimento de alimentos gravídicos

Seleção analisada A pesquisa de jurisprudência envolvendo processos que versam sobre a fixação de alimentos gravídicos resultou na análise, no STJ, de um total de apenas quatro decisões monocráticas e um acórdão proferido pela Terceira Turma, não tendo sido encontrados resultados nas buscas realizadas no STF. Por sua vez, no TJSP foram analisados 121 processos, sendo que 100 deles foram verificados até a interposição de agravo de instrumento e os outros 21 até o recurso de apelação.

Conclusões Primeiramente, é fundamental considerar que a maioria dos processos resultantes da pesquisa se encontrava em segredo de justiça, o que reduziu sobremaneira o universo de informações disponíveis. Contudo, nos casos em que foi possível uma análise detida dos autos, é possível concluir que a avaliação da probabilidade de deferimento de alimentos gravídicos perpassa 69

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obrigatoriamente pela verificação das provas juntadas pela gestante, haja vista que grande parte das decisões faz uso do argumento genérico da existência/ inexistência de indícios de paternidade. Enquanto não foram encontradas manifestações do STF especificamente sobre o tema analisado, quando eventuais demandas a esse respeito chegam à apreciação do STJ o período de gestação já chegou a termo. Assim, até os autos serem encaminhados ao STJ as particularidades da ação de alimentos gravídicos já deram lugar àquelas referentes à ação de alimentos em prol da criança, o que escapa ao tema do presente memorando. Portanto a única conclusão pertinente que se consegue chegar a partir da análise dos precedentes do STJ é aquela já fixada como tese de repercussão geral, qual seja: A ação de alimentos gravídicos não se extingue ou perde seu objeto com o nascimento da criança, pois os referidos alimentos ficam convertidos em pensão alimentícia até eventual ação revisional em que se solicite a exoneração, redução ou majoração de seu valor ou até mesmo eventual resultado em ação de investigação ou negatória de paternidade (REsp. 1629423/SP, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 06/06/2017, DJe 22/06/2017).

Tese essa que, graças à sua natureza vinculante, indica a pacificação do tema nos tribunais inferiores. Aliás, são nesses tribunais que, nos termos dessa pesquisa, as minúcias e demais aspectos da ação de alimentos gravídicos acabam por serem julgados. Considerando que, em relação aos tribunais inferiores, o presente memorando abrange os precedentes oriundos do TJSP, a análise dos precedentes encontrados (sistematizados no Anexo I) nos permite indicar as seguintes conclusões: 1. Em todos os casos houve pedido liminar e apreciação em primeira instância, sendo confirmada (62%) ou não (38%) a decisão, em Agravo de Instrumento. Em sede de apelação, em pouco mais da metade das decisões (52%) a gestação já veio a termo, tendo sido a ação convertida em ação de alimentos, muitas vezes cominada com investigação de paternidade, cf. tese de repercussão geral supra. 2. O TJSP não é particularmente favorável nem tampouco desfavorável à prestação alimentícia durante o período gestacional, mas as decisões encontradas mencionam grande preocupação com a comprovação da

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parentalidade potencial, nos termos do artigo 6º da LAG,10 e dificuldade na definição do standard probatório exigido ante a impossibilidade da certeza. Nesse sentido: AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE ALIMENTOS GRAVÍDICOS. Pretensão de fixação de alimentos gravídicos em 1/2 salário-mínimo. Indeferimento na origem. Manutenção. Exigência de indícios de paternidade. Inexistência de elementos consistentes a indicar a relação de filiação. Não configuração da hipótese do artigo 6º da Lei nº 11.804/08. Precedentes. DECISÃO PRESERVADA. AGRAVO DESPROVIDO (TJSP. Agravo de Instrumento nº 2013048-94.2020.8.26.0000. 3ª Câmara de Direito Privado. Des. Rel. Donegá Morandini. Julgamento em: 09/03/2020).

3. As provas mais utilizadas por gestantes quando da propositura da ação para comprovar os indícios de paternidade são: troca de mensagens eletrônicas (62%), seguida de fotografias (39%), declarações ou oitivas de testemunhas (18%), publicações das redes sociais (10%) e certidão de casamento (9%). Exames que comprovam a gravidez foram juntados em todos os casos analisados (100%). 4. A despeito de ser uma prova presente em todos os casos, a juntada apenas da comprovação da gestação acarretou, em 100% dos processos, o indeferimento do pedido liminar. Nesses casos, argumenta-se que há ausência de qualquer comprovação de vínculo entre as partes, a título de exemplo: Deixo de arbitrar os alimentos provisórios, ao menos por ora, tendo em vista que, apesar de existir prova pré-constituída da gravidez (fls. 23/25), não se vislumbram, ainda, indícios mínimos da relação mantida entre as partes (artigo 6º da Lei 11.804/08).

Neste sentido: AÇÃO

DE

ALIMENTOS

GR AVÍDICOS.

FIX AÇÃO

LIMINAR.

IMPOSSIBILIDADE. AUSÊNCIA DE PROVA MÍNIMA DA PATERNIDADE.

10

Art. 6º Convencido da existência de indícios da paternidade, o juiz fixará alimentos gravídicos que perdurarão até o nascimento da criança, sopesando as necessidades da parte autora e as possibilidades da parte ré. 71

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Insurgência contra decisão que indeferiu pedido liminar. Decisão mantida. Ausente prova mínima da paternidade, inviável a fixação liminar de alimentos gravídicos (art. 6º, 11.804/2008). Recurso desprovido. (TJSP – 1ª Vara da Família e Sucessões do Foro Regional do Tatuapé – Processo nº 1014340-44.2019.8.26.0008 – Juiz André Yukio Ogata – j. 05.11.2019)

5. Em sede de agravo de instrumento, em apenas uma ocasião houve reforma da decisão que indeferiu a concessão de alimentos provisórios em razão da juntada apenas de comprovantes da gestação, considerando que sobreveio exame de DNA que comprovou a alegada paternidade quando do julgamento do agravo de instrumento. 6. Mais da metade dos pedidos fundamentados apenas em trocas de mensagens e comprovação da gestação foram indeferidos na primeira instância (55%), conforme julgados colacionados a seguir. Agravo de instrumento. Alimentos (fixação). Decisão agravada que rejeita o pedido de arbitramento liminar de alimentos gravídicos. Inconformismo. Desacolhimento. Ação instruída exclusivamente com a reprodução de diálogos mantidos pela rede social “WhatsApp”. Indícios de paternidade ausentes (art. 6º da Lei nº 11.804/2008). Alegações impugnadas pelo agravado em sede de contestação. Prova pericial ainda não realizada. Necessidade de maior elastério probante. Decisão mantida. Agravo desprovido (TJSP. Agravo de Instrumento nº 217929939.2019.8.26.0000. 7ª Câmara de Direito Privado. Des. Rel. Romolo Russo. Julgado em: 27/03/2020). As transcrições de conversas realizadas pelas partes por meio eletrônico (“WhatsApp”) juntados pela agravante não são suficientes, ao menos nessa fase, para comprovar a paternidade de forma a justificar a fixação dos alimentos provisórios, com a concessão da medida de urgência pleiteada, sendo necessária a colheita de mais elementos, a serem apurados em regular instrução, com a instauração do contraditório. [...] Os diálogos comprovam que as partes se relacionaram em uma única oportunidade, e não se infere reconhecimento da paternidade pelo requerido, mas, ao contrário, profunda dúvida, manifestada por 72

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pedidos de realização de exame de DNA (TJSP. Agravo de Instrumento nº 2289064-42.2019.8.26.0000. 6ª Câmara de Direito Privado. Des. Rel. Marcus Vinicius Rios Gonçalves. Julgado em: 11/02/2020).

7. Em 45% dos casos a fundamentação diversa é utilizada para o mesmo conjunto probatório (comprovação da gestação e mensagens eletrônicas), ensejando o deferimento do pedido liminar, de forma que é possível concluir que não há um padrão de julgamento quando da juntada desse tipo de prova. Nessas decisões, importante destacar que o conteúdo das mensagens é sempre analisado, de forma que, quando o réu assume a paternidade ou não nega a existência da relação sexual ou do relacionamento entre as partes, há maior probabilidade de deferimento: 02 – Centrado na seriedade da informação de assistida direta da Def. Pública acerca da existência de namoro à época da concepção, sobretudo em razão do teor das mensagens trocadas pelos litigantes, fixo alimentos gravídicos provisórios em 33% do salário-mínimo nacional mensalmente, devidos a partir do ato citatório inicial (TJSP – 1ª Vara de Família e Sucessões da Comarca de Araraquara – Processo nº 100633747.2018.8.26.0037 – Juiz Ivan Rodrigues de Andrade – j. 25/05/2018). Pois bem. A gravidez restou comprovada por meio dos documentos acostados às fls. 16/24. Já os documentos de fls. 25/30 dão fortes indícios da paternidade do requerido, que afirmou que não fugiria de suas responsabilidades. Ademais, a necessidade alimentar do nascituro é manifesta (TJSP – 5ª Vara Cível do Foro de Limeira – Processo nº 1008401-20.2019.8.26.0320 – Juiz Flavio Dassi Vianna – j. 12/08/2019). In casu, instruem os autos a cópia da caderneta da gestante com data prevista para o parto para o mês de junho de 2019 (fl.15), bem como as mensagens trocadas, em aplicativo, com o requerido, tendo por conteúdo o assunto ora em comento (fls.16/29). Os elementos de prova trazidos aos autos são suficientes para demonstração da provável paternidade, em especial, as mensagens juntadas às fls. 16 e 24, onde o requerido afirma saber que o filho é seu e oferece o valor de R$ 300,00 para as despesas (TJSP – 2ª Vara da Comarca de Capão Bonito – Processo nº 1000545-14.2019.8.26.0123 – Juiz Felipe Abraham de Camargo Jubram – j. 01/03/2019).

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8. Em sede de apelação, seis pedidos fundamentados apenas na comprovação da gravidez e troca de mensagens entre as partes foram reformados, de forma que, ao final, em 75% dos casos a juntada de tal conjunto probatório resultou no deferimento dos alimentos provisórios. 9. A única prova juntada que resultou no deferimento da liminar em quase todos os casos foi a certidão de casamento (86%), considerando que há presunção de paternidade prevista no artigo 1.597 do Código Civil.11 O indeferimento foi verificado em apenas uma situação, tendo sido justificado pela celebração de acordo de divórcio em momento anterior, o qual não mencionou a existência da gravidez. 10. Com exceção da juntada de certidão de casamento e de mensagens eletrônicas, a concessão da liminar resultou da combinação entre diferentes provas (30%), com exceção de dois casos em que houve o deferimento apenas com juntada de comprovação da gestação e fotografias do relacionamento e comprovação da gestação e oitiva de testemunhas. 11. Em sua grande maioria, as decisões liminares12 e de mérito13 acompanharam o parecer do Ministério Público. 12. Nas decisões liminares, as principais fundamentações utilizadas para o deferimento/indeferimento dos alimentos provisórios são a ausência ou existência de indícios suficientes de paternidade. Trata-se de uma motivação genérica, e mesmo quando comparada com o conjunto probatório presente nos autos analisados, não foi possível identificar uma compreensão uníssona do Judiciário acerca das provas necessárias para deferimento de alimentos provisórios, conforme previsto na LAG. Na maioria dos casos, portanto, ainda que não exista um padrão definido, as provas juntadas foram: (i) comprovação da gravidez e mensagens eletrônicas (24%), seguida de (ii) comprovação da gravidez apenas

11

Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: I- nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal; II - nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento; III - havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido; IV - havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga; V - havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido.

12

56 das 88 decisões analisadas acompanharam o parecer do Ministério Público.

13

Em 16 das 18 sentenças nas quais foi possível acessar o parecer do Ministério Público, a sentença foi condizente com a opinião do representante do Ministério Público.

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(21%) e (iii) comprovação da gravidez, fotografias do relacionamento e mensagens eletrônicas (17%). 13. Na maioria dos processos em que houve o deferimento do pedido liminar sob o argumento da “existência de indícios de paternidade”, ainda que não haja um padrão decisório, o seguinte conjunto probatório foi predominante na análise: (i) comprovação da gravidez, fotografias do relacionamento, mensagens eletrônicas e publicações nas redes sociais (30%) e (ii) comprovação da gravidez e mensagens eletrônicas (20%). 14. As provas mais utilizadas por gestantes após toda a instrução probatória para comprovar os indícios de paternidade são: troca de mensagens eletrônicas (54%), sendo utilizados também exames de DNA após o nascimento da criança (46%), fotografias do relacionamento (29%) e publicações das redes sociais (21%). Exames que comprovam a gravidez foram juntados em todos os casos analisados (100%). 15. Nos casos de procedência da ação em que não houve a comprovação da paternidade da criança por meio de exame de DNA, assim como nas decisões liminares, o principal conjunto probatório juntado são mensagens eletrônicas acompanhadas da comprovação da gestação (30%). Em seguida, há a combinação entre comprovação da gravidez, fotografias do relacionamento, mensagens eletrônicas e publicações nas redes sociais (20%). 16. No único caso em que houve procedência da ação apenas com a juntada de comprovação da gestação, o alimentante apresentou sua contestação de forma intempestiva, sendo-lhe aplicados os efeitos da revelia. 17. Assim como nos casos de deferimento ou indeferimento do pedido liminar, não foi possível identificar uma compreensão uníssona do Judiciário acerca das provas necessárias para comprovação da existência de indícios de paternidade que justifiquem a procedência da ação. 18. Por fim, note-se que na maioria dos casos que se prestam à decisão final de mérito já se observa o nascimento da criança (52%), de forma que já estão, portanto, disponíveis outros métodos probatórios e não se configura mais a incerteza particular à investigação de paternidade em período gestacional, facilitando a procedência ou improcedência da ação. Nesse sentido, em todos os casos em que a sentença foi proferida após o nascimento, houve a realização do exame de DNA, o qual ensejou, em todos os casos, a confirmação da paternidade.

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2.2 Indenização em caso de improcedência de pedidos de fixação de alimentos gravídicos Foram encontradas apenas duas decisões relacionadas à indenização em casos de concessão de alimentos gravídicos: uma no STJ e duas no TJSP. Os resultados reconhecem a necessidade de comprovação de dolo ou má-fé por parte da gestante para condená-la à indenização, ou seja, não se está diante da possibilidade de condenação da gestante por culpa lato sensu, o que desmotivaria sobremaneira a utilização do instituto de alimentos gravídicos. A título de exemplo, para melhor compreensão da necessidade de comprovação de dolo ou má-fé apta a gerar o dever de indenizar, vale destacar a sentença proferida pelo juízo da 3ª Vara Cível do Foro de Guarujá do TJSP nos autos do processo nº 0018142-48.2012.8.26.0223: Os danos materiais não procedem diante da irrepetibilidade dos alimentos. Sem prejuízo, não há prova nos autos de que a desconfiança da ré, de que pudesse o autor ser pai do filho que esperava, não tivesse qualquer fundamento e que aquele tivesse se utilizado do processo para outros fins, o que não se pode presumir. Nada indica nos autos que a ré tenha excedido o seu direito constitucional de se obter uma prestação jurisdicional sobre questão que entendia ter direito. Nesses termos, o fato narrado é insuscetível de indenização, tendo em vista que a ré se socorreu do Poder Judiciário dentro dos limites constitucionalmente e legais previstos para exercício de seu direito, pautado em elementos fáticos fortes a subsidiar a sua pretensão e, ademais, através de ação que corre, por lei, em segredo de justiça. Não vislumbrada a prática de ato ilícito, não há que se falar em indenização.

Nesse mesmo sentido caminham os precedentes de segunda instância analisados. Vejamos: AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS C.C. REPETIÇÃO DE INDÉBITO (Alimentos). Sentença de improcedência. Gravidez indesejada e casamento imposto, que culminaram com o registro de um filho que o autor posteriormente descobriu não ser seu, via exame de DNA em sede de negatória de paternidade. Improcedência em 1º Grau. Revelia. Os efeitos da revelia não se operam em demandas envolvendo direitos indisponíveis. Inteligência do art. 320, II, do CPC. Repetição de 76

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indébito. Reconhecimento de que os alimentos são irrepetíveis, ainda que indevidamente pagos. Pretensão que deveria ter sido dirigida ao menor, quem teria recebido indevidamente, e não à genitora representante legal do menor, parte ilegítima na demanda. Danos morais. Documentos indicando o padecimento de doença psíquica que antecedeu a decisão favorável à exclusão de paternidade. Ausência de nexo causal entre as doenças psiquiátricas e o sofrimento de ter sido exposto ao vexame decorrente da descoberta de que teria registrado um filho que não era seu. Sentença que julgou improcedente a ação devidamente fundamentada. Apelante não inovou o que já havia sido exposto nos autos e rebatido na sentença. Motivação da sentença adotada como fundamentação do julgamento em segundo grau. Adoção do art. 252 do RITJ. Sentença de improcedência mantida. Recurso improvido (TJSP. Apelação nº 0002766-93.2010.8.26.0125, Rel. James Siano, 5ª Câmara de Direito Privado, julgado em 19/06/2011). APELAÇÃO CÍVEL Ação de indenização por danos materiais e morais. Sentença de improcedência Manutenção Hipótese em que a ora ré ajuizou ação de alimentos gravídicos contra o autor. Simples ajuizamento de ação que não gera dever de indenizar Exercício regular de direito. Recurso não provido (TJSP. Apelação nº 0018142-48.2012.8.26.0223, Rel. José Carlos Ferreira Alves, 2ª Câmara de Direito Privado, julgado em 20/10/2015).

A análise dos precedentes encontrados nos permite concluir que o simples ajuizamento da ação de alimentos gravídicos não pode, por si só, ensejar o pagamento de indenização, caso a paternidade, após o nascimento da criança, não reste confirmada. Em realidade, exige-se a comprovação da responsabilidade subjetiva da gestante, devendo-se demonstrar que ela tinha conhecimento de que o requerido não era o genitor da criança, mas se valeu desse instituto para obter vantagem financeira.

2.3 Trabalhos acadêmicos sobre o tema A busca por trabalhos acadêmicos se deu mediante pesquisa nas seguintes bases de dados: Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da USP, Repositório de Teses da UFMG, Repositório Digital FGV, Repositório de Teses e Dissertações

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da UnB, Teses e Dissertações da UFRJ, Teses e Dissertações PUC-SP e Biblioteca de Teses e Dissertações Digital do Mackenzie.14 Após o esgotamento das bibliotecas universitárias, considerando o reduzido número de resultados – foi encontrada apenas uma dissertação da Biblioteca da UFRJ –, a pesquisa foi estendida para as seguintes fontes de pesquisa: Google Acadêmico e Checkpoint.15 Como resultado, foram mapeados os seguintes trabalhos:

Base de dados: Teses e Dissertações da UFRJ • FONTE, Juliana Victória Fernandes da. Análise crítica da regulamentação dos alimentos gravídicos no Brasil, a partir da visão dos nossos tribunais. 2018. 62 f. TCC (Graduação) – Curso de Direito, Faculdade Nacional de Direito, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.16 Resumo: a monografia “visa aprofundar o estudo sobre o instituto dos alimentos gravídicos, introduzido no ordenamento jurídico brasileiro pela Lei nº 11.804, de 5 de novembro de 2008. A partir de então, a gestante pode pleitear judicialmente para que o pai do nascituro também se responsabilize financeiramente com os gastos necessários para que a gestação transcorra de forma segura. Trata-se de verba de caráter alimentar, para suprir as necessidades do nascituro. Nesse sentido, será exposta a evolução do instituto dos alimentos no ordenamento jurídico brasileiro e suas principais características. Serão esclarecidos, também, os aspectos processuais da referida Lei, as regras procedimentais estabelecidas para a ação de alimentos gravídicos, as divergências doutrinárias e o posicionamento do Poder Judiciário acerca do tema.” Trechos relevantes: A maior parte da doutrina defende que se, posteriormente, for comprovado que o réu não é o pai do nascituro, a autora pode ser condenada ao pagamento de multa por litigância de má-fé, de indenização a título de dano material e de compensação a título de dano moral. Para tanto,

14

Selecionadas as cinco melhores universidades do Brasil, além de duas particulares do estado de São Paulo, conforme o ranking universitário Folha. Disponível em: https://ruf. folha.uol.com.br/2019/ranking-de-cursos/direito/. Acesso em: 12 mar. 2020.

15

Base de dados disponibilizada pelo Thomson Reuters destinada ao acompanhamento e seleção de jurisprudência. Disponível em: http://www.fiscosoft.com.br/decisoes. Acesso em: 23 jun. 2020.

16

Disponível em: https://pantheon.ufrj.br/handle/11422/7591. Acesso em: 23 jun. 2020.

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aquele que foi apontado como pai e obrigado a prestar alimentos deve comprovar que a gestante sabia que ele não era o pai, mas se valeu desse instituto para obter vantagem financeira, ou seja, que ela agiu de má-fé. Essa parcela da doutrina, com base nos artigos 186 e 187 do Código Civil, entende que, para evitar o enriquecimento sem causa, a conduta da gestante pode ser considerada ato ilícito e ela deve ser obrigada a indenizar aquele que sofreu o dano, conforme prevê o artigo 927 do Código Civil. [...] Observa-se, portanto, que mesmo aqueles que defendem a possibilidade de responsabilização da gestante adotam a responsabilidade subjetiva, sendo essencial a comprovação da culpa – em sentido estrito ou em sentido lato, abrangendo também o dolo.

Outras fontes de pesquisa: Checkpoint e Google Acadêmico • LUZ, Silva Lopes da. Alimentos gravídicos: Responsabilidade civil por erro de paternidade. Revista dos Tribunais, ano 107, v. 988, p. 181-194, fev. 2018.17 Resumo: analisa a responsabilidade civil em caso de erro de paternidade, quando estipulados alimentos gravídicos. Trechos relevantes: Nessa seara, cabe referir que, por meio dos métodos hermenêuticos para a solução de lacunas legais, os possíveis efeitos do erro de paternidade, quanto à prestação de alimentos gravídicos podem ser: ação de repetição de indébito (in rem verso) referente aos alimentos gravídicos, indenização por danos materiais e indenização por danos morais, além de outras consequências a serem analisadas no caso concreto.

• PAIXÃO, Antônio Côrtes da. Aspectos processuais da Lei de Alimentos Gravídicos. Revista de Processo, vol. 183/2010, p. 119-144, maio 2010. Resumo: trata-se de um breve estudo dos aspectos processuais da Lei 11.804/2008, abordando questões como o conjunto probatório, a antecipação 17 Disponível em: http://www.mprj.mp.br/documents/20184/540394/Revista_dos_ Tribunais_n_988.pdf. Acesso em: 23 jul. 2020. 79

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de tutela, as causas de extinção do processo com e sem julgamento de mérito, a exoneração do devedor e a presunção de não paternidade se o réu ou sua genitora se recusarem a submeter-se ao exame de DNA. • SANTOS, Ana Maria Zuzarte Ferreira Santos; OLIVEIRA, Ilzver de Matos. A indenização por condenação provisória na ação de alimentos gravídicos. Ideias & Inovação, v. 5, n. 1, p. 31-44, abr. 2019.18 Resumo: o artigo tem como objetivo “avaliar a possibilidade de ação de regresso em desfavor da genitora no momento em que o resultado do exame de paternidade for negativo. Sabe-se que o dever de proporcionar alimentos à prole aparece anteriormente ao seu nascimento. Com isso a moderna legislação de alimentos gravídicos garante o seu direito a alimentos, isto é, alimentos à gestante, que após o nascimento da criança é convertido em pensão alimentícia, entretanto essa ação é baseada apenas em indícios e sua confirmação apenas poderá ser feita após o nascimento com vida da criança, assim, é possível uma ação de indenização nos casos em que não for confirmada a paternidade. Para responder a esse questionamento, a metodologia utilizada nesta pesquisa será bibliográfica e documental". Trechos relevantes: Trata-se de norma intimidadora, pois cria hipótese de responsabilidade objetiva pelo simples fato de se ingressar em juízo e não obter êxito. O dispositivo pressupõe que o simples exercício do direito de ação pode causar dano a terceiros, impondo ao autor o dever de indenizar, independentemente da existência de culpa, medida que atenta contra o livre exercício do direito de ação. É possível compreender que, se for impetrada ação de alimentos gravídicos em desfavor do hipotético genitor de modo equivocado, ele não se encontrará desprotegido pela legislação, mesmo com a irrepetibilidade dos alimentos. Emprega-se, nesta situação, a regra geral da responsabilidade civil, conforme prevê o Código Civil, em seu art. 186, podendo o genitor indicado requerer do correto genitor as importâncias liquidadas à mãe no tempo da gestação.

18

Disponível em: https://periodicos.set.edu.br/index.php/ideiaseinovacao/article/view/7086. Acesso em: 23 jun. 2020.

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• TEIXEIRA, Cintia Porto. A possibilidade de indenização por danos morais dos alimentos gravídicos pagos indevidamente: estudo sob a ótica do princípio da irrepetibilidade dos alimentos. 2015. 79 f. TCC (Graduação) – Curso de Direito, Universidade do Extremo Sul Catarinense, Criciúma, 2015.19 Resumo: “o presente trabalho tem como enfoque a Lei 11.804/2008 que disciplina os alimentos gravídicos e a responsabilidade da genitora pela imputação falsa de paternidade. Tal instituto tem como objetivo amparar a mulher grávida, fazendo com que o suposto pai do nascituro contribua financeiramente com as despesas decorrentes da gravidez. Ao longo do trabalho, foi demonstrado que o nascituro, independentemente da lei em questão, é amparado pela Constituição Federal, que lhe garante o direito à vida. Os alimentos são fixados com base em indícios de paternidade. Devido a isso, há possibilidade de falsa imputação de paternidade, ou seja, os alimentos serão pagos por pessoa diferente do pai biológico do nascituro, assim o estudo se desenvolveu de modo a analisar a possibilidade de o réu ser indenizado por dano material e moral caso se constate que não se tratava do pai da criança. O método de pesquisa utilizado no presente trabalho foi o dedutivo, em pesquisa teórica e qualitativa com emprego de material bibliográfico e documental legal. Também foram utilizadas jurisprudências com o propósito de analisar a questão do presente trabalho debatida nos tribunais pátrios.” Trechos relevantes: [...] vê-se que referido princípio [irrepetibilidade] aumenta ainda mais a responsabilidade das decisões judiciais e só poderá ser flexibilizado diante de dolo, má-fé, abuso de direito e o enriquecimento ilícito, para não cometer injustiças. [...] Sendo assim, resta evidenciado que a autora pode ser condenada a pagar indenização por danos morais ao réu, no caso de o resultado do exame pericial de paternidade der negativo, se essa se valeu do instituto dos alimentos gravídicos com dolo, má-fé e usando indevidamente seu direito de ação (abuso de direito), pois, caso a genitora tenha ingressado com a ação pensando que o réu era realmente o pai da criança, não há que se falar em indenização.

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Disponível em: http://repositorio.unesc.net/handle/1/3759. Acesso em: 23 jun. 2020. 81

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2.4 Projetos de lei Foram realizadas consultas às bases de pesquisa do Senado Federal, Câmara dos Deputados, Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo e Câmara dos Vereadores de São Paulo. Os seguintes termos foram consultados: “alimentos gravídicos”; alimentos e gestação; alimentos e gravidez; “pensão alimentícia” e gestação; “pensão alimentícia” e gravidez. Utilizando-se os parâmetros citados, no momento de realização desta pesquisa não foram identificados projetos de lei referentes à temática dos alimentos gravídicos em nenhum dos seguintes âmbitos: i) Federal; ii) Estadual (São Paulo) e iii) Municipal (São Paulo).

2.5 Disposições, julgados e menções doutrinárias em outras jurisdições Indicamos, a seguir, a título exemplificativo, previsões legais, julgados e menções doutrinárias acerca de alimentos gravídicos, encontradas em fontes oficiais da Argentina, Colômbia, Equador, França, Inglaterra, Espanha e Estados Unidos. Ressaltamos que não se trata de estudo comparativo, mas de breve levantamento, que buscou contemplar países de diferentes continentes, signatários da Convenção Interamericana sobre Obrigação Alimentar ou Convenção de Haia sobre Alimentos. De acordo com os resultados obtidos, Argentina, Equador e Espanha possuem previsões expressas em sua legislação acerca da possibilidade de concessão de alimentos gravídicos, conforme tabela a seguir.

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País

Previsão legal

Artigo 2º da Convenção dos Direitos da Criança20

“Con relación al artículo 1º de la CONVENCION SOBRE LOS DERECHOS DEL NIÑO, la REPUBLICA ARGENTINA declara que el mismo debe interpretarse en el sentido.

Artigo 665 do Código Civil e Comercial21

“Mujer embarazada. La mujer embarazada tiene derecho a reclamar alimentos al progenitor presunto con la prueba sumaria de la filiación alegada”.22

Lei

Previsão legal

Artigo 148 do Código Orgânico da Criança e do Adolescente23

“La mujer embarazada tiene derecho, desde el momento de la concepción, a alimentos para la atención de sus necesidades de alimentación, salud, vestuario, vivienda, atención del parto, puerperio, y durante el período de lactancia por un tiempo de doce meses contados desde el nacimiento del hijo o hija; si la criatura muere en el vientre materno, o el niño o niña fallece luego del parto, la protección a la madre subsistirá hasta por un periodo no mayor a doce meses contados desde que se produjo la muerte fetal o del niño o niña.”24

Argentina

País

Equador

Disposições sobre concessão de pedido liminar

Lei

Artigo 550 do Código Civil e Comercial “Medidas cautelares. Puede disponerse la traba de medidas cautelares para asegurar el pago de alimentos futuros, provisionales, definitivos o convenidos. El obligado puede ofrecer en sustitución otras garantías suficientes”.

20

Disponível em: https://www.oas.org/dil/esp/Convencion_sobre_los_Derechos_del_Nino_ Argentina.pdf. Acesso em: 28 jul. 2020.

21

Disponível em: http://www.nuevocodigocivil.com/wp-content/uploads/2015/texto-boletinoficial.pdf. Acesso em: 23 jul. 2020.

22

Esse direito já foi reconhecido por decisão proferida pelo “Juzgado de Familia de Segunda Nominación de Córdoba”, em 25 de fevereiro de 2013. Disponível em: https://revistas.unlp. edu.ar/RevistaAnalesJursoc/article/download/3985/3805/, p. 108. Acesso em: 28 jul. 2020.

23

Disponível em: https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/BDL/2014/9503.pdf. Acesso em: 23 jul. 2020.

24

Esse direito já foi reconhecido em diversas decisões da Corte Nacional de Justiça do Equador. Como exemplo, há as Resoluções 144-2012, 369-2012, 30-2013, 34-2013. Disponível em: https://appsj.funcionjudicial.gob.ec/jurisprudencia/buscador.jsf. Acesso em: 28 jul. 2020.

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País

Lei

Previsão legal

Disposições sobre concessão de pedido liminar Artigo 148 do Código Civil “La obligación de dar alimentos será exigible desde que los necesitare,

Espanha

Artigo 142 do Código Civil25

“Se entiende por alimentos todo lo que es indispensable para el sustento, habitación, vestido y asistencia médica. Los alimentos comprenden también la educación e instrucción del alimentista mientras sea menor de edad y aun después cuando no haya terminado su formación por causa que no le sea imputable. Entre los alimentos se incluirán los gastos de embarazo y parto, en cuanto no estén cubiertos de otro modo”.

para subsistir, la persona que tenga derecho a percibirlos, pero no se abonarán sino desde la fecha en que se interponga la demanda. Se verificará el pago por meses anticipados, y, cuando fallezca el alimentista, sus herederos no estarán obligados a devolver lo que éste hubiese recibido anticipadamente. El Juez, a petición del alimentista o del Ministerio Fiscal, ordenará con urgencia las medidas cautelares oportunas para asegurar los anticipos que haga una Entidad pública u otra persona y proveer a las futuras necesidades”.

Quanto à possibilidade da concessão de alimentos gravídicos de forma liminar na Argentina, Equador e Espanha, não foram encontrados julgados que tratam especificamente da questão. A Corte Suprema de Justiça da Nação Argentina, entretanto, reconheceu que nas reivindicações relacionadas à pensão alimentícia em favor de crianças, os juízes devem procurar soluções que se adequem à urgência que esse tipo de pedido exige:

25

Disponível em: https://www.boe.es/eli/es/rd/1889/07/24/(1)/con. Acesso em: 23 jul. 2020.

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8º) Que ello es así pues cuando se trata de reclamos vinculados con prestaciones alimentarias a favor de menores, los jueces deben buscar soluciones que se avengan con la urgencia que conlleva este tipo de pretensiones, para lo cual deben encauzar los trámites por las vías expeditivas y evitar que el rigor de las formas pueda conducir a la frustración de derechos que hoy cuentan con particular tutela constitucional, lo cual se produciría en el caso si el reclamo efectuado por la actora tuviese que aguardar a la resolución del referido juicio ordinario y en ese lapso quedaran sin protección alguna los intereses cuya satisfacción se requiere en estos autos.26

Além disso, Mariel Molina27 menciona que os alimentos gravídicos se instrumentalizam em processos de natureza cautelar: Se trata de alimentos provisorios que se instrumentan mediante un proceso de naturaleza cautelar, por eso se debe probar la verosimilitud del derecho (prueba sumaria de la filiación alegada judicialmente), sin perjuicio de acreditar los rubros y el alcance de sus necesidades.28

Nesse sentido, de acordo com a professora, seria possível a concessão de alimentos gravídicos por meio de pedido liminar na Argentina, bastando a prova da verossimilhança do direito. Na Colômbia, destacamos um precedente da Corte Constitucional, que estabeleceu que a obrigação dos pais surge desde o momento da concepção, inclusive para a prestação de alimentos.29 Nesse sentido: Si la pareja, tiene derecho a decidir libre y responsablemente el momento en que desea tener un hijo, debe asumir esa decisión como la de mayor trascendencia en la vida, pues la determinación implica la proyección hacia el futuro del hijo. El cuidado, sostenimiento, educación y cariño que reciba de sus padres se reflejará en un niño sano y en un adulto capaz de desarrollar plenamente su libre personalidad. La obligación de velar por la vida del 26

Disponível em: https://sj.csjn.gov.ar/sj/suplementos.do?method=ver&data=intsupn, p. 105. Acesso em: 28 jul. 2020.

27

Professora de Direito de Família na Universidad Nacional de Cuyo (Argentina).

28

MOLINA DE JUAN, Mariel F. Alimentos a los hijos em el Código Civil y Comercial. p. 19. Disponível em: http://www.scba.gov.ar/leyorganica/ccyc30/pdfley/Molina_de_Juan_Alimentos_a_ los_hijos_en_el_Codigo_CivilyComercial.pdf. Acesso em: 28 jul. 2020.

29

Sentença disponível em: https://www.corteconstitucional.gov.co/relatoria/1993/t-179-93. htm. Acesso em: 23 jun. 2020. 85

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nasciturus no responde a una simple obligación alimentaria, pues la madre requiere de los cuidados permanentes, de una constante vigilancia médica que le garanticen en forma mínima la atención del parto y los primeros cuidados del niño.

Muito embora não seja possível afirmar o entendimento jurisprudencial daquele país, o precedente indica ser viável a solicitação de alimentos gravídicos por gestantes na Colômbia. A França, de acordo com Carlos Roberto Gonçalves,30 utiliza a teoria concepcionista, segundo a qual a personalidade começa antes do nascimento, pois desde a concepção já há proteção dos interesses do nascituro.31 Soma-se a isso o previsto no artigo 342 do Código Civil daquele país, que prevê a possibilidade de que qualquer criança cuja paternidade não esteja legalmente estabelecida possa reivindicar subsídios de alguém que teve relações com sua mãe durante o período legal da concepção.32 No Reino Unido, o Children Act33 e o Child Support Act34 tratam, respectivamente, sobre a responsabilidade dos pais,35 bem como da questão da fixação de pensão alimentícia após o nascimento.36 Os dispositivos legais indicam que (i) o nascituro não tem direitos legais reconhecidos separadamente dos

30

Conforme verificado pelos artigos 16, 725 e 906 do Código Civil Francês. Disponível em: https://www.legifrance.gouv.fr/affichCode.do;jsessionid=CA9E6F002A8169FA19A9DC8B5F7577B8.tplgfr34s_2?cidTexte=L. Acesso em: 22 set. 2022.

31

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007.

32

Disponível em: https://www.legifrance.gouv.fr/affichCode.do;jsessionid=011FE360C5C6F0A96AA555601E96F4C5.tplgfr34s_2?idSectionTA=LEGISCTA000006136527&cidTexte=LEGITEXT000006070721&dateTexte=20200526. Acesso em: 23 jul. 2020.

33

Disponível em: https://www.legislation.gov.uk/ukpga/1989/41/contents?view=plain. Acesso em: 23 jun.2020.

34

Disponível em: https://www.legislation.gov.uk/ukpga/1991/48. Acesso em: 23 jun. 2020.

35

“An Act to reform the law relating to children; to provide for local authority services for children in need and others; to amend the law with respect to children’s homes, community homes, voluntary homes and voluntary organisations; to make provision with respect to fostering, child minding and day care for young children and adoption; and for connected purposes.” Disponível em: https://www.legislation.gov.uk/ukpga/1989/41/introduction. Acesso em: 23 jun. 2020.

36

“An Act to make provision for the assessment [2 calculation], collection and enforcement of periodical maintenance payable by certain parents with respect to children of theirs who are not in their care; for the collection and enforcement of certain other kinds of maintenance; and for connected purposes.” Disponível em: https://www.legislation.gov. uk/ukpga/1991/48. Acesso em: 23 jul. 2020.

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direitos da mãe37 e (ii) a responsabilidade parental do genitor só advém após o nascimento da criança.38 Por fim, nos Estados Unidos, em 28 de fevereiro de 2020, foi apresentado no Senado um projeto de lei denominado Unborn Child Support Act,39 que permitiria que as Cortes tivessem o poder de (i) estabelecer alimentos gravídicos e (ii) determinar o seu pagamento de forma retroativa, após o bebê nascer, tendo como prazo inicial a data de concepção, a qual seria determinada por um médico.40

Conclusão Com o objetivo de apoiar a atuação do Nudem nos autos do Procedimento Administrativo nº 288/2018, o presente memorando consolida um panorama acerca dos alimentos gravídicos a partir de duas perspectivas: (i) concessão/ indeferimento de pedido liminar e procedência/improcedência da ação e (ii) indenização em casos de posterior comprovação da negativa de paternidade. A partir da análise das decisões liminares apreciadas, foi possível constatar que o TJSP não possui um posicionamento favorável nem tampouco desfavorável à prestação alimentícia durante o período gestacional, entretanto a maior dificuldade para concessão de alimentos é a comprovação da parentalidade potencial e dificuldade na definição do conjunto probatório exigido, considerando a impossibilidade da certeza. Ademais, percebe-se que a palavra da mulher não é, em geral, suficiente para que haja o convencimento do juízo acerca da existência de indícios da paternidade, já que a mera juntada de documentos que comprovem a gestação e a afirmação quanto à paternidade desacompanhada de provas não são suficientes para o deferimento do pedido liminar (o indeferimento aconteceu em 100% dos casos). Além disso, o conjunto probatório necessário para o deferimento dos alimentos provisórios varia conforme a interpretação de cada magistrado ou

37

Para mais informações: PER WESTMAN. Protection of the unborn child and the rights of parents, p. 2. Disponível em: https://svjt.se/svjt/1993/480. Acesso em: 23 jul. 2020.

38

Disponível em: https://childlawadvice.org.uk/legal-position-relating-to-unborn-children/. Acesso em: 23 jul. 2020.

39 Disponível em: https://www.govtrack.us/congress/bills/116/s3236/text. Acesso em: 23 jul. 2020. 40

Disponível em: https://www.congress.gov/bill/116th-congress/senate-bill/3236/text. Acesso em: 7 ago. 2020. 87

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magistrada, sendo difícil definir padrões. Nesse ponto, importante destacar as seguintes questões: (i) A juntada de certidão de casamento, em geral, enseja o deferimento dos alimentos, haja vista a presunção de paternidade prevista no artigo 1.597 do Código Civil (86% dos casos analisados).41 Dos casos analisados, houve apenas um indeferimento, mas apenas pela existência de acordo de divórcio, sem menção à gestação; (ii) O deferimento ocorre, em grande parte das vezes (30%), quando é realizada a juntada de uma combinação de diferentes tipos de provas para além dos resultados de exames que comprovem a gestação; (iii) É bastante comum a juntada da comprovação da gestação acompanhada da troca de mensagens eletrônicas entre as partes. Nesses casos, não há um padrão decisório, de forma que em 55% dos processos analisados houve o indeferimento do pedido liminar e nos 45% restantes o deferimento dos alimentos provisórios; (iv) Importante notar que das decisões de indeferimento às quais foi interposto agravo de instrumento pela gestante, em 75% dos casos houve a concessão da liminar. Se o réu admite a paternidade ou confirmar a ocorrência de relações sexuais ou de relacionamento, as chances de deferimento são maiores. Por sua vez, o cenário se modifica no que tange à análise das sentenças, tendo em vista que, em decorrência da demora para o julgamento definitivo da ação, o processo em primeira instância é comumente julgado em momento posterior ao nascimento da criança, de forma que os meios de prova para comprovação da paternidade tornam-se simplificados, sendo possível a realização de exame de DNA (52% das sentenças analisadas). Nesse ponto, cumpre ressaltar que o STJ consolidou o entendimento, por meio de tese de repercussão geral, acerca da possibilidade de conversão da ação

41

Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: I - nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal; II - nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento; III - havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido; IV - havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga; [cont.] V - havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido.

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de alimentos gravídicos em ação de fixação de alimentos em favor da criança nascida, previsão também estabelecida no artigo 6º, parágrafo único da LAG.42 Além disso, assim como na análise do pedido liminar, a procedência da ação resultou da combinação entre diferentes provas (50%), com exceção de quatro situações: (i) comprovação da gravidez (10%), (ii) comprovação da gravidez e certidão de casamento (10%) e (iii) comprovação da gravidez e mensagens eletrônicas (30%). Novamente, faz-se necessário ressaltar que a maioria dos processos identificados se encontrava em segredo de justiça, o que limitou as informações disponíveis, o que deve ser ponderado quanto ao alcance das conclusões aqui apresentadas. No que se refere à indenização em casos de posterior comprovação da negativa de paternidade, foi possível concluir que o tema é majoritariamente debatido na doutrina, a qual, por meio de sua corrente majoritária, compreende que caso a paternidade não reste confirmada, o simples ajuizamento da ação de alimentos gravídicos não pode, por si só, ensejar o pagamento de indenização. Para tanto, é necessária a comprovação da responsabilidade subjetiva da gestante, devendo-se demonstrar que ela tinha conhecimento de que o requerido não era o genitor da criança, mas se valeu desse instituto para obter vantagem financeira. Os poucos julgados encontrados na presente pesquisa confirmam a adoção dessa compreensão. No tocante à produção acadêmica, foram encontradas cinco pesquisas que tratam especificamente do tema de alimentos gravídicos, das quais três tratam da possibilidade de pagamento de indenização pela gestante em caso de posterior comprovação de erro de paternidade. Em todos os trabalhos acadêmicos analisados a possibilidade de condenação é condicionada à responsabilidade subjetiva da gestante, devendo-se demonstrar que ela tinha conhecimento de que o requerido não era o genitor da criança, mas se valeu desse instituto para obter vantagem financeira. Quanto à previsão legislativa e de jurisprudência em outros países, foi possível identificar que, em sete países pesquisados (Argentina, Colômbia, Equador, França, Inglaterra, Espanha e Estados Unidos), apenas três (Argentina, Equador e Espanha) possuem previsões expressas em sua legislação acerca da possibilidade de concessão de alimentos gravídicos, sendo possível o seu deferimento em sede de liminar em todos os casos, conforme previsão legal – a 42

Art. 6º, Parágrafo único. Após o nascimento com vida, os alimentos gravídicos ficam convertidos em pensão alimentícia em favor do menor até que uma das partes solicite a sua revisão. 89

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despeito de não terem sido encontrados julgados nesse sentido. Nos demais países (Colômbia, Estados Unidos, França e Inglaterra), não foram encontradas leis que tratam especificamente da temática. Acredita-se, nesse sentido, que as hipóteses para a melhoria da efetividade dos processos de alimentos gravídicos apresentadas pelo Nudem, quais sejam: maior divulgação do tema; melhor orientação das gestantes sobre provas que podem ser juntadas; insistência na audiência de justificação e na valorização da palavra da autora; e aumento do número de agravos são pertinentes e podem colaborar com uma maior garantia dos direitos das gestantes em tais ações.

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3. O instituto das imunidades parlamentares no ordenamento jurídico brasileiro: contribuição com o caso Barbosa de Souza e outros vs. Brasil

Este memorando foi elaborado ao Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil), consórcio de organizações da América Latina que objetiva a implementação das normas internacionais de direitos humanos nos Estados-membros da Organização dos Estados Americanos (OEA), utilizando-se para tanto do sistema composto pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte-IDH).1 O documento contribuiu com as argumentações apresentadas pela organização em audiência pública do caso Barbosa de Souza e outros vs. Brasil, em julgamento na Corte-IDH, que versa sobre o assassinato de uma adolescente ocorrido em 1998 em João Pessoa, capital do estado da Paraíba. À época, as investigações ligaram a morte da vítima a um deputado estadual que, por ser detentor de imunidade parlamentar, não foi investigado durante sucessivos mandatos. Somente em 2002, ano em que o parlamentar não foi reeleito, as investigações foram retomadas. Ele foi condenado em primeira instância em 2007, mas faleceu de causas naturais antes que a pena fosse confirmada. Com sua morte, a punibilidade foi extinta e o processo foi arquivado. O texto evidencia a necessidade de que as imunidades parlamentares sejam aplicadas a fatos estritamente relacionados à função parlamentar para que não constituam obstáculo à justiça, em especial em se tratando de casos de violência contra a mulher.

1

Anna Carolina Gandolfi, Carolina Bigulin Paulon Moreno, Giovanna Rodrigues Cavalari, Janaína Vargas, Julia Piazza Leite Monteiro, Juliana Gomes Ramalho Monteiro, Tábata Boccanera Guerra de Oliveira, Marilia Lofrano, Marina Dutra Marques e Nathane da Franca. 91

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3.1 Imunidades parlamentares: origem histórica, fundamentos políticos e jurídicos e conceito O registro mais antigo das primeiras noções sobre imunidades parlamentares pode ser extraído da Bill of Rights, produzida em 1689, na Inglaterra. Visando garantir independência ao Parlamento, a carta garantiu a inviolabilidade da atividade legislativa aos arbítrios da monarquia ao assegurar dois direitos fundamentais da atividade parlamentar: freedom of speech (liberdade de expressão; imunidade material) e freedom from arrest (imunidade contra prisão; imunidade formal). Segundo essa carta de direitos, os parlamentares gozariam de liberdade de expressão e de debate e as opiniões proferidas dentro do Parlamento não seriam objeto de questionamento em qualquer corte ou tribunal. As primeiras noções de imunidades lançadas na Bill of Rights foram reproduzidas por outros países, como Estados Unidos2 e França,3 e anteciparam os contornos contemporâneos dos institutos.4 No constitucionalismo contemporâneo, especialmente em razão da consolidação do sistema de divisão de poderes, a imunidade parlamentar é prerrogativa essencial ao funcionamento do sistema democrático. Trata-se de proteção que assegura ao Poder Legislativo a garantia do livre exercício das funções parlamentares diante dos demais Poderes.5 Por meio do sistema de imunidade parlamentar, assegura-se ao representante eleito – porta-voz, portanto, dos

2

Nos Estados Unidos, as imunidades parlamentares foram inseridas na Constituição de 1787 para proteger as opiniões e os debates proferidos dentro do recinto do Parlamento. A opção constitucional resguarda o Parlamento enquanto instituto e não garante inviolabilidade pessoal ao parlamentar. Enquanto a imunidade material protege as opiniões e os debates tidos nas dependências do Parlamento, a imunidade formal se limitava a isentar o parlamentar de prisão em procedimentos criminais.

3

Na França, o Decreto de 20 de junho de 1789, criado na primeira Assembleia Nacional Francesa, registrou que a pessoa de cada deputado era inviolável.

4

STRECK, Lenio L. Comentário ao artigo 53. In: CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES Gilmar F.; SARLET, Ingo W. (Coords.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013, p. 1072.

5

KURANAKA, Jorge. Imunidades parlamentares. In: SANTOS, Divani Alves dos. Imunidade parlamentar à luz da Constituição Federal de 1988. São Paulo: J. Oliveira, 2002, p. 12. [manuscrito]. Disponível em: http://bd.camara.gov.br/bd/bitstream/handle/bdcamara/3604/ imunidade_parlamentar_divani.pdf?sequence=4. Acesso em: 29 set. 2019.

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interesses da população – o exercício autônomo e independente da sua função,6 protegendo-o contra eventual coação de particulares e dos demais Poderes.7 O sistema de imunidades parlamentares surge, portanto, como consequência da divisão de poderes e assegura proteção específica para que parlamentares exerçam suas funções sem interferência abusivas.8 Como regra geral, as imunidades parlamentares são divididas entre a imunidade material e a imunidade formal. A imunidade material isenta o parlamentar de responsabilidade decorrente de seus votos, palavras ou opiniões, exarados no exercício do mandato ou em função dele. Trata-se de garantia intimamente ligada à liberdade de expressão e à necessidade de assegurar a plenitude da atuação política para que o parlamentar eleito defenda os interesses que lhe foram confiados pelo voto popular. A imunidade formal assegura prerrogativas aos parlamentares quanto à prisão e à eventuais persecuções penais conduzidas contra eles. Tendo o Poder Judiciário competência para decretar prisões e decidir sobre a culpabilidade de réus, a imunidade formal assegura mecanismos que podem ser acionados pelo Poder Legislativo para impedir a intervenção abusiva do Poder Judiciário na atividade parlamentar.

3.2 As imunidades parlamentares no constitucionalismo brasileiro Desde o Império, com avanços e retrocessos inerentes a cada período histórico, todas as constituições asseguraram imunidades à atividade parlamentar no Brasil.

6

DIAS, Roberto; LAURENTIIS, Lucas de. Imunidades parlamentares e abusos de direitos: uma análise da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 49, n. 195, p. 7-24, jul./set. 2012. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/ bdsf/handle/id/496594. Acesso em: 29 set. 2019.

7

ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes de. As imunidades parlamentares na Constituição Brasileira de 1988. Anuário Português de Direito Constitucional, Coimbra, v. 3, p. 89, 2003. In: DIAS, Roberto; LAURENTIIS, Lucas de. Op. cit.

8

STRECK, Lenio L. Op. cit. 93

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A primeira delas, a Constituição do Império de 1824, dispunha sobre as prerrogativas concedidas aos parlamentares em seus artigos 26,9 2710 e 28:11 os parlamentares eram invioláveis por suas opiniões, quando proferidas no exercício da função; não poderiam ser presos durante a legislatura, salvo por ordem de sua respectiva Casa Legislativa ou em caso de flagrante de delito de pena capital; e, caso um parlamentar fosse pronunciado, o juiz deveria comunicar a respectiva Casa Legislativa, que decidiria sobre a continuidade do processo e sobre a suspensão das funções parlamentares. Com a proclamação da República, a Constituição de 1891 manteve prerrogativas semelhantes. Em seu artigo 1912 previa que deputados e senadores eram invioláveis por suas opiniões, palavras e votos no exercício do mandato. O artigo 2013 previa que parlamentares não poderiam ser presos nem processados criminalmente sem prévia licença de sua Casa Legislativa, salvo em caso de flagrante em crime inafiançável, inovando ao permitir a renúncia à imunidade processual caso o acusado optasse pelo julgamento imediato. A Constituição de 1934 manteve, com pequenas modificações, as imunidades material e formal em seus artigos 3114 e 3215 e estendeu as prerrogativas ao suplente imediato dos parlamentares eleitos. Além de invioláveis pelas palavras, opiniões e votos no exercício das funções do mandato, os parlamentares não poderiam ser processados criminalmente, ou presos, sem licença da Casa Legislativa, salvo em caso de crime inafiançável, desde o recebimento do 9

Artigo 26. Os Membros de cada uma das câmaras são invioláveis pelas opiniões que proferirem no exercício das suas funções.

10

Artigo 27. Nenhum senador ou deputado, durante a sua deputação, pode ser preso por autoridade alguma, salvo por ordem da sua respectiva câmara, menos em flagrante delito de pena capital.

11

Artigo 28. Se algum senador ou deputado for pronunciado, o juiz, suspendendo todo o ulterior procedimento, dará conta à sua respectiva câmara, a qual decidirá se o processo deva continuar e o membro ser ou não suspenso no exercício das suas funções.

12

Artigo 19. Os deputados e senadores são invioláveis por suas opiniões, palavras e votos no exercício do mandato.

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Artigo 20. Os deputados e senadores, desde que tiverem recebido diploma até a nova eleição, não poderão ser presos nem processados criminalmente, sem prévia licença de sua câmara, salvo caso de flagrância em crime inafiançável. Neste caso, levado o processo até pronúncia exclusiva, a autoridade processante remeterá os autos à câmara respectiva para resolver sobre a procedência da acusação, se o acusado não optar pelo julgamento imediato.

14

Artigo 31. Os deputados são invioláveis por suas opiniões, palavras e votos no exercício das funções do mandato.

15

Artigo 32. Os deputados, desde que tiverem recebido diploma até a expedição dos diplomas para a Legislatura subsequente, não poderão ser processados criminalmente, nem presos, sem licença da câmara, salvo caso de flagrância em crime inafiançável. Essa imunidade é extensiva ao suplente imediato do deputado em exercício.

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diploma até a expedição dos diplomas para legislaturas subsequentes. A prisão em flagrante por crime inafiançável deveria ser comunicada desde logo ao Presidente da Câmara dos Deputados, para que ele resolvesse sobre a legitimidade e conveniência e autorizasse, ou não, a formação da culpa. A Constituição de 1937, outorgada no início do governo Getúlio Vargas – o Estado Novo –, restringiu as prerrogativas à atividade parlamentar. A imunidade formal foi mantida em seu artigo 42,16 mas a imunidade material foi limitada pela redação do artigo 4317 e os suplentes excluídos da proteção. Além de permitir a responsabilização civil e criminal do parlamentar por difamação, calúnia, injúria, ultraje à moral pública ou provocação pública ao crime, no contexto de um período político centralizador, o parágrafo único do artigo 43 autorizou que em caso de manifestação contrária à existência ou independência da nação ou incitamento à subversão violenta da ordem política ou social, pode qualquer das câmaras, por maioria de votos, declarar vago o lugar do deputado ou membro do Conselho Federal, autor da manifestação ou incitamento.

Com o fim do Estado Novo, a Constituição de 1946 retomou as prerrogativas parlamentares em toda sua extensão em seus artigos 4418 e 45.19 Sob o aspecto material, voltou a ser assegurada aos parlamentares a inviolabilidade por suas 16

Artigo 42. Durante o prazo em que estiver funcionando o Parlamento, nenhum dos seus membros poderá ser preso ou processado criminalmente, sem licença da respectiva câmara, salvo caso de flagrante em crime inafiançável.

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Artigo 43. Só perante a sua respectiva câmara responderão os membros do Parlamento nacional pelas opiniões e votos que emitirem no exercício de suas funções; não estarão, porém, isentos da responsabilidade civil e criminal por difamação, calúnia, injúria, ultraje à moral pública ou provocação pública ao crime. Parágrafo único – Em caso de manifestação contrária à existência ou independência da Nação ou incitamento à subversão violenta da ordem política ou social, pode qualquer das câmaras, por maioria de votos, declarar vago o lugar do deputado ou membro do Conselho Federal, autor da manifestação ou incitamento.

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Artigo 44. Os deputados e os senadores são invioláveis no exercício do mandato, por suas opiniões, palavras e votos.

19

Artigo 45. Desde a expedição do diploma até a inauguração da legislatura seguinte, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável, nem processados criminalmente, sem prévia licença de sua câmara. § 1º - No caso de flagrante de crime inafiançável, os autos serão remetidos, dentro de quarenta e oito horas, à câmara respectiva, para que resolva sobre a prisão e autorize, ou não, a formação da culpa. § 2º - A câmara interessada deliberará sempre pelo voto da maioria dos seus membros. § 3º - Em se tratando de crime comum, se a licença para o processo criminal não estiver resolvida em 120 (cento e vinte) dias, contados da apresentação do pedido, este será incluído em ordem do dia, para ser discutido e votado, independentemente de parecer.





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opiniões, palavras e votos; e, sob o aspecto formal, garantiu-se que, desde a expedição do diploma até a inauguração da legislatura seguinte, os parlamentares não seriam presos, salvo em flagrante de crime inafiançável ou processados criminalmente, salvo com prévia licença de sua Câmara dos Deputados. Em 1964, um golpe militar dá início a uma longa ditadura no Brasil. Inicialmente, a Constituição de 1946 continuou vigente, mas o Ato Institucional nº 1 de 9 de abril de 1964 promoveu diversas mudanças no Poder Legislativo, como a possibilidade de suspensão de direitos políticos e, principalmente, a determinação de convocação de eleições indiretas. Em 1967, entra em vigor uma nova Constituição que mantém formalmente as imunidades parlamentares em seu artigo 34.20 De acordo com esse dispositivo, deputados e senadores eram invioláveis no exercício de seus mandatos por suas opiniões, palavras e votos, e não poderiam ser presos desde a expedição do diploma até a inauguração da legislatura seguinte, salvo em flagrante de crime inafiançável, nem processados criminalmente, sem prévia licença de sua Casa Legislativa. Naquele momento, a única restrição formal imposta às imunidades foi a inclusão de prazo para a deliberação da Casa Legislativa sobre o pedido de licença para instauração do processo. Caso não apreciado no prazo de noventa dias, o pedido seria incluído na ordem do dia e nesta permaneceria durante quinze sessões ordinárias consecutivas. Caso não ocorresse deliberação nesse período, entendia-se como concedida a licença para o processamento. Com o recrudescimento do governo militar, no entanto, duas emendas à Constituição de 1967 alteram as disposições originais sobre as imunidades parlamentares e restringem as garantias constitucionais asseguradas à atividade

20 Artigo 34. Os deputados e senadores são invioláveis no exercício de mandato, por suas opiniões, palavras e votos. § 1º - Desde a expedição do diploma até a inauguração da Legislatura seguinte, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo flagrante de crime inafiançável, nem processados criminalmente, sem prévia licença de sua câmara. § 2º - Se no prazo de noventa dias, a contar do recebimento, a respectiva câmara não deliberar sobre o pedido de licença, será este incluído automaticamente em ordem do dia e nesta permanecerá durante quinze sessões ordinárias consecutivas, tendo-se como concedida a licença se, nesse prazo, não ocorrer deliberação. § 3º - No caso de flagrante de crime inafiançável, os autos serão remetidos, dentro de quarenta e oito horas, à câmara respectiva, para que, por voto secreto, resolva sobre a prisão e autorize, ou não, a formação da culpa. § 4º - A incorporação, às forças armadas, de deputados e senadores, ainda que militares, mesmo em tempo de guerra, depende de licença da sua câmara, concedida por voto secreto. § 5º - As prerrogativas processuais dos senadores e deputados, arrolados como testemunhas, não subsistirão se deixarem eles de atender, sem justa causa, no prazo de trinta dias, ao convite judicial. 96

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parlamentar. A Emenda Constitucional nº 1, de 17 de outubro de 196921 autoriza a responsabilização criminal de deputados e senadores em casos de injúria, difamação ou calúnia, ou nos previstos na Lei de Segurança Nacional. A Emenda Constitucional nº 11, de 13 de outubro de 197822 altera a imunidade processual, reduzindo o prazo para pronúncia da Câmara sobre pedido de instauração do processo para quarenta dias. Na década de 1980, o Brasil passou por um processo gradual de abertura política em prol da redemocratização, período que foi marcado, principalmente, pelo movimento “Diretas Já”, que lutou pela volta das eleições diretas para presidente da República. Com o engajamento popular cada vez maior pelo retorno da democracia, o regime militar tornou-se insustentável e, em 1985, foi convocada a Assembleia Nacional Constituinte.

3.3 Constituição Federal de 1988: a “Constituição Cidadã” Para consagrar o fim da ditadura militar, foi promulgada a Constituição Federal de 1988, que se tornou um dos principais símbolos do processo de redemocratização. Após 21 anos de regime militar, a sociedade brasileira recebia a chamada “Constituição Cidadã”, que assegurava diversos direitos e garantias sociais, a exemplo da ampla liberdade de expressão e pensamento. Com o pressuposto de se criar um ordenamento jurídico que freasse o abuso do Poder Executivo, a Constituição Federal de 1988 garantiu ampla liberdade legislativa e previu as imunidades parlamentares em seu artigo 53. Não houve tratamento inovador ao tema, mas a nova constituição buscou eliminar algumas das restrições às quais a atividade parlamentar esteve submetida desde a Constituição de 1967 e, principalmente, na vigência da Emenda Constitucional nº 1/69.23

21

Artigo 32. Os deputados e senadores são invioláveis, no exercício do mandato, por suas opiniões, palavras e votos, salvo nos casos de injúria, difamação ou calúnia ou nos previstos na Lei de Segurança Nacional.

22

Artigo 32. Os deputados e senadores são invioláveis no exercício do mandato, por suas opiniões, palavras e votos, salvo no caso de crime contra a Segurança Nacional. § 1º - Desde a expedição do diploma até a inauguração da legislatura seguinte, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo flagrante de crime inafiançável, nem processados, criminalmente, sem prévia licença de sua câmara. § 2º - Se a câmara respectiva não se pronunciar sobre o pedido, dentro de 40 (quarenta) dias a contar de seu recebimento, ter-se-á como concedida a licença.



23

ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes de. Op. cit., p. 88. 97

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A amplitude das imunidades parlamentares permaneceu durante toda a década de 1990, todavia a percepção pública de que as imunidades estariam, na verdade, assegurando impunidade a ilícitos cometidos por aqueles munidos da atividade parlamentar24 levou à alteração do artigo 53 por meio da Emenda Constitucional nº 35/2001.25

3.3.1 As prerrogativas parlamentares asseguradas pela Constituição Federal de 1988

Imunidade material Prevista no caput do artigo 5326 a imunidade material garante aos parlamentares que suas atividades serão exercidas com ampla liberdade de expressão, estando protegidas suas opiniões, palavras e votos. Pela redação original, a manifestação do parlamentar no exercício de sua função não resultaria em responsabilidade criminal, sanção disciplinar ou responsabilidade política, o que é expandido pela Emenda Constitucional nº 35/2001 ao assegurar também a imunidade civil.27 Conforme entendimento jurisprudencial e doutrinário, a imunidade está restrita às manifestações dos deputados e senadores relacionadas às suas atividades parlamentares, ainda que as opiniões, palavras e votos não sejam proferidos no recinto do Congresso Nacional.28 A imunidade material é de ordem pública, portanto o parlamentar não pode renunciá-la. Além disso, é perpétua e absoluta, ou seja, permanece ainda que findo o mandato, desde que o voto, palavra ou opinião tenha sido proferido no exercício desse mandato.29

24 Ibidem. 25 Ibidem. 26

Artigo 53. Os Deputados e Senadores são invioláveis por suas opiniões, palavras e votos.

27

Artigo 53. Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos.

28 MORAES, Guilherme Peña de. Curso de direito constitucional. 9ª ed. São Paulo: Atlas, 2017, p. 537. 29

MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 34ª ed. São Paulo: Atlas, 2018, p. 486.

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Imunidade formal A imunidade formal é dividida em (i) imunidade relativa à prisão (prisional) e (ii) imunidade em relação ao processo (processual), e visa proteger não o parlamentar, mas as funções que ele exerce desde a diplomação. Trata-se de proteção à representação popular e garantia de autonomia do Poder Legislativo, protegendo-o contra eventuais abusos do Poder Judiciário ou do Poder Executivo. A (i) imunidade prisional protege o parlamentar contra qualquer prisão de natureza penal ou processual,30 com exceção da prisão em flagrante de crimes inafiançáveis – a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, e a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático e o crime de racismo – previstos no artigo 5º da Constituição Federal.31 Nesse caso, conforme redação original do §3º, artigo 53 da Constituição Federal, os autos deveriam ser remetidos, dentro de 24 horas, à Casa Legislativa respectiva, para que, pelo voto secreto da maioria de seus membros, se resolvesse sobre a prisão e se autorizasse ou não a formação de culpa. A Emenda Constitucional nº 35/2001 retirou do texto a possibilidade de voto secreto para deliberar sobre a prisão, com objetivo de proteger os princípios de soberania popular e publicidade, previstos na própria Constituição Federal (artigos 1º e 37, caput). Atualmente, compete à maioria dos membros da Casa Legislativa, em decisão política tomada por meio de votação nominal e ostensiva,32 decidir sobre a prisão. Além disso, não mais compete aos membros da Casa Legislativa autorizar a formação de culpa. No que tange à (ii) imunidade processual, o texto original do §1º, artigo 53 da Constituição Federal, previa a necessidade de autorização prévia da respectiva Casa Legislativa para que fosse iniciado o processo criminal em face do 30

Idem, p. 471.

31

Artigo 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei; XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem; XLIV - constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático.



32

MORAES, Alexandre de. Op. cit., p. 476. 99

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parlamentar. A Emenda Constitucional nº 35/2001 retirou a necessidade de autorização prévia, permitindo o andamento da ação penal, todavia assegurou à Casa Legislativa, a qualquer momento antes da decisão final do Poder Judiciário, o poder de decidir por sustar o andamento da ação penal proposta em face de parlamentar devido a crimes praticados após a diplomação.33 Antes da Emenda Constitucional nº 35/2001, a imunidade incidia tanto em relação a crimes cometidos antes quanto após a diplomação, contudo agora não incide a imunidade em relação a crimes cometidos antes da diplomação.34 Desse modo, pode-se dizer que a imunidade formal passou ter a diplomação como termo inicial, passando a proteger, desde logo, a validade da eleição do parlamentar.35 Assim, diante das alterações promovidas pela Emenda Constitucional nº 35/2001, o processo criminal iniciado em face de parlamentar adquiriu nova faceta. De acordo com o §3º do artigo 53, recebida a denúncia contra senador ou deputado, o Supremo Tribunal Federal dará ciência à Casa Legislativa respectiva, que, por iniciativa de partido político nela representado, e pelo voto da maioria de seus membros, poderá, até a decisão final, sustar o andamento da ação. Posteriormente, nos termos do §4º, o pedido de sustação será apreciado pela Casa Legislativa respectiva no prazo improrrogável de 45 dias do seu recebimento pela Mesa Diretora, e, nos termos do §6º, caso aprovado o pedido de sustação, a prescrição penal é suspensa até o término do mandato.36

Foro por prerrogativa de função A prerrogativa de função constava do texto original do §4º, do artigo 53, e foi mantida pela Emenda Constitucional nº 35/2001, tendo sido apenas realocada ao §1º do mesmo dispositivo. Esse instituto é responsável por estipular que deputados e senadores em exercício apenas podem ser processados e julgados criminalmente perante o Supremo Tribunal Federal, desde que o crime tenha sido praticado durante o cargo e relacionado às funções desempenhadas.37 A Emenda Constitucional nº 35/2001, ao prever que o Supremo Tribunal Federal é competente para julgar os parlamentares “desde a expedição do

33

Ibidem, p. 478.

34 Ibidem. 35 Ibidem. 36 Ibidem. 37

MORAES, Guilherme Peña de. Op. cit., p. 533.

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diploma”, reforçou o entendimento doutrinário pela aplicação da regra de atualidade de mandato, de acordo com a qual o foro por prerrogativa de função incide desde a diplomação até o término do mandato parlamentar,38 respeitadas as balizas fixadas pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da AP n. 937/ QO, como indicado no item “32 supra”, portanto, após o término mandato, os autos devem ser remetidos ao juízo comum, sendo reputados válidos todos os atos praticados anteriormente.39

Testemunho limitado Conforme texto original do §5º, artigo 53, da Constituição Federal de 1988, os deputados e senadores não eram obrigados a testemunhar acerca de informações recebidas ou prestadas em razão do exercício do mandato, nem sobre as pessoas que lhes confiaram ou deles receberam informações. O parlamentar podia escolher discricionariamente sobre testemunhar ou não. Essa regra foi mantida integralmente pela Emenda Constitucional nº 35/2001, e atualmente consta do §6º do artigo 53. O testemunho limitado é garantido aos parlamentares apenas em casos em que as informações tiverem sido recebidas em razão do cargo e durante o mandato, hipótese na qual o membro do Legislativo será convidado – sem qualquer influência de eventuais medidas coercitivas – a prestar depoimento e poderá, inclusive, escolher o local e horário em que será realizada a oitiva, conforme prevê o artigo 454 do Código de Processo Civil brasileiro.40 O atual §7º, artigo 53, da Constituição Federal de 1988 – antigo §6º – não sofreu alterações de texto pela Emenda Constitucional nº 35/2001. Ao julgar a Questão de Ordem na Ação Penal n. 937/RJ, em 2018, o Supremo Tribunal Federal definiu tese no sentido de que “(I) O foro por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas; e (II) Após o final da instrução 38

BARCELLOS, Ana Paula de. Curso de direito constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 292.

39

Art. 454. § 1º O juiz solicitará à autoridade que indique dia, hora e local a fim de ser inquirida, remetendo-lhe cópia da petição inicial ou da defesa oferecida pela parte que a arrolou como testemunha.

40

Artigo 143. O serviço militar é obrigatório nos termos da lei. § 1º Às Forças Armadas compete, na forma da lei, atribuir serviço alternativo aos que, em tempo de paz, após alistados, alegarem imperativo de consciência, entendendo-se como tal o decorrente de crença religiosa e de convicção filosófica ou política, para se eximirem de atividades de caráter essencialmente militar. § 2º - As mulheres e os eclesiásticos ficam isentos do serviço militar obrigatório em tempo de paz, sujeitos, porém, a outros encargos que a lei lhes atribuir.



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processual, com a publicação do despacho de intimação para apresentação de alegações finais, a competência para processar e julgar ações penais não será mais afetada em razão de o agente público vir a ocupar outro cargo ou deixar o cargo que ocupava, qualquer que seja o motivo”. Desde então, essa tem sido a orientação adotada com relação ao foro por prerrogativa de função, com o intuito de permitir a adequada “responsabilização de agentes públicos por crimes de naturezas diversas”, como asseverou o Ministro Roberto Barroso por ocasião do julgamento paradigmático.

Imunidade militar De acordo com referida garantia, a incorporação de deputados e senadores às Forças Armadas, ainda que militares e mesmo que em tempo de guerra, depende de prévia licença da respectiva Casa Legislativa. Compete ao parlamentar solicitar a licença à sua respectiva Casa Legislativa, que deve ser concedida individualmente, ficando o parlamentar dispensado da prestação do serviço militar obrigatório, conforme artigo 14.340 da própria Constituição Federal.

Imunidade no estado de sítio O atual §8º, artigo 53 da Constituição Federal, antigo §7º, sobre imunidade no estado de sítio, tampouco sofreu alteração de texto pela Emenda Constitucional nº 35/2001. De acordo com esse dispositivo, as imunidades dos deputados e senadores subsistem durante o estado de sítio, e somente podem ser suspensas mediante voto de dois terços dos membros da respectiva Casa Legislativa, nos casos de atos praticados fora do recinto do Congresso Nacional, que sejam incompatíveis com a execução da medida. O parlamentar, todavia, poderá ser dispensado da prestação de serviço militar obrigatório, a despeito do artigo 143 da própria Constituição Federal, caso solicite licença à sua respectiva Casa Legislativa, que deve ser concedida individualmente.

Extensão subjetiva das imunidades parlamentares Quanto às imunidades previstas a deputados federais e senadores e a deputados estaduais, a Constituição Federal prevê em seu §1º, artigo 27, a mesma aplicabilidade das regras quanto à inviolabilidade, imunidades, remuneração, perda de mandato, licença, impedimentos e incorporação às Forças Armadas. 102

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No caso dos vereadores, contudo, aplicam-se apenas as regras de imunidade material.41 A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é clara em relação à extensão da imunidade parlamentar aos deputados estaduais. Para confirmar a tese, há decisões liminares proferidas em 8 de maio de 2019 nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade nº 5.823, 5.824 e 5.825.42 O Plenário, por maioria,43 indeferiu medidas cautelares das Ações Diretas de Inconstitucionalidade supracitadas, ajuizadas contra os artigos da Constituição do Estado do Rio Grande do Norte, Constituição do Estado do Rio de Janeiro e Constituição do Estado do Mato Grosso, que estendiam as imunidades constitucionais para seus deputados estaduais. Nos termos do informativo 939: O Colegiado entendeu que a leitura da Constituição da República revela que, sob os ângulos literal e sistemático, os deputados estaduais têm direito às imunidades formal e material e à inviolabilidade conferidas pelo constituinte aos congressistas, no que estendidas, expressamente, pelo § 1º do art. 27 da CF [...]. Asseverou que o dispositivo não abre campo a controvérsias semânticas em torno de quais imunidades são abrangidas pela norma extensora. A referência no plural, de cunho genérico, evidencia haver-se conferido a parlamentares estaduais proteção sob os campos material e formal. [...] A extensão do estatuto dos congressistas federais aos parlamentares estaduais traduz dado significante do pacto federativo. O reconhecimento da importância do Legislativo estadual viabiliza a reprodução, no âmbito regional, da harmonia entre os Poderes da República. [...] Acrescentou que reconhecer a prerrogativa de o Legislativo sustar decisões judiciais de natureza criminal, precárias e efêmeras, cujo teor resulte em afastamento ou limitação da função parlamentar não implica

41

MORAES, Alexandre de. Op. cit., p. 231.

42

Como as decisões foram todas em sede de liminar, ainda não há publicação de sua íntegra.

43

A decisão não foi unânime, tendo cinco ministros apresentado votos divergentes. Dessa forma, o entendimento jurisprudencial mais recente sobre o tema se mantém a favor da expansão da imunidade aos deputados estaduais. 103

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dar-lhe carta branca. Prestigia-se, ao invés, a Carta Magna, impondo-se a cada qual o desempenho do papel por ela conferido.

A Emenda Constitucional nº35/2001: aplicabilidade imediata De acordo com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, as alterações geradas pela Emenda Constitucional nº 35/2001 tiveram aplicabilidade imediata, permitindo que os parlamentares fossem processados criminalmente independentemente de licença prévia da Casa Legislativa, mesmo para os fatos delituosos cometidos antes de sua promulgação.44;45 Também como efeito da aplicabilidade imediata da Emenda Constitucional nº 35/2001, a Casa Legislativa ficou limitada para determinar a sustação de processo criminal contra parlamentar apenas nas hipóteses em que “recebida a denúncia contra o senador ou deputado, por crime ocorrido após a diplomação” daquele mandato.46 Entendeu-se inadequada a aplicação do disposto do §3º do artigo 53 da Constituição Federal para crimes cometidos em mandatos anteriores, pois estes tiveram seus efeitos exauridos, impossibilitando a projeção da imunidade processual para o mandato subsequente.47

Propostas de emendas constitucionais alterando o artigo 53 da Constituição Federal Após a aprovação da Emenda Constitucional nº 35/2001, foram diversas as novas propostas de alteração do texto constitucional no mesmo sentido. Desde o ano de 2001 até 2019, foram propostas ao todo treze emendas constitucionais sobre o tema da imunidade parlamentar e foro por prerrogativa de função. Em razão da viabilidade política para aprovação, e buscando consolidar as propostas, foram todas apensadas a uma única proposta, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 333/2017, de autoria do Senador Álvaro Dias. Essa PEC foi aprovada no Senado Federal (onde tramitou sob o nº 10/2013) pelo quórum 44 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental à Ação Cautelar nº 100-3/RO. Relator: Ministro Carlos Ayres Britto. Julgado em 19 de abril de 2005. 45

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Inquérito nº 1.637/SP. Relator: Ministro Celso de Melo. Julgado em 18 de dezembro de 2003.

46

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus nº 86.015/PB. Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. Julgado em 19 de outubro de 2007.

47

Trecho extraído da decisão agravada. Disponível em http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/ paginador.jsp?docTP=AC&docID=348107. Acesso em: 24 abr. 2022.

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constitucional necessário (três quintos dos membros do Senado Federal em dois turnos) e enviada à Câmara dos Deputados para análise e posterior deliberação. Na Câmara dos Deputados, em 11 de dezembro de 2018, a proposta recebeu parecer favorável de seu relator, o Deputado Federal Efraim Filho, e foi aprovada pelos parlamentares membros da Comissão de Constituição e Justiça. Atualmente, a proposta aguarda inclusão em pauta pela Presidência da Câmara dos Deputados para votação em plenário.48

3.4 Imunidades parlamentares como obstáculo à obtenção de justiça e necessidade de que sejam aplicadas para fatos estritamente relacionados à função parlamentar Se, por um lado, as imunidades garantem ao parlamentar a liberdade para exercer as atividades inerentes à sua função sem eventuais interferências; por outro, podem gerar inegáveis obstáculos à obtenção da justiça na medida em que dificultam a imputação de responsabilidade aos membros do Legislativo. Como forma de corrigir a disfuncionalidade do sistema, o Supremo Tribunal Federal tem dado interpretação restritiva às imunidades, exigindo que eventual crime cometido tenha evidente nexo de causalidade com o exercício das funções do cargo.49

48 Ficha de tramitação disponível em: https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/ 2140446. Acesso em: 13 jun. 2022. 49

“É que a prática atual não realiza adequadamente princípios constitucionais estruturantes, como igualdade e república, por impedir, em grande número de casos, a responsabilização de agentes públicos por crimes de naturezas diversas. Além disso, a falta de efetividade mínima do sistema penal, nesses casos, frustra valores constitucionais importantes, como a probidade e a moralidade administrativa. 3. Para assegurar que a prerrogativa de foro sirva ao seu papel constitucional de garantir o livre exercício das funções – e não ao fim ilegítimo de assegurar impunidade – é indispensável que haja relação de causalidade entre o crime imputado e o exercício do cargo. A experiência e as estatísticas revelam a manifesta disfuncionalidade do sistema, causando indignação à sociedade e trazendo desprestígio para o Supremo.” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Questão de Ordem na Ação Penal nº 937/RJ. Relator: Ministro Roberto Barroso. Julgado em 3 de maio de 2018. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=748842078. Acesso em: 3 out. 2019) 105

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3.4.1 Imunidade material: a inviolabilidade pela opinião, palavras e votos estritamente relacionados à função parlamentar A imunidade material, que assegura ao parlamentar a inviolabilidade por suas opiniões e votos, é medida voltada à garantia da liberdade de expressão, como decorrência direta da representatividade democrática no Poder Legislativo conferida através do voto. O Supremo Tribunal Federal, ao interpretar referido artigo em momento anterior à Emenda Constitucional nº 35/2001, já possuía entendimento no sentido de que a imunidade parlamentar estava limitada a manifestações que guardassem relação com o exercício do mandato, ainda que produzidas fora da Casa Legislativa do parlamentar. Segundo a Corte, não se trata de conceder privilégios ao político, mas assegurar a inviolabilidade dos atos praticados em razão do exercício de seu mandato.50 A alteração trazida pela Emenda Constitucional nº 35/2001 não alterou o entendimento. O critério para a aplicação da imunidade prevista no caput do artigo 53 da Constituição Federal segue sendo o exercício do mandato, não se falando em inviolabilidade por manifestações pessoais em que há abuso da liberdade de expressão de cunho pessoal e opinativo.51;52 Com base em tal entendimento, o Supremo Tribunal Federal protegia todas as manifestações parlamentares realizadas dentro da Casa Legislativa. Se é no Parlamento que se exerce o mandato legislativo democraticamente constituído, toda manifestação parlamentar realizada na Casa estaria protegida pela inviolabilidade assegurada pelo artigo 53 da Constituição Federal. Caberia apenas à própria Casa Legislativa coibir eventuais excessos que venham a ser cometidos pelos seus parlamentares. Recentemente, contudo, o Supremo Tribunal Federal reviu tal posicionamento e reconheceu que a inviolabilidade por manifestações ocorridas dentro da Casa Legislativa não é absoluta. Em julgado de 21 de junho de 2016, recebeu denúncia

50

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 210.917/RJ. Plenário. Relator: Ministro Sepúlveda Pertence. Julgado em 12 de agosto de 1998.

51

BRITO, Orlange Maria. Imunidade parlamentar no Brasil antes e depois da Emenda Constitucional nº 35 de 2001. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 44, n. 173, jan./mar. 2007, p. 242. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/ id/141291/R173-16.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 26 set. 2019.

52

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Inquérito nº 2.036/PA. Relator: Ministro Carlos Britto. Julgado em 23 de junho de 2004.

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e queixa-crime no Inquérito 3.932/DF em desfavor do então Deputado Federal Jair Bolsonaro, pela suposta prática dos crimes de incitação ao crime e injúria.53;54 O Supremo Tribunal Federal entendeu que a garantia constitucional da imunidade material protege o parlamentar em qualquer que seja o âmbito espacial em que exerça a liberdade de opinião, desde que suas manifestações guardem conexão com o desempenho da função legislativa ou tenham sido proferidas em razão dela. Fundamentado nos tratados de proteção à vida, à integridade física e à dignidade da mulher, com destaque para a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher – Convenção de Belém do Pará (1994); a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher – Carta Internacional dos Direitos da Mulher (1979); além das conferências internacionais sobre a mulher realizadas pelas Organizações das Nações Unidas, o Supremo Tribunal Federal salientou que os efeitos de discursos que reproduzem o rebaixamento da dignidade sexual da mulher não podem ser subestimados e devem ser desencorajados pelo Poder Judiciário. O mesmo entendimento foi aplicado na esfera cível quando do julgamento do Agravo no Recurso Extraordinário 1.098.601 em ação de reparação de danos morais promovida pela ofendida contra o então Deputado Federal Jair Bolsonaro. Em decisão do Supremo Tribunal Federal, entendeu-se que as ofensas proferidas não guardavam relação com a atividade parlamentar e, portanto, ainda que ditas no interior da Casa Legislativa, não estavam resguardadas pela imunidade material assegurada pelo artigo 53 da Constituição Federal. Como forma de impedir que a imunidade parlamentar material seja utilizada como obstáculo para obtenção da justiça e violação de direitos humanos, portanto, entende o Supremo Tribunal Federal que sua aplicação deve estar limitada e restrita às atividades do exercício parlamentar.

53

Artigos 286 e 140 do Código Penal.

54

Em discussão na tribuna da Câmara dos Deputados, o então Deputado Federal Jair Bolsonaro afirmou que a Deputada Federal Maria do Rosário “não merece ser estuprada”. No dia seguinte, em entrevista concedida em seu gabinete, reiterou as declarações. 107

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3.4.2 Foro por prerrogativa de função: garantia constitucional que passa a ser limitada ao exercício do cargo e em razão das funções a ele relacionadas A extensão do foro por prerrogativa de função foi interpretada pelo Supremo Tribunal Federal sempre de forma expansiva. Todos os crimes de que eram acusados os parlamentares, inclusive os praticados antes da investidura no cargo e os que não guardavam qualquer relação com o seu exercício, eram apreciados por corte específica: deputados estaduais eram julgados pelos Tribunais de Justiça e deputados federais e senadores eram julgados pelo Supremo Tribunal Federal. Em suma, a competência para julgar casos em que parlamentares fossem réus era absoluta, não dependendo da natureza ou contexto do crime cometido.55 Em 3 de maio de 2018, no entanto, o Supremo Tribunal Federal restringiu a extensão da prerrogativa parlamentar no julgamento da Questão de Ordem na Ação Penal nº 937/2018. À ocasião, firmou-se a tese de que o foro por prerrogativa de função, em seu caráter formal, aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas, previstos no artigo 120 da Constituição Federal.56 Com a finalidade de assegurar o princípio da igualdade e corrigir disfuncionalidade no sistema, restringiu-se mais uma das prerrogativas parlamentares. O novo entendimento, portanto, alterou a interpretação do Supremo Tribunal 55 “Inquérito penal. Foro por prerrogativa de função. Deputado licenciado para exercer cargo de Secretário de Estado. No sistema da CF, a proteção especial à pessoa do parlamentar, independentemente do exercício do mandato, reside no foro por prerrogativa de função que lhe assegura o art. 53, § 4º, da Carta Magna, ainda quando afastado da função legislativa para exercer cargo público constitucionalmente permitido. Questão de ordem que se resolve com a rejeição da preliminar de incompetência do STF levantada pela Procuradoria-Geral da República.” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Questão de Ordem no Inquérito nº 777/TO. Tribunal Pleno. Relator: Ministro Moreira Alves. Julgado em 2 de setembro de 1993. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador. jsp?docTP=AC&docID=80766. Acesso em: 3 out. 2019); “Detentor de prerrogativa de foro – Indícios. Surgindo indícios de detentor de prerrogativa de foro estar envolvido em fato criminoso, cumpre à autoridade judicial remeter o inquérito ao Supremo – precedente: Inquérito 2.842, relator ministro Ricardo Lewandowski, sob pena de haver o arquivamento ante a ilicitude dos elementos colhidos.” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Questão de Ordem no Inquérito nº 3.552/RS. Relator: Ministro Marco Aurélio. Julgado em 16 de dezembro de 2014. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=7851079. Acesso em: 3 out. 2019) 56

“Impõe-se, todavia, a alteração desta linha de entendimento, para restringir o foro privilegiado aos crimes praticados no cargo e em razão do cargo." (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Questão de Ordem na Ação Penal nº 937/RJ. Relator: Ministro Roberto Barroso. Julgado em 3 de maio de 2018. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=748842078. Acesso em: 3 out. 2019)

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Federal sobre a extensão da imunidade formal de parlamentares quanto à previsão do parágrafo 1º do artigo 53 da Constituição Federal, qual seja, o próprio Supremo Tribunal Federal como foro de julgamento de parlamentares federais.

3.4.3 Medidas cautelares penais: imunidades parlamentares que não podem ser obstáculo para a persecução penal As medidas cautelares previstas no artigo 31957 do Código de Processo Penal Brasileiro foram instituídas pela Lei nº 12.403/2011 como alternativas à prisão no curso da ação penal. O artigo em questão estabelece nove medidas cautelares que podem ser impostas ao acusado em substituição da pena de prisão. Tais medidas garantem a aplicação da lei penal no curso do processo ao mesmo tempo em que, por serem alternativas à prisão e menos rigorosas a esta, concretizam os princípios da presunção de inocência e razoabilidade, já que não implicam em antecipação da pena antes mesmo da condenação. De toda forma, a aplicação dessas medidas cautelares impõe certas restrições ao cotidiano do acusado, o que adquire especial relevância a este estudo na hipótese em que o acusado era um parlamentar, cujo dia a dia implicava o exercício de uma função pública. Com a mudança instituída pela EC nº 35/2001, o Supremo Tribunal Federal passou a entender que, apesar de a referida emenda não ter modificado a necessidade de comunicação da Casa Legislativa quando da prisão em flagrante no prazo de 24 horas, não se exige autorização ou comunicação da Casa Legislativa

57

BRASIL. Congresso Nacional. Código de Processo Penal. Artigo 319. Redação dada pela Lei nº 12.403 de 4 de maio de 2011: “Art. 319. São medidas cautelares diversas da prisão: I - comparecimento periódico em juízo, no prazo e nas condições fixadas pelo juiz, para informar e justificar atividades; II - proibição de acesso ou frequência a determinados lugares quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado permanecer distante desses locais para evitar o risco de novas infrações; III - proibição de manter contato com pessoa determinada quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela permanecer distante; IV - proibição de ausentar-se da Comarca quando a permanência seja conveniente ou necessária para a investigação ou instrução; V - recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga quando o investigado ou acusado tenha residência e trabalho fixos; VI - suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais; VII - internação provisória do acusado nas hipóteses de crimes praticados com violência ou grave ameaça, quando os peritos concluírem ser inimputável ou semi-imputável (art. 26 do Código Penal) e houver risco de reiteração; VIII - fiança, nas infrações que a admitem, para assegurar o comparecimento a atos do processo, evitar a obstrução do seu andamento ou em caso de resistência injustificada à ordem judicial; IX - monitoração eletrônica”. 109

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para aplicação das medidas cautelares previstas no artigo 319 do Código de Processo Penal.58 Mais recentemente, o Supremo Tribunal Federal decidiu definitivamente sobre o tema: O Poder Judiciário dispõe de competência para impor aos parlamentares, por autoridade própria, as medidas cautelares a que se refere o art. 319 do CPP, seja em substituição de prisão em flagrante delito por crime inafiançável, por constituírem medidas individuais e específicas menos gravosas; seja autonomamente, em circunstâncias de excepcional gravidade. Os autos da prisão em flagrante delito por crime inafiançável ou a decisão judicial de imposição de medidas cautelares que impossibilitem, direta ou indiretamente, o pleno e regular exercício do mandato parlamentar e de suas funções legislativas serão remetidos dentro de 24 horas à Casa respectiva, nos termos do § 2º do art. 53 da CF para que, pelo voto nominal e aberto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão ou a medida cautelar.59

Como se denota do trecho supracitado, o entendimento majoritário do Tribunal passou a ser de que cabe a imposição de medidas cautelares desde que estas não obstaculizem o exercício da função pública, caso em que serão, portanto, equiparadas à restrição ao cargo imposta por prisão, submetidas à análise da Casa Legislativa no prazo de 24 horas.

58



“DIREITO CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL PENAL. ACÃO CAUTELAR. AGRAVO REGIMENTAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO. REJEIÇÃO DE PRISÃO PREVENTIVA. IMPOSIÇÃO DE MEDIDAS CAUTELARES ALTERNATIVAS. 1. Os indícios de materialidade e autoria dos delitos apontados na denúncia são substanciais. 2. Nada obstante, há dúvida razoável, na hipótese, acerca da presença dos requisitos do art. 53, § 2º da Constituição, para fins de decretação da prisão preventiva do agravado. 3. Diante disso, a Turma, por maioria, restabeleceu as medidas cautelares determinadas pelo relator originário, Min. Luiz Edson Fachin, consistentes em: (i) suspensão do exercício das funções parlamentares ou de qualquer outra função pública; (ii) proibição de contatar qualquer outro investigado ou réu no conjunto dos feitos em tela e (iii) proibição de se ausentar do país, devendo entregar seus passaportes. Além disso, também por maioria, a Turma acrescentou a medida cautelar diversa de prisão, prevista no art. 319, V, do Código de Processo Penal, de recolhimento domiciliar no período noturno. 5. Agravo regimental parcialmente provido.” BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Terceiro Agravo Regimental na Ação Cautelar nº 4.327/DF. Primeira Turma. Relator: Ministro Marco Aurélio. Julgado em 26 de setembro de 2017. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=313141770&ext=.pdf. Acesso em: 3 out. 2019.

59 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.526/DF. Relator: Ministro Alexandre de Moraes. Julgado em 11 de outubro de 2017. 110

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Dessa forma, apesar de caber a aplicação das medidas previstas no artigo 319 sem a necessidade de licença pela Casa Legislativa, como é o caso, por exemplo, da medida prevista no inciso V60 do referido artigo, a interpretação de que é necessária tal autorização quando houver restrições ao exercício do cargo implica a manutenção de grande poder de decisão da Casa Legislativa sobre o processo penal, ainda que não haja necessidade de licença prévia do Legislativo para a persecução penal de parlamentar.

3.5 Casos de violência doméstica e familiar contra a mulher: a imunidade processual e prisional como obstáculo à efetivação de direitos humanos O histórico de violações aos direitos da mulher pelo Estado Brasileiro é extenso. Em 2001, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, quando da análise de denúncia formulada pela Senhora Maria da Penha Maia Fernandes, concluiu que o Estado Brasileiro era tolerante em relação à violência praticada contra a Senhora Maria da Penha e, ainda, que carecia de meios judiciais efetivos de proteção da mulher contra a violência doméstica. Naquela ocasião, por meio do relatório nº 54/01, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos recomendou ao Brasil, além da adoção de medidas específicas ao caso da Senhora Maria da Penha Maia Fernandes, que promovesse uma reforma de seu sistema jurídico, a fim de rechaçar qualquer dispositivo que possa indicar tolerância estatal à violência doméstica cometida contra mulheres.61 Após a intensa articulação de movimentos de mulheres, em 7 de agosto de 2006 entrou em vigor a Lei nº 11.340/200662 comumente chamada de “Lei Maria 60

Artigo 319. São medidas cautelares diversas da prisão: [...] V - recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga quando o investigado ou acusado tenha residência e trabalho fixos.

61

ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Relatório nº54/01, caso 12.051. 4 abr. 2001. Disponível em: https://www.cidh. oas.org/annualrep/2000port/12051.htm#targetText=Em%2020%20de%20agosto%20 de,Bel %C3%A9m%20do%20Par%C3%A1%20ou%20CVM). Acesso em: 27 set. 2019.

62

BRASIL. Congresso Nacional. Lei nº 11.340. Sancionada em 7 ago. 2006. “Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências”. Disponível em: http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm. Acesso em: 27 set. 2019. 111

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da Penha”, a qual instituiu medidas cautelares específicas aos crimes relacionados à violência contra a mulher, bem como a previsão de implantação de um sistema de proteção e acolhimento da mulher em situação de vulnerabilidade. As imunidades prisional e penal de parlamentares, contudo, continuam constituindo obstáculo à investigação e punição em casos de violência contra a mulher cometidos por parlamentares. A desconexão entre a atividade delitiva e a finalidade da instituição das imunidades parlamentares – proteção à atividade parlamentar – fica especialmente clara nestes casos.

Anexo I

Artigo 53 da Constituição Federal de 1988 Tema

Redação original

Redação após EC nº35/2001

Comentário

Inviolabilidade material

Art. 53. Os deputados e senadores são invioláveis por suas opiniões, palavras e votos.

Art. 53. Os deputados e senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos.

Antes: - Parlamentares eram invioláveis criminalmente. Depois: - Parlamentares passaram a ser invioláveis civil e criminalmente.

Órgão judicial para julgamento do parlamento

§ 4º Os deputados e senadores serão submetidos a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal.

§ 1º Os deputados e senadores, desde a expedição do diploma, serão submetidos a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal.

N/A

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Função da Casa a que pertence o parlamentar Prazos Formação de Culpa Momento da presença infração criminal

§ 1º Desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável, nem processados criminalmente, sem prévia licença de sua Casa. § 3º No caso de flagrante de crime inafiançável, os autos serão remetidos, dentro de vinte e quatro horas à Casa respectiva, para que, pelo voto secreto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão e autorize, ou não, a formação de culpa.

§ 2º Desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável. Nesse caso, os autos serão remetidos dentro de vinte e quatro horas à Casa respectiva, para que, pelo voto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão § 3º Recebida a denúncia contra o Senador ou Deputado, por crime ocorrido após a diplomação, o Supremo Tribunal Federal dará ciência à Casa respectiva, que, por iniciativa de partido político nela representado e pelo voto da maioria de seus membros, poderá, até a decisão final, sustar o andamento da ação.

Antes: - A casa devia autorizar o início do processo criminal e resolver, em 24 horas, sobre a prisão por crime inafiançável e sobre a formação de culpa. - A Constituição não previa prazos para deliberação, o que resultava em grande demora na apreciação dos pedidos de licença. - O § 1º falava em “processados criminalmente” e o § 3º em “formação de culpa”. Não se admitia sequer o inquérito. - A Constituição abarcava atos anteriores ao mandato, mas cuja apuração ainda não tivesse sido realizada ou ultimada. Depois: - A Casa pode sustar o andamento da ação, liminarmente, com decisão final no prazo até 45 dias e decidir sobre a prisão por crime inafiançável, em 24 horas, para dispor sobre a prisão. - O processamento criminal independe de autorização da Casa a que o parlamentar pertence. O que pode haver é a sustação do andamento da ação, a ser decidida no prazo de 45 dias. - O § 3º fala em “recebida a denúncia”, de modo que é correto dizer que nada impede a realização das investigações (inquérito). - O § 3º faz expressa menção ao “crime ocorrido após a diplomação”, logo não atinge fatos e investigações anteriores ao mandato.

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Prescrição

§ 2º O indeferimento do pedido de licença ou a ausência de deliberação suspende a prescrição enquanto durar o mandato.

§ 5º A sustação do processo suspende a prescrição enquanto durar o mandato.

Antes: - Prescrição ficava suspensa enquanto durasse o mandato, no caso de indeferimento do pedido de licença ou a ausência de deliberação. Depois: - Prescrição fica suspensa enquanto durar o mandado nos casos em que houver a sustação do processo.

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4. Políticas de enfrentamento ao assédio e à violência de gênero em universidades

Neste capítulo, apresentaremos a pesquisa elaborada ao Núcleo Especializado de Promoção e Defesa de Direitos das Mulheres da Defensoria Pública do Estado de São Paulo (Nudem) em abril de 2019.1 O documento descreve e analisa políticas de enfrentamento à violência de gênero, com foco em assédio, em 22 universidades de sete países, a fim de subsidiar a atuação do Nudem nos autos de procedimento administrativo instaurado com vistas à prevenção e ao enfrentamento de discriminações de gênero, orientação sexual e raça no ambiente universitário. A pesquisa evidencia que a violência de gênero é uma questão estrutural e presente em toda a sociedade, inclusive no ambiente universitário, e que políticas dedicadas ao seu enfrentamento devem preservar a autonomia das mulheres, evitar a revitimização e garantir um atendimento integral.

Introdução A discriminação e violência de gênero,2 incluindo o assédio,3 estão presentes no dia a dia das salas de aulas, afetando o cotidiano de alunas, funcionárias e professoras.4 De acordo com pesquisa desenvolvida pelo Instituto Avon em 2015 1

Ana Fernanda Ayres Dellosso, André Fortes Chaves, Eduardo Cezar Delgado de Andrade, Letícia Ueda Vella, Maria Luiza Gomes dos Reis Asbahr Tonon, Nathalia Beschizza, Scylla de Moraes Barros Fucs, Talitha Aguillar Leite e Ye Lin Kim.

2

No presente memorando, compreende-se violência de gênero como todo ato de violência baseado no gênero, do qual resulte ou possa resultar dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico para as mulheres, incluindo ameaça de tais atos, a coação ou privação arbitrária de liberdade que ocorra na esfera pública ou privada, conforme previsto na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e na Declaração sobre Eliminação da Violência contra as Mulheres da Organização das Nações Unidas.

3

Para os fins do presente memorando, assédio sexual deve ser compreendido como a realização de atos de constrangimento com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente de sua condição hierárquica.

4

PASINATO, Wânia. Violência de gênero na universidade: O desafio da USP. Jornal da USP. Disponível em: https://jornal.usp.br/artigos/violencia-de-genero-na-universidade-odesafio-da-usp/. Acesso em: 10 abr. 2019. 115

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com 1.823 estudantes de graduação e pós-graduação, 67% das mulheres identificaram situações violentas que sofreram no meio acadêmico, bem como 56% afirmaram que passaram por situações de assédio no ambiente universitário.5 Embora não se trate de um fenômeno novo, uma vez que decorre da desigualdade estrutural de gênero, a violência contra as mulheres no ambiente acadêmico se apresenta como um novo desafio para a formulação de respostas institucionais. A USP, em particular, passou a refletir sobre a presença da violência contra as mulheres no cotidiano da vida acadêmica somente em 2014, quando ocorreram as denúncias de violência sexual6 em festas promovidas por alunos da Faculdade de Medicina.7 A partir daquele momento, notícias de violência passaram a surgir em outros campi e outras universidades no país,8 resultando na instauração de Comissão Parlamentar de Inquérito na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, com o objetivo de “investigar as violações dos direitos humanos e demais ilegalidades ocorridas no âmbito das Universidades do Estado de São Paulo ocorridas nos chamados ‘trotes’, festas e no seu cotidiano acadêmico” (CPI Alesp).9 Mesmo após a constatação da omissão das universidades para coibir a existência de violência de gênero, a ausência de políticas para o seu devido enfrentamento persiste, razão pela qual houve a instauração do Procedimento Administrativo nº 254/2016, a requerimento da Defensoria Pública do Estado de São Paulo: Enquanto a Universidade de São Carlos vem tomando providências, através da criação de uma Secretaria, para lidar com o Bullying, o Assédio Moral, o Assédio Sexual e demais assuntos de interesse de gênero, a 5

SCAVONE, Miriam et al. Violência contra a mulher no ambiente universitário. São Paulo: Data Popular/Instituto Avon: 2015.

6

A violência sexual é compreendida como uma das formas de violência de gênero e, conforme previsto na Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), deve ser compreendida como “qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos”.

7

Disponível em: http://www.jornaldocampus.usp.br/index.php/2016/11/dois-anos-aposcpi-casos-de-estupro-nao-tem-punicao/. Acesso em: 29 ago. 2019.

8

PASINATO, Wânia. Op. cit.

9

ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO DE SÃO PAULO. CPI – Relatório Final. São Paulo, 2015. Disponível em: https://www.al.sp.gov.br/repositorio/arquivoWeb/com/com3092.pdf. Acesso em: 30 ago. 2019.

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Políticas de enfrentamento ao assédio e à violência de gênero em universidades

Universidade de São Paulo não tem sequer um local para o qual podem se dirigir as estudantes que sofram estupro, assédio, discriminação e no seu âmbito, ou mesmo outros crimes. [...] Assim requeiro a instauração de um expediente para requerer da Universidade de São Paulo a tomada de providências para criar órgão interno de apuração, acompanhamento (psicológico, social e jurídico, se o caso) e eventual encaminhamento para processo administrativo de denúncias de discriminações de gênero, orientação sexual, raça etc., e mesmo para prevenir e evitar a ocorrência de bullying e assédio moral e sexual nas suas dependências.

Nesse cenário, este trabalho busca oferecer um panorama acerca das medidas adotadas por outras universidades para contribuir com o desenvolvimento de políticas que enfrentem o problema de forma integral e efetiva. O levantamento aqui apresentado foi realizado com base nas informações disponibilizadas por universidades dos seguintes países: Argentina (Universidad de Buenos Aires e Universidad Nacional de La Plata), Brasil (Fundação Getúlio Vargas, Universidade Presbiteriana Mackenzie, Pontifícia Universidade Católica, Universidade Federal Fluminense, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Universidade Estadual de Campinas, Universidade Estadual Paulista), Colômbia (Universidad de Los Andes e Universidad Nacional de Colombia), Espanha (Universitat de Barcelona e Universidad Complutense de Madrid), Estados Unidos (Columbia University, Harvard University, Massachusetts Institute of Technology, Stanford University e Yale University), França (Sorbonne Université e Institut d’études politiques de Paris) e Inglaterra (University of Cambridge e University of Oxford). A escolha das universidades e dos países pesquisados se baseou nos seguintes critérios: (i) posição da universidade dentre as mais bem avaliadas do país; (ii) conhecimento prévio acerca da relevância e repercussão da temática do assédio e enfrentamento à violência de gênero no âmbito de cada país; (iii) conhecimento prévio da existência de políticas para o enfrentamento da violência de gênero e assédio na universidade pesquisada. Ao longo do desenvolvimento do memorando foram analisados: (i) Contexto de criação da política a. Qual o histórico de surgimento da política? 117

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b. Há casos emblemáticos que ocorreram na Universidade? c. Se sim, tais casos foram judicializados? d. A eventual judicialização foi uma das razões pelas quais houve a elaboração da política? (ii) Documentos de referência a. Quais documentos subsidiaram a elaboração da política de enfrentamento ao assédio? (iii) Descrição da política Nesse ponto, foram consideradas medidas relacionadas a uma abordagem integral do enfrentamento à violência: a. Medidas de prevenção: quais são os mecanismos para prevenir a ocorrência de episódios de assédio na universidade? Há regras preestabelecidas de comportamento na relação docente-discente? O assédio, a desigualdade e violência de gênero são assuntos discutidos no ambiente universitário? b. Medidas de assistência às mulheres: quais são os serviços disponibilizados para as mulheres que passaram por situações de assédio? Há um canal de denúncia/ouvidoria? As informações sobre meios de denúncia são facilmente encontradas? Há acompanhamento psicossocial? Há espaço para acolhimento e escuta? c. Medidas de responsabilização: qual o procedimento para a responsabilização dos docentes? Quais as punições previstas? Há efetividade nesse procedimento? Há monitoramento do número de denúncias recebidas e do número de docentes responsabilizados?10 d. Medidas de monitoramento da política: existem mecanismos de controle, monitoramento e avaliação da efetividade da política implementada? A partir das perguntas elencadas acima, foram analisados relatórios oficiais e meios de comunicação das universidades pesquisadas, bem como documentos 10

Embora seja reconhecido que não apenas integrantes do corpo docente praticam violência de gênero no ambiente universitário, tendo em vista o cenário brasileiro de ausência de responsabilização, bem como da existência de relatos frequentes da ocorrência de violências, especialmente assédio moral, por parte de professores, o presente memorando contou com um recorte metodológico focado na análise de medidas disponíveis para enfrentamento de atos praticados, no entanto é importante destacar que, ao longo dos resultados, parte das medidas descritas se destinam a toda e qualquer pessoa que frequenta o ambiente universitário, sendo aquelas voltadas exclusivamente ao corpo docente devidamente apontadas como tais.

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Políticas de enfrentamento ao assédio e à violência de gênero em universidades

e normativas relacionadas às políticas de enfrentamento ao assédio e violência de gênero vigentes. Os resultados encontrados apresentam uma diversidade de políticas aplicadas, sendo que algumas delas focam exclusivamente no enfrentamento à violência sexual, enquanto outras visam coibir qualquer forma de discriminação baseada no gênero e/ou outros marcadores sociais.11

4.1 Argentina

4.1.1 Universidad de Buenos Aires (UBA)

Contexto de criação da política A fim de proteger o corpo docente, discente e funcionários contra qualquer situação de discriminação, assédio ou violência praticada em razão de gênero, orientação sexual ou identidade de gênero associadas às relações laborais ou acadêmicas da universidade, a UBA adotou, em 2015, o Protocolo de Acción Institucional para la prevención e intervención ante situaciones de violencia o discriminación de género u orientación sexual (Protocolo UBA), sancionado por meio da Resolução nº 4.043/2015. O Protocolo UBA tem como objetivos (i) garantir um ambiente livre de discriminação e violência; (ii) adotar medidas de prevenção como principal método de enfrentar esse tipo de comportamento; (iii) criar um ambiente de acolhimento e confiança para que as pessoas vítimas possam denunciar as ocorrências; (iv) colocar à disposição das vítimas a assistência e o assessoramento solicitados; (v) reunir dados e estatísticas sobre o assunto que possam apoiar ações futuras de enfrentamento ao assédio; e (vi) promover ações de sensibilização, difusão e formação sobre o tema, assim como fomentar ações que busquem erradicar os casos de discriminação e violência na universidade. O projeto do Protocolo UBA foi elaborado pela organização La Mella, entidade de representação política dos estudantes, e recebeu contribuições por parte de

11

Em todas as políticas descritas, essa distinção é realizada, apontando qual o foco de enfrentamento de cada uma das medidas. 119

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outros grupos de referência12 em matéria de violência e discriminação de gênero. Após alguns meses de trabalho conjunto para determinar o conteúdo, o alcance e os objetivos do protocolo, a UBA aprovou o documento em dezembro de 2015. Mesmo após a implantação do Protocolo UBA, casos de violência de gênero e assédio sexual na universidade13;14 persistem, demonstrando que se trata de uma questão institucional vivenciada pelas alunas.

Documentos e normativas de referência Os principais documentos e normativas de referência para as políticas desenvolvidas na UBA são: (i) Protocolo UBA;15 (ii) Estatuto Universitário (Estatuto UBA);16 e

12

O movimento “#NiUnaMenos” (movimento argentino em protesto contra a violência contra mulheres, cujo estopim foi o assassinato de uma gestante menor de idade) também contribuiu para o fomento dos debates, pressionando pela aprovação do protocolo.

13

De acordo com notícia veiculada no site El Dia, no dia 28 de julho de 2018, alunas da Faculdade de Ciências Econômicas da UBA denunciaram um caso de assédio sexual cometido por um professor do curso de recursos humanos por meio da rede social Facebook. A partir das denúncias, a UBA suspendeu o professor preventivamente de seu cargo para os quatro meses seguintes e iniciou uma investigação interna. Disponível em: https://www.eldia.com/ nota/2018-7-28-1-7-56-investigan-por-acoso-a-un-profesor-de-la-uba-informaciongeneral. Acesso em: 1º mar. 2019.

14

De acordo com notícia veiculada no site Infobae, no dia 1º de outubro de 2018, diversas ex-alunas do Colégio Nacional de Buenos Aires, um dos mais tradicionais colégios pré-universitários da Argentina e que é associado à UBA, denunciaram seis professores e dois vice-reitores por assédio sexual cometido durante os seis anos em que as alunas estudaram no referido colégio, ou seja, quando as vítimas ainda eram menores de idade. A denúncia se deu de forma pública durante o discurso da formatura das alunas. Dentre os atos de abuso relatados, citaram-se solicitações de fotos pessoais das vítimas, comentários indevidos sobre o decote das roupas das vítimas, contatos físicos não consentidos e incitação para que os colegas homens participassem do constrangimento às alunas. As vítimas também relataram a ausência de respostas e ações por parte da reitoria do colégio diante das denúncias, e recomendaram, durante a denúncia pública, a adoção de medidas preventivas, como a revisão dos planos didáticos para incluir mais bibliografia feminista, a reforma do regimento do colégio e a aplicação do Protocolo UBA. Disponível em: https:// www.infobae.com/sociedad/2018/10/01/ex-alumnas-del-colegio-nacional-buenos-airesdenunciaron-a-profesores-y-preceptores-por-acoso-dentro-de-la-institucion/. Acesso em: 1º mar. 2019.

15

Disponível em: http://www.uba.ar/archivos_uba/2015-12-09_4043.pdf. Acesso em: 13 mar. 2019.

16

Disponível em: https://rrhh.uba.ar/NormativaDocumentos/EstatutoUniversitario.pdf. Acesso em: 30 ago. 2019.

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(iii) Reglamento de Juicio Académico, sancionado por meio da Resolução CS nº 217/85 (Regulamento UBA).17

Descrição da política Resumidamente, a política da UBA é desenvolvida da seguinte forma: • Medidas de prevenção: O Protocolo UBA traz no seu artigo 14, de forma exemplificativa, as medidas de prevenção contra discriminação e violência de gênero, afirmando que, para fins de difusão e formação sobre o problema em questão, serão promovidas ações de sensibilização, difusão e formação, bem como fomentadas ações que busquem erradicar a violência de gênero, o assédio sexual ou qualquer outra forma de discriminação por razões de gênero, identidade de gênero ou orientação sexual na universidade; • Medidas de acolhimento de mulheres e/ou pessoas que sofreram outras formas de discriminação: pessoas que passam por alguma situação de discriminação na UBA poderão realizar uma denúncia ou consulta na Reitoria da UBA ou por meio das pessoas de referência da respectiva unidade da universidade. Uma vez constatada a situação de violência, as vítimas terão acesso à (i) assessoria jurídica e psicológica gratuita, podendo optar por iniciar ou não um procedimento administrativo e (ii) se houver necessidade de que a consultante ou denunciante e os denunciados mantenham contato direto por razões laborais ou acadêmicas, as autoridades da universidade deverão buscar a melhor forma de protegê-la, em conjunto com a denunciante e com o auxílio das pessoas de referência e outros responsáveis, de maneira que não prejudique o seu normal desenvolvimento laboral ou acadêmico. • Medidas de responsabilização dos docentes: nos termos do artigo 7º do Protocolo UBA, todas as condutas caracterizadas como atos de discriminação, assédio ou violência por razões de gênero, orientação sexual, classe, etnia, nacional ou religiosa, serão consideradas infrações para fins da aplicação do código disciplinar da UBA e, portanto, podem ensejar a imposição de sanções administrativas. A responsabilização, no entanto, é apenas realizada após um procedimento administrativo para apuração

17

Disponível em: http://www.uba.ar/download/institucional/estatutos/95-99.pdf. Acesso em: 13 mar. 2019. 121

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dos fatos, respeitando o contraditório e a ampla defesa, o chamado juicio académico. • Monitoramento: o artigo 15 do Protocolo UBA prevê a formação de uma equipe interdisciplinar de profissionais de referência e designação de uma pessoa de cada departamento, responsável pela produção de relatórios de monitoramento da implementação e funcionamento do Protocolo UBA.

4.1.2 Universidad Nacional de La Plata (UNLP)

Contexto de criação da política A UNLP tem vigente o Programa Institucional contra la Violencia de Género en el ámbito de la UNLP (Programa UNLP) e o Protocolo de actuación ante situaciones de discriminación y/o violencia de género en la UNLP (Protocolo UNLP). O Programa UNLP foi uma proposta coletiva coordenada pela Direção Geral de Direitos Humanos da Faculdade de Psicologia da UNLP, reunindo docentes pesquisadores da área de psicologia e docentes das Faculdades de Humanidades e Ciências da Educação, Jornalismo e Comunicação Social, Serviço Social e Ciências Jurídicas e Sociais. O Protocolo UNLP – resultado dos trabalhos integrados e multidisciplinares desse grupo – visa garantir uma comunidade universitária livre de discriminação, assédio e violência por razões de gênero ou diversidade sexual, promovendo condições de igualdade. O grupo chegou ao consenso de que referida política deveria ter como mínimo: (i) o compartilhamento de experiências similares em outras universidades nacionais; (ii) uma estratégia de sensibilização, visibilidade e formação sobre o tema, dirigida a todas as áreas institucionais de cada unidade da UNLP, para a prevenção, escuta e o acompanhamento das situações potencialmente conflitivas, que sejam comunicadas pelos trabalhadores, estudantes e/ou pessoal docente, permanente, visitante ou temporário; (iii) a implementação dessa política em todas as dependências da UNLP sem exceção; (iv) a formação de uma equipe interdisciplinar com conhecimentos para receber consultas e intervir em situações de violência, mediante estratégias e procedimentos que incluam a assessoria e o acompanhamento gratuito às vítimas, respeitando-se sua privacidade, confidencialidade e dignidade, evitando qualquer ato de revitimização, 122

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sendo importante, para essa finalidade, dispor de um protocolo e recursos que permitam uma ação interinstitucional e coordenada que possibilite o maior acompanhamento possível à vítima; (v) a disponibilidade de recursos humanos e de espaço físico capaz de atender presencialmente às consultas e orientações pertinentes em cada situação. Lançado em 2015, o Programa UNLP tem como objetivos: (i) construir um marco conceitual compartilhado sobre a violência de gênero, com normas que garantam direitos sexuais e integridade pessoal; (ii) promover a participação de distintas unidades acadêmicas e departamentos administrativos da UNLP no desenvolvimento de estratégias de sensibilização, capacitação e comunicação; e (iii) fortalecer capacidades institucionais para prevenir, detectar, atender e orientar quem tenha sido afetado por situações de violência de gênero, buscando restituir os direitos afetados mediante uma ação coordenada entre o programa e as faculdades.18 Mesmo após a implantação do Programa UNLP e do Protocolo UNLP, casos de violência de gênero e assédio sexual continuam a ser denunciados por alunas da universidade.19

Documentos e normativas de referência Os principais documentos e normativas de referência para as políticas desenvolvidas na UNLP são: (i) Programa UNLP;20 18

Em novembro de 2020, a pedido da ADULP, ATULP e da FULP, foi editada a Resolução n. 3609/20, a qual estabelece uma melhor aplicação da política de enfrentamento à violência de gênero na universidade no contexto de aulas virtuais e contatos por videoconferência, decorrentes da pandemia da Covid-19.

19

De acordo com notícia veiculada no site Minuto Uno, em junho de 2017, a comissão de estudantes da Faculdade de Humanidades e Ciências da Educação da UNLP denunciou um professor da matéria de "Introdução à Literatura" por assédio sistemático às suas alunas e abuso de sua posição de poder, praticado por meio de comentários e perguntas com alusões sexuais, intimidação e violência física. As estudantes realizaram campanha através da rede social Facebook, onde publicaram uma série de vídeos em que relatam diferentes episódios de assédio que sofreram por parte do docente. Em dezembro de 2016, as estudantes apresentaram uma denúncia coletiva nos termos do Protocolo UNLP, mas relataram que as autoridades universitárias deslegitimaram a gravidade da violência sofrida e revitimizaram as denunciantes. De acordo com a notícia, a universidade está analisando as medidas cabíveis para o caso. Disponível em: https://www.minutouno.com/ notas/1557849-estudiantes-la-unlp-denunciaron-un-profesor-acoso-sexual. Acesso em: 3 mar. 2019.

20

Disponível em: http://www.psico.unlp.edu.ar/uploads/docs/programa_institucional_contra_ la_violencia_de_genero_en_el_ambito_de_la_universidad_nacional_de_la_plata. pdf. Acesso em: 14 mar. 2019. 123

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(ii) Protocolo UNLP;21 (iii) Guía de recursos institucionales de Atención a las Violencias;22 (iv) Regimén de investigaciones administrativas, sancionado por meio do Decreto nº 276/2008 (Regimento UNLP).23

Descrição da política Resumidamente, a política da UNLP é desenvolvida da seguinte forma: • Medidas de prevenção: o Programa UNLP prevê as seguintes ações preventivas: (i) implementação de uma estratégia inicial de sensibilização e capacitação da comunidade universitária, por meio da oferta de um curso de formação em violência de gênero; (ii) formação de uma equipe por unidade que coordenará atividades preventivas; (iii) consolidação de uma equipe interdepartamental para facilitar a articulação entre as diferentes unidades e a Direção Geral de Direitos Humanos; (iv) realização de ações permanentes na difusão do Programa UNLP, mediante campanhas de prevenção, jornadas de sensibilização, folhetos explicativos, seminários e cursos, modificações curriculares etc.; (v) caracterização dos principais problemas que podem surgir em cada unidade, mapeando quais situações de violência lhes são comuns; e (vi) promoção do uso de uma linguagem não sexista nos diferentes discursos e/ou documentos acadêmicos e administrativos da universidade. • Medidas de acolhimento de mulheres e/ou pessoas que sofreram outras formas de discriminação: o Programa UNLP busca promover a proteção integral das pessoas afetadas por situações de violência de gênero, por meio da atuação de uma equipe interdisciplinar de profissionais da Direção Geral de Direitos Humanos, formada por uma psicóloga, uma advogada e uma assistente social, que se encarregarão de oferecer atendimento, acompanhamento e assessoria às pessoas que lhes consultarem, e contarão com um guia de recursos com a finalidade de articular outros espaços

21

Disponível em: https://www.fahce.unlp.edu.ar/descargables/protocolo-de-actuacion-encasos-de-violencia-de-genero.pdf/view. Acesso em: 14 mar. 2019.

22 Disponível em: http://www.psico.unlp.edu.ar/uploads/docs/14_ _ordenanza_276_08_ regimen_de_investigaciones_administrativas_ _1_.pdf. Acesso em: 14 mar. 2019. 23

Disponível em: http://www.psico.unlp.edu.ar/uploads/docs/14_ _ordenanza_276_08_ regimen_de_investigaciones_administrativas_ _1_.pdf. Acesso em: 4 set. 2019.

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institucionais que possam dar andamento às solicitações ou à consulta apresentada, evitando-se revitimizações e burocracia. • Medidas de responsabilização dos docentes: nos termos do artigo 3º do Protocolo UNLP, todas as condutas caracterizadas como atos de discriminação, assédio ou violência por razões de gênero, identidade de gênero ou orientação sexual serão consideradas infrações para fins da aplicação do Regime de Processos Administrativos e, portanto, podem ensejar a imposição de sanções administrativas. A responsabilização, no entanto, é apenas realizada após um procedimento administrativo para apuração dos fatos, respeitando o contraditório e ampla defesa. • Monitoramento: o Programa UNLP determina a elaboração de levantamentos, nas suas unidades acadêmicas, sobre as denúncias relativas à discriminação, assédio e violência por razões de gênero ou diversidade sexual, a fim de elaborar estatísticas e realizar uma análise sistemática das situações, para adotar novas medidas de prevenção e aperfeiçoar as existentes.

4.2 Brasil

4.2.1 Fundação Getulio Vargas (FGV) De acordo com informações fornecidas pela ouvidoria da FGV existem duas organizações estudantis que trabalham com a temática de gênero na FGV do Rio de Janeiro (FGV-Rio): (i) União de Mulheres da FGV-Rio,24 que organiza encontros mensais para discussão sobre a desigualdade de gênero presente na academia, bem como disponibiliza suporte, por meio de uma ouvidoria,25 às mulheres que passaram por situações de violência de gênero na universidade;

24 Mais informações disponíveis em: https://www.facebook.com/uniaodemulheresfgvrio/. Acesso em: 15 set. 2019. 25

Mais informações sobre a União de Mulheres da FGV-Rio podem ser encontradas em suas redes sociais: https://instagram.com/uniaodemulheresdafgv?igshid=YmMyMTA2M2Y=. Acesso em 17/10/2022. 125

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e (ii) Coletivo LGBTI+Existo,26 organização que oferece apoio e acolhimento para pessoas ou pesquisadoras para atuação no projeto Políticas Universitárias sobre Igualdade de Gênero.27 Ainda, de acordo com informações disponíveis no site da FGV, a Faculdade possui um Comitê de Diversidade, responsável pelo recebimento de informações, demandas e eventuais denúncias oriundas de qualquer membro da comunidade acadêmica. Não foram encontradas informações acerca de políticas que tratam especificamente da prevenção e do enfrentamento de discriminações em razão de gênero, com foco em assédio, na universidade.

4.2.2 Universidade Presbiteriana Mackenzie (Mackenzie) No mês de abril de 2019, alunas do coletivo feminista Zaha,28 da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e Design, promoveram campanha de denúncia de situações de violência e assédio realizadas pelo corpo discente. Para tanto, foram expostos diversos cartazes nos corredores da instituição expondo frases ditas por professores durante o período de aula. São exemplos das falas estampadas: “Seu trabalho está ruim, você podia pelo menos ter vindo com uma saia mais curta”, “para uma menina, você projeta muito bem”, “se quiser dar soco, soca até a mulher, mas não soca a parede estrutural” e “agora vamos explicar de novo, porque na sala tem muitas meninas”. A campanha obteve grande repercussão midiática, sendo publicada por inúmeros meios de comunicação nacionais.29 Não foram encontradas informações acerca de políticas que tratam especificamente da prevenção e do enfrentamento de discriminações em razão de gênero, com foco em assédio, na universidade.30

26 Mais informações disponíveis em: https://www.facebook.com/coletivoexisto/?ref=py_ c&ei-d=ARDF4ksaxTsKxdDA9GhyvbwZJcanwP7bjGtGVqrXJ0TrhvoDW9EuKpNUw7u88CNFdECbLl11pAIUtJIH. Acesso em: 15 set. 2019. 27 Disponível em: https://direitosp.fgv.br/noticia/comite-de-diversidade-selecionapesquisador-para-projeto-sobre-igualdade-de-genero. Acesso em: 30 ago. 2019. 28

Mais informações em: https://pt-br.facebook.com/coletivozaha/. Acesso em: 30 ago. 2019.

29 Reportagem disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/saopaulo/2016/04/ 1766152-alunas-do-mackenzie-e-da-poli-usp-fazem-campanhas-contra-machismo. shtml. Acesso em: 30 ago. 2019. 30

Os dados aqui pesquisados estão atualizados até 30 de agosto de 2019.

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4.2.3 Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) Em 2016, foi disponibilizado para toda a comunidade acadêmica documento que estabelece as diretrizes sobre Assédio Moral, Sexual, Discriminação e Desigualdade na PUC-SP (Diretrizes da PUC-SP). O documento contou com a colaboração de dois docentes, professora Silvia Carlos da Silva Pimentel e professor Celso Fernandes Campilongo, e foi inicialmente aprovado pelo colegiado diretivo da Faculdade de Direito. Na sequência, passando pela aprovação do Conselho Universitário, as diretrizes foram incorporadas pela universidade como um todo. A iniciativa se deu a partir de uma proposta elaborada pelo Grupo de Pesquisa Direito, Discriminação de Gênero e Igualdade, como resposta a caso noticiado de discriminação, ocorrido no final de 2014. O objetivo da política era inserir o tema do assédio sexual na perspectiva de gênero. Durante sua elaboração, suas metas foram expandidas, com a inclusão de outras formas de discriminação e violência por questões econômicas e raciais, comuns aos então recém-ingressados alunos do Programa Universidade Para Todos (Prouni).31 A criação do documento foi influenciada também pelo episódio ocorrido em abril de 2016, em que estudantes da Universidade Mackenzie, em São Paulo, se organizaram em uma campanha para expor situações de assédio sexual de professores contra alunas na faculdade. Nesse episódio, as alunas imprimiram frases sexistas e abusivas que professores teriam dito para mulheres em sala de aula ou no ambiente acadêmico. A campanha foi motivada por um comentário de um professor que fazia piada sobre as vítimas do médico Roger Abdelmassih,32 condenado a 278 anos de prisão em 2010 por estuprar e assediar 56 pacientes.

Documentos e normativas de referência O principal documento de referência para o desenvolvimento de ações de enfrentamento ao assédio da PUC-SP são as Diretrizes sobre Assédio Moral, Sexual, Discriminação e Desigualdade na PUC-SP, elaboradas considerando os

31

Disponível em: https://www.pucsp.br/sites/default/files/download/reitoria/Diretrizes-sobr e-assedio-moral-sexual-discriminacao-PUC-SP.pdf. Acesso em: 17 mar. 2019.

32 Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2016/07/28/Como-as-maiore s-universidades-do-mundo-combatem-o-ass%C3%A9dio-sexual-no-campus. Acesso em: 17 mar. 2019. 127

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princípios do Estatuto da Universidade33 e seu Regimento Interno,34 em especial o artigo 322.35

Descrição da política Resumidamente, a política da PUC-SP é desenvolvida da seguinte forma: • Medidas de prevenção: de acordo com o artigo 2º das Diretrizes da PUC-SP, o Conselho da Faculdade de Direito recomenda a realização de ações visando à sensibilização e conscientização por meio de: (i) reflexões a respeito da ocorrência dessa problemática e da sua gravidade para o ambiente acadêmico; (ii) promoção de diálogo permanente acerca da temática que possibilite a construção de um ambiente igualitário, inclusivo e solidário; e (iii) promoção de eventos, seminários e aulas com o conteúdo relacionado aos objetivos das diretrizes. • Medidas de acolhimento e/ou pessoas que sofreram outras formas de discriminação: de acordo com o artigo 3º das Diretrizes da PUC-SP, “nos casos em que for constatada situação que ofenda os princípios e diretrizes acima, cabe à pessoa ofendida, ou àquela pessoa que tenha conhecimento dessa ofensa, comunicar à Ouvidoria”.36 • Medidas de responsabilização dos docentes: o artigo 4º das Diretrizes da PUC determina que “o Conselho Universitário da PUC-SP, quando concluir pela ocorrência violação das presentes Diretrizes e Recomendações, adotará as medidas estatutárias e regimentais que o caso exigir, dando-lhes absoluta prioridade”.37 • Monitoramento: não há previsão de medidas de monitoramento.

33

Disponível em: https://www.pucsp.br/sites/default/files/download/Estatuto_PUC-SP.pdf. Acesso em: 4 set. 2019.

34

Disponível em: https://www.pucsp.br/sites/default/files/download/posgraduacao/deliberacao2 _2012_regimento.pdf. Acesso em: 4 set. 2019.

35

Disponível em: https://www.pucsp.br/sites/default/files/download/aci/diretrizes_sobre_ discriminacao_e_desigualdade.pdf. Acesso em: 20 mar. 2019.

36

Disponível em: https://www.pucsp.br/sites/default/files/download/aci/diretrizes_sobre_ discriminacao_e_desigualdade.pdf. Acesso em: 20 mar. 2019.

37

Dados atualizados até 30 de agosto de 2019.

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4.2.4 Universidade Federal Fluminense (UFF)

Contexto de criação da política No início de 2016, uma denúncia formal relatando atos de assédio sexual cometidos por um docente foi protocolada na ouvidoria da UFF por dezesseis alunas com o apoio de uma advogada e uma professora da universidade. A denúncia deu início a uma sindicância, finalizada em outubro daquele ano, cujo relatório final concluiu pela necessidade da instauração de um processo administrativo disciplinar para apurar a conduta do docente. Tendo em vista a demora da UFF em iniciar um processo administrativo, houve apresentação de queixa-crime contra o professor perante a autoridade policial. A universidade foi intimada a apurar as denúncias por meio de processo administrativo e, ainda assim, somente em maio de 2017 o processo disciplinar foi instaurado.38 O acontecimento ensejou mudanças de práticas e diretrizes da UFF, fazendo com que houvesse uma valorização dos debates contra o assédio, estimulando a criação de informativos com diretrizes e maior celeridade nas sindicâncias e processos administrativos.

Documentos e normativas de referência Os principais documentos e normativas de referência para as políticas desenvolvidas na UFF são: (i) Cartilha informativa sobre violência contra as mulheres (Cartilha UFF):39 descreve as práticas que configuram violência contra as mulheres e assédio, formas de prevenção, destacando a importância sobre o debate, formas de acolhimento e recebimento de denúncias; (ii) Estatuto da UFF (Estatuto UFF);40 (iii) Regimento Geral da UFF (Regimento UFF).41 38

Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ciencia/2019/02/professores-universitariossao-demitidos-apos-denuncias-de-agressao-sexual.shtml. Acesso em: 17 mar. 2019.

39

Disponível em: http://www.uff.br/sites/default/files/paginas-internas-orgaos/cartilha_assedio _mulher_uff.pdf. Acesso em: 17 mar. 2019.

40

Disponível em: http://www.uff.br/sites/default/files/estatuto-regimento-uff.pdf. Acesso em: 4 set. 2019.

41 Ibidem. 129

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Descrição da política Resumidamente, a política da UFF é desenvolvida da seguinte forma: • Medidas de prevenção: a UFF tem como prioridade a prevenção do assédio e estabelece em seu Regimento UFF e Estatuto UFF que os gestores devem promover um ambiente de trabalho dialógico, participativo e transparente em que o respeito seja fundamental e o assédio não seja tolerado. Os trabalhadores devem evitar palavras, gestos ou atitudes de desrespeito aos colegas e não praticar, se submeter ou compactuar com nenhum tipo de violência. • Medidas de acolhimento e/ou pessoas que sofreram outras formas de discriminação: a UFF oferece auxílio por meio da ouvidoria da universidade para todos os tipos de violência. Em casos de ocorrência de assédio no ambiente de trabalho, além da ouvidoria, as seguintes instâncias são indicadas para realização do primeiro acolhimento: (i) Comissão de Ética da UFF, (ii) Coordenação de Atenção Integral à Saúde e Qualidade de Vida (Casq/Progepe), (iii) UFF Mulher/Proex,42 (iv) SOS Mulher/Huap43 e (v) Sindicato dos Trabalhadores em Educação da UFF (Sintuff).44 • Medidas de responsabilização dos docentes: as denúncias podem ser realizadas por meio de diversos órgãos como a própria Ouvidoria, a Comissão de Ética da UFF, a Coordenação de Atenção Integral à Saúde e Qualidade de Vida (Casq/Progepe), a UFF Mulher/Proex, o SOS Mulher/Huap ou o Sindicato dos Trabalhadores em Educação da UFF (Sintuff). Após a apresentação da denúncia, o fato poderá ser apurado por meio de sindicância seguida, se for o caso, de processo administrativo que poderá resultar na aplicação de sanções disciplinares. • Monitoramento: não há previsão de medidas de monitoramento.

42 O Programa UFF Mulher tem por objetivo promover, ao longo de todo o ano, diferentes atividades relacionadas à questão de gênero, principalmente, debates com temas que permeiam desde a qualidade de vida, inserção no mercado de trabalho e enfrentamento à violência contra a mulher. Mais informações em: https://www.uff.br/?q=node/8481/ backlinks. Acesso em: 7 set. 2019. 43

Programa de extensão que realiza o atendimento de mulheres em situação de violência que chegam ao Serviço de Obstetrícia do HUAP. Mais informações em: http://www.uff. br/?q=-noticias/17-10-2016/programa-sos-mulher-no-huap-atendimento-vitimas-deviolencia-sexual. Acesso em: 7 set. 2019.

44 Mais informações em: https://www.sintuff.org.br/. Acesso em: 7 set. 2019. 130

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4.2.5 Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

Contexto de criação da política A pesquisa não identificou uma política institucionalizada sobre o tema na UFRJ, sendo encontradas apenas informações sobre a campanha “Não se cale”, instituída em maio de 2016 para a formação dos Fóruns Contra Violências no Ambiente Universitário. O movimento surgiu como forma de enfrentamento a todas as formas de violência que afetam a comunidade universitária, tendo como objetivo “eliminar da universidade o racismo, a xenofobia, a LGBTI+fobia, o machismo, o assédio e os trotes violentos, dentre outras manifestações que atingem a dignidade humana”.45 De acordo com o site da UFRJ, a Reitoria afirma que a universidade está comprometida na luta contra as manifestações de violência, dando suporte a quem precisar de apoio institucional. Além dessa campanha, foi encontrado documento elaborado pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ (IFCS), que estabelece diretrizes para prevenir e combater o assédio moral e sexual no IFCS. Esse documento expressa o reconhecimento, pela comunidade do IFCS, “da importância do seu papel na promoção da igualdade e da cidadania, e seu comprometimento com a eliminação de práticas de desrespeito, discriminação e da violência por assédio moral e sexual, dentro e fora do instituto”.46

Documentos e normativas de referência Não foi identificada especificamente uma política de enfrentamento ao assédio sexual ou a qualquer outra forma de violência de gênero na UFRJ, no entanto os seguintes documentos merecem ser citados: (i) Campanha “Não se cale”, para promoção de ambientes livres de violência, que foram registradas em documentos denominados como “Memórias das Reuniões”47, sendo que a Memória da Reunião de 14/07/2016 trouxe para discussão o enfrentamento ao assédio sexual.48

45

Informações disponíveis em: https://ufrj.br/naosecale. Acesso em: 7 set. 2019.

46

Disponível em: https://ufrj.br/portal-antigo/nao-se-cale/. Acesso em: 17 mar. 2019.

47

Disponível em: https://ufrj.br/sites/default/files/documentos/2016/08/memoria_da_reuniao14.07.2016.pdf. Acesso em: 17 mar. 2019.

48 Ibidem. 131

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(ii) Documento elaborado pelo IFCS sobre diretrizes para prevenir e combater o assédio moral e sexual (Diretrizes do IFCS).49

Descrição da política Resumidamente, a política da UFRJ é desenvolvida da seguinte forma: • Medidas de prevenção: as Diretrizes do IFCS estabelecem como recomendação “a todos/as os/as docentes, funcionários/as, estudantes, representantes de órgãos de gestão e administração, funcionários/as que prestam serviços terceirizados, enfim, a todos os integrantes da comunidade universitária, a elaboração, organização e participação em atividades vinculadas ao ensino, pesquisa e extensão que tenham o caráter de reflexão e informação sobre assédio moral e sexual (seja através de cursos, encontros, seminários, palestras e outros eventos), propiciando, assim, também o aprofundamento do debate sobre diversidade, igualdade e cidadania no IFCS”. • Medidas de acolhimento de mulheres e/ou pessoas que sofreram outras formas de discriminação: não foram encontradas informações acerca de medidas de acolhimento de mulheres e/ou pessoas que sofreram outras formas de discriminação.50 • Medidas de responsabilização dos docentes: as Diretrizes do IFCS estabelecem que deve ser realizada “a aplicação da sanção disciplinar como medida educativa e preventiva”,51 em face dos docentes responsabilizados pela prática de assédio moral ou sexual. • Monitoramento: não foram encontradas informações acerca do monitoramento das recomendações.52

49

Disponível em: http://www.ifcs.ufrj.br/images/assediomoral/Doc.-contra-assedio-pg.-IF-CS. pdf. Acesso em: 19 mar. 2019.

50

Dados atualizados até 30 de agosto de 2019.

51 Ibidem. 52 Ibidem. 132

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Políticas de enfrentamento ao assédio e à violência de gênero em universidades

4.2.6 Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)

Contexto de criação da política Não foi identificada especificamente uma política de enfrentamento ao assédio sexual ou a qualquer outra forma de violência de gênero na Unicamp, entretanto, em 2017, foi constituído Grupo de Trabalho formado pelo Conselho Universitário (Consu) para elaborar uma política de enfrentamento à violência sexual e à discriminação baseada em gênero na universidade.53 A iniciativa integra uma série de políticas para a promoção da cidadania, dividida em três eixos: (i) posicionamento claro da Unicamp quanto à não tolerância de práticas que envolvam assédio e violência sexual, (ii) definição de um protocolo para acolhimento e (iii) encaminhamento de queixas. O Grupo de Trabalho concluiu o seu relatório em junho de 2018, apresentando-o ao Consu.54 Dentre as medidas sugeridas está a criação de um Comitê Gestor, que teria a atribuição de elaborar, implementar e acompanhar as iniciativas nessa área. O texto indica, ainda, a instituição de um Centro de Atenção à Violência Sexual (CAVS), com presença nos três campi, cujo propósito seria oferecer atendimento especializado às pessoas que passaram por situações de violência sexual. Outra atividade cumprida pelo Grupo de Trabalho foi a recomendação de protocolos de atendimento aos eventuais casos de violência sexual e discriminação de gênero. De acordo com a presidente do Grupo de Trabalho, professora Ana Maria Fonseca de Almeida, “um aspecto fundamental é a garantia do direito ao sigilo das pessoas envolvidas. Além disso, temos que assegurar que a vítima de violência sexual, por exemplo, relate o episódio ao menor número de pessoas possível, no menor número de vezes, de modo a preservá-la ao máximo”.55 Por fim, o relatório recomenda a promoção, por parte do Comitê Gestor, de ações educativas e de conscientização da comunidade universitária, bem como a oferta de treinamento a docentes, alunos e funcionários que possam vir a

53

UNICAMP criará política de combate à violência sexual. Disponível em: https://www.unicamp. br/unicamp/noticias/2018/04/20/unicamp-criara-politica-de-combate-violencia-sexual. Acesso em: 20 mar. 2019.

54 Informações disponíveis em: https://revistapesquisa.fapesp.br/2018/07/19/unicampdiscute-discriminacao-de-genero-e-violencia-sexual-2/. Acesso em: 7 set. 2019. 55 Ibidem. 133

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receber, no seu local de trabalho ou estudo, eventuais denúncias de agressões ou discriminação.

Documentos e normativas de referência Embora haja ocorrido reunião para elaboração da política, não foram encontrados documentos relativos à sua aprovação formal pela reitoria da Unicamp. Existem, contudo, medidas regulamentadas sobre canais de denúncia principalmente voltados ao assédio moral: (i) Instrução Normativa DGRH nº 002/201672 e (ii) Termo de Ajuste de Conduta nº 303.2015.56 Quanto à prevenção e aos esclarecimentos de como solicitar ajuda nos casos de assédio, há o Guia do Calouro, disponibilizado ao corpo discente.57

Descrição da política Resumidamente, a política da Unicamp é desenvolvida da seguinte forma: • Medidas de prevenção: algumas ações educativas promovidas pela Unicamp buscam promover e conscientizar sobre o assédio e apontar medidas de prevenção, sendo uma delas o Guia do Calouro, disponibilizado via portal educacional, que contém uma breve descrição das seguintes formas de violência sexual: (i) assédio moral baseado em gênero e/ou sexualidade, (ii) assédio sexual, (iii) assédio sexual cibernético e (iv) estupro. O guia também apresenta telefones de contato e locais de atendimentos, como ambulatórios e hospitais, além de divulgar o aplicativo “Botão do Pânico”, por meio do qual os serviços de segurança da Unicamp podem ser diretamente acessados. • Medidas de acolhimento de mulheres e/ou pessoas que sofreram outras formas de discriminação: são realizadas pelo Serviço de Assistência Psicológica e Psiquiátrica ao Estudante (SAPPE), órgão ligado à Pró-Reitoria de Graduação, que tem por objetivo prestar assistência

56

Disponível em: http://www.dgrh.unicamp.br/documentos/instrucoes-normativas/instrucoesnormativas-dgrh-2015/instrucao-normativa-dgrh-no-003-2015. Acesso em: 18 mar. 2019. Disponível em: https://www.dgrh.unicamp.br/documentos/instrucoes-normativas/ instrucoes-normativas-dgrh-2016/instrucao-normativa-dgrh-no-002-2016. Acesso em: 20 abr. 2022.

57

Disponível em: https://www.google.com/search?q=uff+assedio+sexual&rlz=1C1GCEB_ enBR814BR814&oq=uff+assedio+sexual&aqs=chrome.0.69i59.6689j0j7&sourceid= chrome&ie=UTF-8. Acesso em: 19 mar. 2019.

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psicológica e psiquiátrica aos alunos e alunas regulares (de graduação e de pós-graduação stricto sensu) da Unicamp. • Medidas de responsabilização dos docentes: a responsabilização dos docentes deve observar o disposto no Estatuto dos Servidores da Unicamp, sendo realizada mediante processo administrativo disciplinar e meios sumários (sindicância administrativa, verdade sabida e termo de declarações). • Monitoramento: não foram encontradas no âmbito dessa pesquisa informações sobre o monitoramento das políticas acima relatadas.

4.2.7 Universidade Estadual Paulista (Unesp)

Contexto de criação da política A pesquisa não identificou política institucionalizada para o enfrentamento do assédio e violência de gênero na Unesp. A Comissão de Direitos Humanos do Instituto de Artes da universidade, criada com objetivo principal de atuar em conjunto com a direção, de forma educativa e preventiva com ações referentes aos direitos humanos, de acordo com as demandas concretas da comunidade do Instituto de Artes, publicou o texto “Precisamos falar sobre: Assédio Sexual”, cujo objetivo é exemplificar as diversas violações aos direitos humanos que podem ocorrer no ambiente universitário.58

Documentos e normativas de referência Os principais documentos e normativas de referência para as políticas desenvolvidas na Unesp são: (i) Cartilha “Precisamos falar sobre: Assédio Sexual”, elaborada com base na Cartilha Assédio Sexual no Trabalho do Ministério Público do Trabalho; Cartilha contra todas as formas de assédio, em defesa dos direitos das mulheres, das/os indígenas, das/os negros e das/dos LGTBs, do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino

58

Disponível em: https://www.ia.unesp.br/Home/comunidade/direitoshumanos/precisamosfalar-sobre-assedio-sexual.pdf. Acesso em: 17 mar. 2019. 135

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Superior (ANDES-SN), e o site eletrônico do Conselho Nacional de Justiça: www.cnj.jus.br;59 (ii) Estatuto dos Servidores Técnicos e Administrativos da Unesp (Resolução Unesp nº 165, de 06/08/2019 – “ESUNESP”).60

Descrição da política Resumidamente, a política da Unesp é desenvolvida da seguinte forma: • Medidas de prevenção: o documento “Precisamos falar sobre: Assédio Sexual” traz informações sobre o que fazer em caso de assédio, indicando os seguintes canais de denúncia: (i) governo federal, por meio do número 180 (Central de Atendimento à Mulher); e (ii) Ouvidoria do Instituto de Artes da Unesp, por meio de site da instituição.61 No “caso do/a trabalhador/a, a denúncia também poderá ser realizada ao Sindicato, no Ministério Público do Trabalho de sua localidade, na delegacia da Mulher, caso a vítima seja mulher e, se homem, na delegacia comum”.62 • Medidas de acolhimento de mulheres e/ou pessoas que sofreram outras formas de discriminação: são realizadas pelo Serviço de Assistência Psicológica e Psiquiátrica ao Estudante (SAPPE), órgão ligado à Pró-Reitoria de Graduação que tem por objetivo prestar assistência psicológica e psiquiátrica aos alunos e alunas regulares (de graduação e de pós-graduação stricto sensu) da Unicamp. • Medidas de responsabilização dos docentes: a responsabilização dos docentes deve ser realizada por meio dos seguintes procedimentos: (i) apuração preliminar (arts. 186 e 187 do ESUNESP), procedimento de natureza investigativa, realizado quando a infração não estiver suficientemente caracterizada ou definida a sua autoria; (ii) sindicância administrativa (arts. 188 a 193 do ESUNESP): procedimento de natureza investigativa instaurado quando a falta disciplinar possa determinar as penas de

59 Ibidem. 60 Disponível em: https://www.ibilce.unesp.br/Home/Administracao456/RH/esunesp_2013. pdf. Acesso em: 8 set. 2019. 61

Disponível em: https://www.ia.unesp.br/#!/sobre-o-campus/ouvidoria-ia/fale-com-aouvidoria/. Acesso em: 19 mar. 2019.

62 Ibidem. 136

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repreensão63 ou suspensão64; (iii) processo administrativo disciplinar (arts. 194 a 209-F do ESUNESP): tem por finalidade a apuração de fatos que possam configurar irregularidade no serviço público, com posterior aplicação das penalidades disciplinares cabíveis ao servidor. • Monitoramento: não foram encontradas no âmbito dessa pesquisa informações sobre o monitoramento das políticas acima relatadas.

4.3 Colômbia

4.3.1 Universidad de Los Andes (Uniandes)

Contexto de criação da política A Uniandes é signatária do Protocolo para casos de maltrato, acoso, amenaza, discriminación y afines (Protocolo MAAD), aprovado pela universidade em agosto de 2016 e atualizado em fevereiro de 2019. Os casos reportados de maus-tratos, assédio, ameaça e discriminação na Uniandes,65 praticados principalmente por meio de redes sociais, ensejaram um estudo mais aprofundado dessas condutas e das formas de seu enfrentamento. Nesse contexto, as seguintes medidas foram implementadas na universidade: (i) Modificação dos regulamentos internos para incorporar práticas formativas e restaurativas e permitir a intervenção nos casos ocorridos dentro e fora do campus da universidade nas seguintes situações: (a) fatos ocorridos dentro do campus ou por meio da utilização de plataformas tecnológicas administradas pela Uniandes, (b) fatos que ocorram fora do campus ou por qualquer meio de comunicação durante o exercício de uma atividade 63

Artigo 174, ESUNESP - A pena de repreensão será aplicada por escrito, nos casos de indisciplina ou falta de cumprimento dos deveres funcionais.

64 Artigo 175, ESUNESP - A pena de suspensão, que não excederá 90 (noventa) dias, será aplicada em casos de falta grave ou de reincidência. 65

De acordo com notícia veiculada no site El Tiempo, em junho de 2016, após denúncia de uma funcionária da Uniandes contra o professor e historiador Hermes Tovar por assédio sexual, a instituição, após investigar o caso em processo disciplinar, decidiu demitir o docente. Disponível em: https://www.eltiempo.com/archivo/documento/CMS-16621623. Acesso em: 12 nov. 2019. 137

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laboral ou acadêmica relacionada à universidade, (c) fatos que ocorram fora do campus ou por intermédio de meios de comunicação ou redes sociais e que afetem de maneira grave a convivência universitária e as relações de trabalho ou acadêmicas de uma integrante da universidade, (d) fatos que ocorram em lugares administrados pela universidade e, por fim, (e) acontecimentos que afetem a reputação da Uniandes; (ii) Criação do Protocolo MAAD e do Comitê MAAD66 para proteger de maneira imediata e tempestiva a integridade e o bem-estar das vítimas; (iii) Realização de campanhas de sensibilização; (iv) Divulgação dos canais de denúncia da universidade; (v) Gestão do Ombudsperson para facilitar a resolução de conflitos de convivência por meio do diálogo e mediação; (vi) Criação de espaços acadêmicos de discussão. A elaboração do Protocolo MAAD foi resultado de dois anos de trabalhos conjuntos entre diversas instâncias interdisciplinares da Uniandes, tanto institucionais como estudantis.

Documentos e normativas de referência Os principais documentos e normativas de referência são: (i) Protocolo para casos de maltrato, acoso, amenaza, discriminación y afines, sancionado pelo Comitê Diretivo da Uniandes em sessão realizada em agosto de 2016, e atualizado na sessão nº 181-19 de 22 de fevereiro de 2019;67 e (ii) Regulamento do Trabalho, aprovado pelo Comitê Diretivo na sessão nº 152-17 de 27 de setembro de 2017.68

Descrição da política Resumidamente, a política da Uniandes é desenvolvida da seguinte forma:

66 Descrito em tópico adiante do presente memorando. 67 Disponível em: https://vde.uniandes.edu.co/images/cartaRector/marzo-2019/images/ acuerdos/Protocolo-MAAD-2019.pdf. Acesso em: 14 mar. 2019. 68 Disponível em: https://ghdo.uniandes.edu.co/images/2017/Politicas-formatos/ reglamento-de-trabajo-aprobado-comit-directivo-152-17-version-definitiva-e nviada-a-empleados-ene-2018.pdf. Acesso em: 14 mar. 2019. 138

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• Medidas de prevenção: a Uniandes promove campanhas de sensibilização e formação da sua comunidade quanto às condutas combatidas pelo Protocolo MAAD, disponibilizando em seu site uma seção permanente sobre o documento e os canais institucionais para denúncia aos interessados, além de possuir uma rede institucional permanente de órgãos e entidades que se dedicam à aplicação integrada do Protocolo MAAD. Tais medidas são coordenadas pela rede institucional responsável pela aplicação do Protocolo MAAD, especialmente pelo Colectivo Pares de Acompañamiento Contra el Acoso (PACA). • Medidas de acolhimento de mulheres e/ou pessoas que sofreram outras formas de discriminação: De acordo com o artigo 5º do Protocolo MAAD, as seguintes ações podem ser tomadas pela universidade: (i) colocar à disposição das pessoas afetadas a assistência emocional, médica, jurídica e outras que sejam necessárias para o manejo da situação; (ii) informar às pessoas afetadas o procedimento estabelecido no protocolo, bem como as demais políticas e procedimentos institucionais e legais aplicáveis; (iii) realizar uma avaliação preliminar do caso para definir a sua estratégia; (iv) estabelecer medidas preventivas, imediatas e provisórias para proteger as pessoas afetadas; e (v) vincular os terceiros contratados pela universidade, para que tomem as ações aplicáveis para que os seus empregados conheçam e atuem em conformidade com o Protocolo MAAD. • Medidas de responsabilização dos docentes: a responsabilização dos docentes deve ser realizada após a realização de um procedimento disciplinar. O Capítulo IV do Regulamento de Trabalho da Uniandes prevê as normas e os procedimentos aplicáveis ao processo disciplinar, e o Capítulo V prevê as normas específicas para os casos de assédio, ameaça, maus-tratos e discriminação. • Monitoramento: é realizado pelos órgãos e entidades que compõem a sua rede institucional, de acordo com as respectivas competências e por meio de ferramentas que se considerem as mais adequadas em cada caso.

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4.3.2 Universidad Nacional de Colombia (UNC)

Contexto de criação da política A UNC aprovou, em 2012, sua política institucional de igualdade de gênero e de oportunidades para mulheres e homens e criou, por meio do Acordo nº 35/2012, o Observatório de Assuntos de Gênero (OAG), composto pela Direção Nacional de Bem-estar Universitário e pela Secretaria Técnica da Escola de Estudos de Gênero da Faculdade de Ciências Humanas da UNC, para monitorar o cumprimento da referida política e incorporar assuntos de gênero na universidade por meio de diagnóstico e elaboração de recomendações que garantam a implementação e a visibilidade do tema nas políticas institucionais. Em linha com a referida política e o seu objetivo de prevenir, atender e erradicar as violências baseadas em gênero e as violências sexuais, a UNC lançou o Protocolo para la prevención y atención de casos de violencias basadas em género y violencias sexuales (Protocolo UNC), elaborado pelos departamentos da universidade que possuem conhecimento sobre as problemáticas envolvidas, além de integrantes do OAG, da Escola de Estudos de Gênero, bem como de outros órgãos e entidades locais dedicados à defesa dos direitos e interesses das mulheres. O Protocolo UNC foi sancionado por meio da Resolução nº 1.215/2017. Cumpre notar que o engajamento da UNC nos assuntos de violência de gênero e discriminação remonta ao Programa de Estudos de Gênero, Mulher e Desenvolvimento (PGMD), criado em 1994, na Faculdade de Ciências Humanas, por iniciativa de professoras integrantes do grupo Mulher e Sociedade, com o apoio de outras pesquisadoras do tema. Em 2001, o PGMD foi convertido em unidade acadêmica da faculdade sob o nome Escola de Estudos de Gênero (EEG). Relata-se que a EEG foi pioneira na Colômbia por ser a única unidade acadêmica com programas de pós-graduação focados em estudos de gênero, sendo reconhecida por difundir o feminismo e a perspectiva de gênero no espaço acadêmico. A EEG atua principalmente na formulação de projetos de pesquisa e extensão, bem como na realização de seminários e palestras com o objetivo de analisar, visibilizar e transformar as relações de gênero sob perspectiva interseccional. Mesmo após a implantação do Protocolo UNC, houve denúncias acerca de casos de violência de gênero no âmbito da UNC, demonstrando que o problema persiste.

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Documentos e normativas de referência Os principais documentos e normativas de referência são: (i) Protocolo para la prevención y atención de casos de violencias basadas en género y violencias sexuales, sancionado por meio da Resolução nº 1.215/201769 (“Protocolo UNC”); (ii) Estatuto disciplinario del personal académico y administrativo de la Universidad Nacional de Colombia, sancionado por meio do Acordo nº 171/201470 (“Estatuto Disciplinar”); (iii) Acordo nº 20/2018, que regulamenta os programas da Área de Acompanhamento Integral do Sistema de Bem-estar Universitário da UNC, expedido em 19/04/2018 e vigente desde 07/05/2018.71

Descrição da política Resumidamente, a política da UNC é desenvolvida da seguinte forma: • Medidas de prevenção: a UNC realiza três formas de ações preventivas: (i) ações para difundir os conhecimentos sobre o Protocolo UNC a todos os integrantes da comunidade universitária e sua estratégia de atendimento, bem como para estimular a denúncia dos casos de violência; (ii) ações para sensibilizar a comunidade universitária sobre as violências, transformar os estereótipos de gênero e sexualidade que reforçam a discriminação e desnaturalizar práticas arraigadas culturalmente que legitimam a violência como forma de exercício de poder nas relações; (iii) ações para visibilizar a existência das violências na universidade e suas consequências na vida pessoal e coletiva. • Medidas de acolhimento de mulheres e/ou pessoas que sofreram outras formas de discriminação: uma vez identificado ou denunciado um fato relacionado à violência baseada no gênero ou sexual, é acionada a estratégia de 69 De acordo com notícia veiculada no site El Tiempo, em junho de 2016, após denúncia de uma funcionária da Uniandes contra o professor e historiador Hermes Tovar por assédio sexual, a instituição, após investigar o caso em processo disciplinar, decidiu demitir o docente. Disponível em: https://www.elcolombiano.com/redes-sociales/profesor-deuniversidad-nacional-es-senalado-de-acoso-sexual-por-una-estudiante-FD8612744. Acesso em: 4 mar. 2019. 70

Disponível em: http://www.legal.unal.edu.co/rlunal/home/doc.jsp?d_i=89782. Acesso em: 15 mar. 2019.

71

Disponível em: http://www.legal.unal.edu.co/rlunal/home/doc.jsp?d_i=72374. Acesso em: 15 mar. 2019. 141

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atendimento nos termos do Protocolo UNC. A estratégia de atendimento é dividida em cinco etapas: (i) conhecimento do caso e atendimento de emergência;72 (ii) orientação e atendimento físico e emocional; (iii) procedimento alternativo pedagógico (etapa facultativa);73 (iv) processo disciplinar; e (v) acompanhamento. As etapas (i) e (ii) envolvem a tomada de medidas de proteção às vítimas, quais sejam: (a) orientação psicossocial (primeiro atendimento psicológico); (b) orientação jurídica sobre direitos e medidas legais disponíveis; (c) prestação de informações sobre as medidas de proteção determinadas; (d) encaminhamento às instâncias disciplinares competentes quando não houver interesse na aplicação de medidas alternativas pedagógicas (aquelas relativas à terceira etapa da estratégia de atendimento, que é facultativa) ou estas não forem possíveis; (f) apoio para atendimento de emergência e acompanhamento para os casos críticos; (g) contato com os serviços de assistência social disponíveis; e (h) alerta às autoridades policiais e judiciais quando se tratar de delitos que não demandam denúncia voluntária para sua persecução penal. • Medidas de responsabilização dos docentes: a responsabilização do autor das violências deve ser realizada após a realização de um procedimento disciplinar. Caso o suposto agressor seja estudante de graduação ou pós-graduação da UNC, serão aplicadas as normas e os procedimentos previstos no Acordo nº 44/2009 e do Estatuto Estudantil. Por outro lado, se o suposto agressor for docente, aplicam-se as normas e os procedimentos do Acordo nº 171/2014 (Estatuto Disciplinar do Pessoal Acadêmico e Administrativo). • Monitoramento: o Protocolo UNC prevê, no seu artigo 27, a obrigação de registrar todos os casos de violências baseadas em gênero e violências sexuais no banco de dados da Direção de Bem-estar da respectiva sede,

72

Inicia-se com a denúncia apresentada pela própria denunciante ou por terceiro que tenha conhecimento da ocorrência de violência perante a Direção de Bem-estar Universitário da sede correspondente da UNC. Quando a violência tiver ocorrido dentro do espaço da universidade e representar uma emergência (i.e., uma situação latente ou iminente de risco à saúde física ou psicológica que requer atenção imediata), a vítima ou o terceiro que presenciar os fatos deverá acionar o Sistema de Atendimento a Emergências da respectiva sede. Uma vez superado o risco iminente, quem atendeu a emergência deverá comunicar o ocorrido à Direção de Bem-estar Universitário.

73

Consiste na formação de um espaço de intervenção pedagógica a cargo da área de acompanhamento da respectiva sede da universidade, para promover o diálogo e a reflexão sobre as ocorrências de violência e para a transformação de estereótipos de gênero, do qual participam a pessoa atendida e o suposto agressor, com a finalidade de obter compromissos de reparação de dano, a cessação da violência e a não repetição da conduta.

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incluindo, tanto com relação à vítima quanto ao suposto agressor, pelo menos as informações relativas a sexo, gênero, orientação sexual, vinculação à universidade, idade, nível socioeconômico, grupo étnico, função na universidade e se se trata de vítima de conflito armado. Esse banco de dados será utilizado para caracterizar e classificar os casos de violência ora referidos para uso no seu monitoramento da aplicação das medidas previstas no Protocolo UNC.

4.4 Espanha

4.4.1 Universitat de Barcelona (UB)

Contexto de criação da política Em 2011, quatorze alunos da faculdade de Economia da UB revelaram que foram assediados sexualmente pelo professor de sociologia Jesús de Miguel. De acordo com as alegações, o docente teria abusado sexualmente de alunos da UB durante décadas, sendo comum que convidasse alunos para tutorias em sua casa, com o intuito de praticar atos de assédio sexual. O caso teve grande repercussão na mídia, pois, apesar de a comissão investigativa ter encontrado fortes indícios da veracidade nas acusações, o docente não foi indiciado pelos crimes, uma vez que teriam sido praticados nos anos letivos de 2007 e 2008 e, portanto, estariam prescritos quando as denúncias foram feitas. Na época, o prazo prescricional para os delitos era de três anos, posteriormente alterado para cinco. Em razão disso, a UB tomou a decisão de manter o docente em seu cargo. Os estudantes que sofreram abusos, em conjunto com a assembleia de estudantes, elaboraram um manifesto que foi ratificado por mais de mil alunos, além de diversos outros docentes da UB, para que o professor, que se encontrava ausente da universidade por licença-paternidade, fosse imediata e definitivamente afastado e para que a UB demonstrasse apoio às vítimas, admitisse e lidasse com os casos de assédio sexual na universidade, comprometendo-se a tomar medidas preventivas e de monitoramento.

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Em resposta, a UB elaborou o Protocolo de la Universidad de Barcelona para la prevención, la detección y la actuación contra las situaciones de acoso sexual y por razón de sexo o de orientación sexual (Protocolo UB). O Protocolo UB foi baseado em protocolos de quatro cursos da universidade (Belas Artes, Biologia, Direito, Economia), que, em sua maioria, já estavam em vigor desde 2010.74

Documentos e normativas de referência Os documentos que versam sobre as políticas de enfrentamento ao assédio e violência de gênero na UB são: (i) Violencia de Género en las Universidades Españolas;75 (ii) Protocolo UB;76 (iii) Estatuto de la Universidad de Barcelona.77

Descrição da política Resumidamente, a política da UB é desenvolvida da seguinte forma: • Medidas de prevenção: a UB deve adotar as seguintes medidas preventivas ao assédio sexual: (i) elaboração e distribuição de guia com medidas contra a violência de gênero, que inclui instrumentos para prevenir e detectar situações de abuso; (ii) difusão de campanhas informativas destinadas ao corpo docente e discente, administrativo e investigativo, incluindo prestadores de serviço; (iii) inclusão de conteúdo específico destinado a prevenir situações de assédio nos planos de formação dos grupos descritos no item anterior; (iv) realização de estudos com periodicidade quadrimestral, indagando diferentes coletivos que integram a UB acerca da percepção e conhecimento de condutas de assédio sexual no âmbito da universidade, bem como sobre medidas preventivas que tenham sido implementadas, sendo as respostas dadas em anonimato. 74

Em 2022, o Protocolo UB foi atualizado para ampliar a assistência psicológica e social às pessoas vítimas de violência e compreender tais práticas no meio digital.

75

Disponível em: http://www.uca.es/recursos/doc/unidad_igualdad/496106686_472011125339. pdf; e VALLESPÍN, Ivanna. Mil firmas piden el cese del catedrático de la UB por los acosos sexuales, El País, fev. 2014. Disponível em: https://elpais.com/ccaa/2014/02/20/catalunya/ 1392918941_982866.html. Acesso em: 15 mar. 2019.

76 Disponível em: https://www.ub.edu/portal/documents/1748627/1769073/Protocol_ assetjament/2e245376-eb37-8e56-1466-ad126ec81ea8. Acesso em: 15 mar. 2019. 77

Disponível em: https://www.ub.edu/web/ub/galeries/documents/universitat/estatut-ub-es. pdf. Acesso em: 15 mar. 2019.

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• Medidas de acolhimento de mulheres e/ou pessoas que sofreram outras formas de discriminação: embora o acompanhamento de pessoas que sofreram assédio sexual seja um dos compromissos institucionais estabelecidos no Protocolo UB, não foram encontradas informações acerca da existência de medidas de acolhimento de mulheres e/ou pessoas que sofreram outras formas de discriminação nessa universidade. • Medidas de responsabilização dos docentes: o Protocolo UB prevê que o procedimento para lidar com casos de assédio deverá ocorrer no máximo em 60 (sessenta) dias letivos. O órgão que julgar o caso poderá: (i) implementar medidas cautelares; (ii) iniciar procedimento disciplinar com a adoção de medidas pertinentes para lidar com casos de assédio sexual, devendo as partes envolvidas serem notificadas da decisão tomada pelo órgão julgador; (iii) iniciar um procedimento disciplinar diverso, caso se verifique a ocorrência de eventos não relacionados a assédio sexual; ou (iii) arquivar a reclamação, por desistência da pessoa reclamante, perda de objeto ou insuficiência de provas. • Monitoramento: a UB realiza estudos com periodicidade quadrimestral, indagando diferentes coletivos acerca da percepção e conhecimento de condutas de assédio sexual na universidade e sobre medidas preventivas que tenham sido implementadas, sendo as respostas dadas em anonimato.

4.4.2 Universidad Complutense de Madrid (UCM)

Contexto de criação da política A UCM lançou em dezembro de 2016 o Protocolo para la prevención, detección y actuación ante las situaciones de acoso sexual, acoso por razón de sexo (sexista) y acoso por orientación sexual e identidad y expresión de género de la Universidad Complutense de Madrid (Protocolo UCM). A normativa prevê os procedimentos que devem ser seguidos para que a vítima de assédio ou agressão sexual possa denunciar a conduta. O protocolo foi criado após estudantes denunciarem os constantes episódios de assédio sexual por parte do corpo docente da UCM e a sensação de desproteção e não acolhimento vivenciada pelas alunas. O documento indica como premissas: (i) ações de divulgação, informação e comunicação; 145

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(ii) ações de treinamento e conscientização para a comunidade universitária; (iii) estudos e diagnósticos sobre situações de assédio e os riscos da sua ocorrência; e (iv) resolução rápida das denúncias e reclamações relativas a assédio sexual ou qualquer outra forma de discriminação em razão da orientação sexual ou, identidade de gênero.

Documentos e normativas de referência Os principais documentos e normativas de referência para as políticas desenvolvidas na UCM são: (i) Protocolo UCM;78 (ii) Ley Orgánica 3/2007:79 normativa que serviu de base para a construção do Protocolo UCM, uma vez que dispõe em seu artigo 62 sobre a igualdade entre mulheres e homens;80 (iii) Ley 2/2016:81 legislação da comunidade autônoma de Madrid que serviu de base para a elaboração do Protocolo UCM, tendo em vista que ela dispõe sobre a Identidad y Expresión de Género e Igualdad Social y no Discriminación de la Comunidad de Madrid. Ainda garante, em seu artigo 22.2, a proteção adequada para alunos, funcionários e professores trans de diferentes orientações sexuais e identidades de gênero contra todas as formas de exclusão social e violência, incluindo assédio no âmbito escolar. (iv) Ley 3/2016:82 legislação da comunidade autônoma de Madrid que também orientou a elaboração do Protocolo UCM. Versa sobre a Proteção Integral 78

Disponível em: https://www.ucm.es/data/cont/media/www/pag-1465/Protocolo_acoso_ UCM.pdf. Acesso em: 15 mar. 2019.

79 Disponível em: https://www.boe.es/eli/es/lo/2007/03/22/3/dof/spa/pdf. Acesso em: 15 mar. 2019. 80

A lei também define, em seu artigo 7º, os conceitos de assédio sexual e violência de gênero da seguinte forma: “(i) o assédio sexual é qualquer comportamento, verbal ou físico, de natureza sexual que tenha a finalidade ou o efeito de ameaçar a dignidade de uma pessoa, particularmente quando cria um ambiente intimidador, degradante ou ofensivo; (ii) o assédio baseado em gênero é qualquer comportamento realizado em conformidade com o sexo de uma pessoa, com o propósito ou efeito de minar sua dignidade e criar um ambiente intimidador, degradante ou ofensivo; e (iii) tanto o assédio sexual como o assédio baseado em gênero podem ser compreendidos como atos discriminatórios em razão do sexo”.

81

Disponível em: https://www.boe.es/buscar/doc.php?id=BOE-A-2016-6728. Acesso em: 15 mar. 2019.

82

Disponível em: https://boe.es/buscar/pdf/2016/BOE-A-2016-11096-consolidado.pdf. Acesso em: 7 set. 2019.

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contra a LGTBfobia e a Discriminação em Razão de Orientação e Identidade Sexual da Comunidade de Madrid. Em seu artigo 1º, a lei determina que toda a comunidade LGBTI terá direito a ser tratada em condições de igualdade em qualquer área da vida, em particular, nas esferas civil, trabalhista, social, de saúde, educacional, econômica e cultural.

Descrição da política Resumidamente, a política da UCM é desenvolvida da seguinte forma: • Medidas de prevenção: após a implementação do Protocolo UCM, a universidade realizou um estudo com os alunos, funcionários e corpo docente da universidade, a fim de constatar a incidência de assédio e violência sexual na UCM (Estudio sobre el Acoso Sexual, Acoso Sexista, Acoso por Orientación Sexual y Acoso por Identidad y Expresión de Género en la Universidad Complutense de Madrid).83 Esse estudo é um dos meios de prevenção, disposto no Protocolo UCM. Além disso, em 2018, a UCM ofereceu aulas, cursos e palestras sobre o assédio sexual no ambiente universitário. • Medidas de acolhimento de mulheres e/ou pessoas que sofreram outras formas de discriminação: mulheres que passaram por situações de assédio ou outra forma de discriminação em razão de gênero, orientação sexual ou identidade de gênero poderão se dirigir à Unidade de Igualdade de Gênero, órgão que, de acordo com o Protocolo UCM, deveria ser criado para monitorar as denúncias recebidas. Se no decorrer do processamento da denúncia houver circunstâncias que justifiquem o acionamento de medidas legais, elas podem ser adotadas como medidas cautelares e complementares ao processo da UCM. Também podem ser acionados médicos, psicológicos ou assistentes sociais, mediante recursos da UCM, da vítima ou externos. • Medidas de responsabilização dos docentes: após a submissão de uma denúncia ou reclamação à Unidade de Igualdade de Gênero será convocada uma comissão para receber relatório da denúncia. Em seguida, o documento será encaminhado ao reitor da UCM, que poderá estabelecer medidas preventivas, apresentar uma queixa-crime, reclamação ou denúncia, ou iniciar o processo disciplinar apropriado.

83

Disponível em: https://www.ucm.es/data/cont/media/www/pag-3331/Estudio%20Acoso%20 Complutense_Means%20Evaluación_2018.pdf. Acesso em: 7 set. 2019. 147

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• Monitoramento: a comissão da Unidade de Igualdade de Gênero deverá acompanhar a evolução na identificação e processamento de situações de assédio sexual ou discriminação em razão de gênero, orientação sexual, identidade ou expressão de gênero.

4.5 França

4.5.1 Sorbonne Université

Contexto de criação da política A Sorbonne instituiu em janeiro de 2013 uma política com diretrizes que buscam promover igualdade de gênero, inibir o assédio em razão de gênero ou qualquer outra forma de violência de gênero (Política Sorbonne).84 De acordo com o seu reitor,85 a universidade tem como objetivo primordial a luta pela igualdade de gênero e propõe-se a respeitar e fazer cumprir os direitos de todos os membros de sua comunidade, garantindo que as relações profissionais e pedagógicas sejam pautadas pelo respeito e dignidade. A Política Sorbonne foi elaborada pelo comitê Égalité-Lutte (Igualdade e Luta) e busca implementar um sistema de prevenção ao assédio sexual, de modo a combater a discriminação de membros do corpo docente, funcionários e estudantes. O objetivo da Política Sorbonne é conscientizar a comunidade universitária a reconhecer situações de assédio sexual ou discriminação; reagir contra uma situação de assédio sexual ou discriminação; escutar e orientar as vítimas; e conhecer os interlocutores sobre o assunto dentro da universidade.

84 SORBONNE Mission pour l’égalité. Disponível em: https://www.sorbonne-universite. fr/universite/nos-engagements/la-mission-egalite#:~:text=La%20mission%20 %C3%89galit%C3%A9%20promeut%20l,et%20violences%20li%C3%A9es%20au%20 genre. Acesso em: 27 ago. 2019. 85

Disponível em: https://www.sorbonne-universite.fr/en/equality. Acesso em: 27 ago. 2019.

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Documentos e normativas de referência A Política Sorbonne foi baseada no Vademecum86 guia publicado pelo Ministério de Ensino Superior, Pesquisa e Inovação da França, que tem como objetivo apoiar as instituições de ensino superior e pesquisa na implementação de ações contra o assédio moral e o assédio sexual.

Descrição da política Resumidamente, a política da Sorbonne é desenvolvida da seguinte forma: • Medidas de prevenção: a Política Sorbonne busca alertar sobre potenciais situações de assédio sexual ou violência de gênero, os ambientes em que as mulheres estão mais propícias a sofrer assédio ou violência, bem como os indivíduos da universidade que poderiam agir em prol dessas mulheres. Ao longo dos anos, a Sorbonne ofereceu aulas, cursos e palestras sobre o assédio sexual no ambiente universitário. • Medidas de acolhimento de mulheres e/ou pessoas que sofreram outras formas de discriminação: a Sorbonne disponibiliza um canal em que as mulheres podem contatar, via e-mail, em ordem de prioridade, as autoridades da universidade que podem dar encaminhamento à eventual denúncia de assédio sexual ou violência de gênero. • Medidas de responsabilização dos docentes: a Política Sorbonne exige que a universidade denuncie crime ou contravenção de assédio sexual ou qualquer outra violência de gênero de que tenha ciência para o promotor público da República, nos termos do artigo 40 do Código de Processo Penal da França.87 • Monitoramento: não foram encontradas no âmbito dessa pesquisa informações sobre o monitoramento das políticas acima relatadas.

86

Disponível em: http://www.enseignementsup-recherche.gouv.fr/cid113981/vade-mecum-al-usage-desetablissements-sur-le-harcelement-sexuel-dans-l-enseignement-superieuret-la-recherche.html. Acesso em: 15 mar. 2019.

87

Nos termos do artigo 40 do Código de Processo Penal francês, todo e qualquer funcionário que, no exercício de suas funções, venha a ter conhecimento de crime ou delito deve notificar imediatamente um promotor público e prestar todos os esclarecimentos solicitados ao magistrado competente. Disponível em: https://www.legifrance.gouv.fr/codes/texte_lc/ LEGITEXT000006070719?etatTexte=VIGUEUR. Acesso em: 27 ago. 2019. 149

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4.5.2 Institut d’Études Politiques de Paris (Sciences Po)

Contexto de criação da política Desde 2015, o Sciences Po desenvolve uma série de medidas para promover a conscientização sobre o sexismo e o assédio sexual, bem como fornecer treinamentos e suporte a qualquer membro da comunidade que tenha passado por tais situações, com destaque para a Guidelines on Dealing with Sexual Harassment.88 Não foram encontradas no âmbito desta pesquisa informações sobre um caso específico que tenha motivado a criação da política, sendo que a principal entidade responsável pela promoção de medidas de prevenção e combate ao assédio sexual é a unidade de monitoramento de assédio sexual da Sciences Po, criada no mesmo ano.

Documentos e normativas de referência Os documentos relacionados às políticas de enfrentamento ao assédio sexual na Sciences Po são: (i) Guide d’information sur le harcélement sexuel; (ii) Décret 2016-24 du 18 janvier 2016 relatif à l’Institut d’études politiques de Paris;89 (iii) Règlement de la vie étudiante.90

Descrição da política Resumidamente, a política da Sciences Po é desenvolvida da seguinte forma: • Medidas de prevenção: a Sciences Po elaborou alguns materiais que compilam informações sobre desigualdade de gênero, assédio e violência sexual. São exemplos: (i) vídeo educativo sobre casos de assédio sexual denominado Voulez-vous du thé? 91 e (ii) Project Crocodiles, projeto de 88

Disponível em: http://www.sciencespo.fr/com/SciencesPo_Guidelines_on_dealing_with_ sexual_harassment.pdf. Acesso em: 15 mar. 2019.

89

Disponível em: https://www.legifrance.gouv.fr/. Acesso em: 15 mar. 2019.

90 Disponível em: http://www.sciencespo.fr/students/sites/sciencespo.fr.students/files/ reglement-vie-etudiante-sciencespo-en.pdf. Acesso em: 15 mar. 2019. 91

Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=oQbei5JGiT8. Acesso em: 15 mar. 2019.

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exibição de histórias em quadrinhos retratando casos reais de sexismo e assédio e violência sexual.92 • Medidas de acolhimento de mulheres e/ou pessoas que sofreram outras formas de discriminação: os membros da unidade de monitoramento de assédio sexual da Sciences Po falam francês e inglês e oferecem assistência e orientação a pessoas que sofreram assédio sexual, incluindo o encaminhamento a médicos/as, psicólogos/as, advogados/as e ginecologistas. Ao entrar em contato com a unidade, é proposta uma reunião confidencial com dois membros que serão responsáveis pela elaboração de um relatório para alertar as autoridades disciplinares. Tal relatório estará sempre sujeito à aprovação da pessoa que teve seus direitos violados. • Medidas de responsabilização dos docentes: a responsabilização de docentes na Sciences Po é realizada por meio de um procedimento disciplinar iniciado pelo diretor da faculdade. Para a condução do procedimento é formada uma comissão de inquérito responsável por entrevistar testemunhas ou especialistas em questões de assédio sexual e, conforme o caso, aplicar uma sanção disciplinar. Os procedimentos disciplinares podem ser combinados com a adoção de medidas cautelares, como a suspensão do acusado, a fim de garantir o seu distanciamento da denunciante. • Monitoramento: a Sciences Po possui uma unidade de monitoramento de assédio sexual para monitorar e lidar com casos na universidade (Cellule de veille)93.

92

Nas histórias, os homens são substituídos por crocodilos como uma forma de questionar os papéis de gênero na sociedade atual e sua implicação em casos de assédio sexual. Mais informações disponíveis em: http://crocodilesproject.tumblr.com/about. Acesso em: 15 mar. 2019.

93

Pelo e-mail [email protected]. Disponível em https://www.sciencespo.fr/students/ fr/vivre/prevention-harcelement-sexuel.html. Acesso em: 27 ago. 2019. 151

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4.6 Inglaterra

4.6.1 University of Cambridge

Contexto de criação da política A necessidade de criação de políticas de enfrentamento ao assédio em universidades britânicas ganhou relevância com um suposto caso de estupro no King’s College London, em 1992. O caso envolveu o estudante Austen Donellan, suspenso da universidade sob a acusação de estupro. Na justiça comum, o aluno foi declarado inocente, obtendo indenização por perdas e danos da universidade. Em 1994, em resposta ao caso, uma força-tarefa composta por membros do Committee of Vice Chancellors and Principals elaborou o Zellick Report,94 como tentativa de orientar a atuação de universidades em casos de assédio sexual, a fim de proteger sua reputação e evitar perdas financeiras. Sobretudo por indicar que universidades não devem se envolver em casos complexos de assédio sexual, uma vez que envolvem questões policiais e legais, o Zellick Report vem sofrendo muitas críticas de grupos e organizações estudantis e foi apontado como uma das razões pela não atuação de universidades britânicas diante de casos de assédio ao longo dos anos. De acordo com Alice Benton,95 diretora de política educacional e estudantil da Cambridge, a necessidade de criação de uma política escrita para prevenir e tratar de casos de assédio sexual surgiu, principalmente, por dois motivos: (i) crescimento no número de relatos de casos de assédio sexual universidades britânicas, e (ii) alto número de universidades estadunidenses que implementaram políticas de enfrentamento ao assédio em resposta a movimentos e organizações estudantis, fatos que fizeram com que a comunidade universitária refletisse e debatesse sobre a responsabilidade e o papel das universidades britânicas não somente na educação, mas também na proteção de suas estudantes.

94

Zellick Graham and Committee of Vice-Chancellors and Principals of the Universities of the United Kingdom. 1994. Final Report of the Task Force on Student Disciplinary Procedures. [S. L.: s. n. , s. d.]

95 CAMBRIDGE. Strengthening the University of Cambridge’s Policy for Cases of Sexual Harassment and Assault. Disponível em: https://issuu.com/thewilberforcesociety/docs/v1_sexualassault-harassment-policy-1. Acesso em: 15 mar. 2019. 152

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De acordo com o boletim oficial divulgado pelo Ministério da Justiça e o Instituto Nacional de Estatísticas da Inglaterra em janeiro de 2013, aproximadamente 85 mil mulheres e 12 mil homens são estuprados a cada ano, o que equivale a onze estupros por hora. Foi divulgado ainda que uma a cada cinco mulheres entre 16 e 59 anos já experimentou alguma forma de violência sexual a partir dos 16 anos, no entanto foi constatado que apenas 15% daqueles que sofreram violência sexual optaram por denunciar seu agressor às autoridades.

Documentos e normativas de referência As políticas de enfrentamento do assédio sexual de Cambridge são pautadas nos seguintes documentos: (i) Strengthening the University of Cambridge’s Policy for Cases of Sexual Harassment and Assault;96 (ii) University of Cambridge’s General Regulations for Discipline;97 (iii) Code of Conduct for Students in Respect of Harassment and Sexual Misconduct;98 (iv) Procedure for Handling Cases of Student Harassment and Sexual Misconduct;99 (v) Explanatory Notes on Handling Cases of Student Harassment and Sexual Misconduct;100 (vi) Policy on the Use of Personal Information under the Procedure for Handling Cases of Student Harassment and Sexual Misconduct;101 (vii) Dignity at Work Policy;102 96 Disponível em: https://issuu.com/thewilberforcesociety/docs/v1_sexual-assaultharassment-policy-1. Acesso em: 15 mar. 2019. 97 Disponível em: https://www.admin.cam.ac.uk/univ/so/2017/chapter02-section17.html. Acesso em 15 mar. 2019. 98

Disponível em: https://www.studentcomplaints.admin.cam.ac.uk/files/code_of_conduct_ for_students_in_respect_of_harassment_and_sexual_misconduct.pdf. Acesso em: 15 mar. 2019.

99 Disponível em: https://www.studentcomplaints.admin.cam.ac.uk/files/procedure_for_ handling_cases_of_student_harassment_and_sexual_misconduct.pdf. Acesso em: 15 fev. 2019. 100 Disponível em: https://www.breakingthesilence.cam.ac.uk/files/explanatory_notes_on_ handling_cases_of_student_harassment_and_sexual_misconduct.pdf. Acesso em: 15 mar. 2019. 101 Disponível em: https://www.breakingthesilence.cam.ac.uk/files/policy_on_the_use_ of_personal_information_under_the_procedure_for_handling_cases_of_student_ harassment_and_sexual_misconduct.pdf. Acesso em: 15 mar. 2019. 102 Disponível em: https://www.hr.admin.cam.ac.uk/files/dignity_at_work_policy_11.12.18. pdf. Acesso em: 15 mar. 2019. 153

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(viii) Student Complaint Procedure;103 (ix) Cambridge University Students’ Union Women’s Campaign;104 (x) CUSU Women’s Campaign’s Constitution;105 (xi) Breaking the Silence – Training for Staff;106 (xii) Sexual Assault Disclosure: Information for Tutors and Staff;107 (xiii) Active Bystander Poster;108 (xiv) Capability Policy.109

Descrição da política Resumidamente, a política de Cambridge é desenvolvida da seguinte forma: • Medidas de prevenção: Cambridge realiza inúmeros treinamentos sobre como prevenir o assédio e condutas sexuais inapropriadas e sobre como orientar funcionários e estudantes que foram vítimas de assédio. Alguns exemplos são: (i) workshops para estudantes do primeiro ano sobre a natureza do consentimento; (ii) curso online sobre consentimento sexual; (iii) Workshops elaborados pela University Sports Centre e Cambridge Hub em parceria com a Good Lad Initiative (GLI), visando estabelecer um diálogo sobre questões relacionadas a gênero; e (iv) o programa Intervention Initiative, utilizado por universidades e faculdades para a prevenção de abusos sexuais.110 • Medidas de acolhimento de mulheres e/ou pessoas que sofreram outras formas de discriminação: Cambridge, por meio de seu website, divulga uma lista de 103 Disponível em: https://www.breakingthesilence.cam.ac.uk/files/student_complaint_ procedure.pdf. Acesso em: 15 mar. 2019. 104 Disponível em: https://www.womens.cusu.cam.ac.uk/. Acesso em: 15 mar. 2019. 105 Disponível em: https://www.womens.cusu.cam.ac.uk/wp-content/uploads/womcam constitution2-6.pdf. Acesso em: 15 mar. 2019. 106 Disponível em: https://www.breakingthesilence.cam.ac.uk/training-and-events/trainingstaff. Acesso em: 15 mar. 2019. 107 Disponível em: https://www.seniortutors.admin.cam.ac.uk/files/sexual_assault_disclosure_ staff_ january_2017.pdf. Acesso em: 15 mar. 2019. 108 Disponível em: https://www.breakingthesilence.cam.ac.uk/files/bts-poster.pdf. Acesso em: 15 mar. 2019. 109 Disponível em: https://www.hr.admin.cam.ac.uk/files/capability_policy.pdf. Acesso em: 15 mar. 2019. 110 Informações disponíveis em: https://www.breakingthesilence.cam.ac.uk/prevention-support/ prevention-and-support-staff. Acesso em: 11 set. 2019. 154

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entidades e organizações atuantes na universidade que prestam suporte a pessoas que sofreram assédio sexual. Dentre os serviços prestados, destacam-se linhas telefônicas diretas para relato da ocorrência e auxílio na marcação de exames de corpo e delito. • Medidas de responsabilização dos docentes: funcionários de Cambridge estão sujeitos à responsabilização no âmbito de procedimentos administrativos disciplinares. Em caso de alegações de condutas inapropriadas de natureza grave, o chefe do Departamento de Condutas, Reclamações e Recursos de Estudantes pode determinar a suspensão temporária do funcionário. • Monitoramento: Cambridge disponibilizou uma plataforma para realização de denúncias anônimas sobre assédio sexual, crimes de ódio e outras condutas puníveis de conotação sexual.111 Como forma de monitoramento dos casos, a universidade sistematiza os dados acerca das denúncias recebidas, com o objetivo de compreender as barreiras para acesso aos meios de denúncias formais, bem como melhor compreender o impacto das políticas implantadas.

4.6.2 University of Oxford

Contexto de criação da política A Oxford aprovou em 1º de dezembro de 2014, junto ao Conselho Administrativo, a política de combate ao assédio sexual e outras formas de violência, que foi posteriormente ratificada em 21 de abril de 2017, após algumas alterações (Política Oxford). A Política Oxford foi criada de modo a refletir os objetivos e diretrizes da universidade para a proteção dos estudantes, visando: (i) promover um ambiente no qual as pessoas sejam tratadas de forma justa e respeitosa; (ii) marcar posição sobre o assédio ser inaceitável e conscientizar todos os membros de Oxford sobre seu papel na criação de um ambiente livre de assédio; 111

As denúncias podem ser realizadas no seguinte endereço eletrônico: https://www.student complaints.admin.cam.ac.uk/anonymous-reporting-students-and-staff. Acesso em: 11 set. 2019. 155

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(iii) disponibilizar uma rede de apoio para funcionários e funcionárias, alunos e alunas que tenham sido assediados; (iv) disponibilizar à comunidade universitária mecanismo pelo qual as reclamações possam ser tratadas de maneira séria e eficiente; e (v) promover igualdade de valores e diversidade, de modo a manter um ambiente social, de trabalho e aprendizado em que os direitos dos estudantes e funcionários sejam respeitados. Além disso, Oxford participa do programa “HeforShe” das Nações Unidas. Em 1º de outubro de 2018, a universidade lançou nova campanha visando demonstrar seu comprometimento no combate à violência sexual, bem como a política de tolerância zero em relação ao tema.

Documentos e normativas de referência A Política Oxford é baseada no Equality Act 2010, Section 26, do Reino Unido.112 A norma estabelece diretrizes e parâmetros acerca do combate ao assédio sexual ou qualquer outra forma de violência, bem como define o que é e quais situações poderiam ser consideradas assédio sexual.

Descrição da política Resumidamente, a política de Oxford é desenvolvida da seguinte forma: • Medidas de prevenção: Oxford faz campanhas contra o assédio sexual e outras formas de violência, visando sempre incentivar estudantes e funcionários a denunciar qualquer tipo de violência, destacando que preza

112 Disponível em: https://www.legislation.gov.uk/ukpga/2010/15/contents. Acesso em: 15 mar. 2019. 156

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por um ambiente seguro no qual o corpo discente113 e o corpo docente114 sintam-se confortáveis para fazer denúncias. • Medidas de acolhimento de mulheres e/ou pessoas que sofreram outras formas de discriminação: há um serviço de aconselhamento e apoio psicológico a estudantes que sofreram violência sexual. O site da Universidade oferece uma lista não exaustiva a respeito das medidas que podem ser tomadas pelos profissionais aconselhadores: (i) escutar os acontecimentos; (ii) explorar as opções disponíveis para que seja possível uma tomada de decisão; (iii) explicar como podem ser feitas as denúncias na universidade e na polícia; (iv) explicar quais as políticas de Oxford para o enfrentamento do tema; (v) registrar os relatos, de forma a evitar que a história seja contada inúmeras vezes; (vi) explorar as possibilidades de atendimento e acompanhamento psicológico; (vii) compreender os impactos na vida acadêmica e auxiliar na redução dos danos e retomada dos estudos; (viii) fazer o contato com o departamento de estudos e a universidade para auxiliar na condução das providências necessárias; (ix) auxiliar no acesso aos especialistas necessários; (x) auxiliar no desenvolvimento de planos para que a denunciante se sinta segura no ambiente de Oxford e em outros locais que frequenta; e (xi) auxiliar no desenvolvimento dos passos que a pessoa desejar seguir, tendo sempre em mente suas necessidades.

113 Estudantes de Oxford desenvolveram várias iniciativas em torno da prevenção da violência sexual e do assédio sexual, como: (i) Oxford SU’s Happens Here, uma campanha para aumentar a conscientização sobre violência sexual; (ii) discussões sobre o tema “consentimento sexual”, nas quais o corpo discente explora o que é consentimento, como dar e como aceitá-lo ou sua retratação. As conversas são casuais, com intenção de pensar em práticas saudáveis de consentimento; (iii) Good Lad Initiative, iniciativa que visa capacitar homens para lidar com situações complexas de gênero e se tornarem agentes de mudanças positivas dentro de seus círculos sociais. São organizadas oficinas para grupos de homens dentro da universidade, como times esportivos, associações de bebidas, clubes, dentre outros; (iv) Aplicativo First Response, aplicativo que oferece suporte a vítimas de estupro. É o primeiro aplicativo do gênero, sendo codificado por mulheres em Oxford, por meio de uma colaboração entre alunas envolvidas no Happens Here, a universidade, profissionais do Oxfordshire Rape Crisis, a organização Code4Rights e a estudante Joy Buolamwini, dedicada à promoção dos direitos humanos por meio da tecnologia e educação; e (v) podcast que reúne especialistas locais que falam sobre violência sexual e de gênero, políticas de combate e medidas de acolhimento. 114 Os funcionários de Oxford participaram de workshops e treinamento oferecidos pelo Centro de Abuso Sexual e Violência Sexual de Oxford e pelo Serviço de Aconselhamento, que têm como premissa instituir os seguintes valores: (i) acreditar no que as vítimas dizem; (ii) deixar claro que o estupro nunca é culpa da vítima; e (iii) oferecer uma resposta não crítica e não diretiva, mas que acolha a vítima de violência. 157

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Além dos aconselhadores vinculados à Oxford, foi criada a figura de uma aconselhadora independente para casos de violência sexual (Independent Sexual Violence Advisor ou ISVA), capaz de auxiliar estudantes com as seguintes medidas: (i) oferecer informação sobre possível condução de processo penal, se a pessoa estiver considerando realizar a denúncia; (ii) explicar as políticas e os procedimentos da universidade no tema; (iii) oferecer suporte ao longo do processo de denúncia; (iv) fornecer as informações sobre os direitos; (v) entrar em contato com a polícia, universidade, sua unidade e outras instituições de relevância para o enfrentamento da violência; (vi) acompanhar as diligências em decorrência de denúncia; (vii) auxiliar na construção de um plano de segurança em Oxford e lugares próximos. • Medidas de responsabilização dos docentes: A responsabilização de docentes depende da realização de uma investigação, a qual contará com a oitiva de testemunhas e o levantamento de provas. Ao final do procedimento investigativo, ambas as partes serão informadas a respeito do resultado e da medida que o Diretor de Recursos Humanos ou do departamento decidir tomar.115 A depender da natureza da denúncia e do resultado da investigação, o diretor de Recursos Humanos da Universidade, em conjunto com o diretor do departamento, poderá (i) sugerir caminhos e estratégias para restaurar a relação profissional entre as partes e monitorar a relação durante determinado período de tempo, (ii) realocar as partes com o objetivo de encerrar a convivência, ou (iii) encaminhar o caso ao Director of Student Welfare para que decida o procedimento adequado. • Monitoramento: não foram encontradas no âmbito desta pesquisa informações sobre a forma em que é feito o monitoramento da efetividade da política desenvolvida em Oxford. Há informações, no entanto, sobre a confidencialidade dos procedimentos administrativos realizados pela universidade.

115 Disponível em: https://edu.admin.ox.ac.uk/harassment-staff#collapse1137591. Acesso em: 28 ago. 2019. 158

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4.7 Estados Unidos Tendo em vista que o governo dos Estados Unidos aprovou, nacionalmente, legislação que institucionaliza a política pública de combate à discriminação sexual em instituições de ensino, antes de apresentar as políticas específicas de cada universidade, serão expostos os principais pontos tratados pelo ordenamento jurídico do país em relação ao tema.

4.7.1 Contexto da criação da política pública federal de enfrentamento ao assédio nas instituições de ensino nos Estados Unidos Em junho de 1972 foi aprovado nos Estados Unidos o Title IX of the Education Amendments of 1972, lei federal que proíbe a discriminação sexual em instituições de ensino. Em função da lei, as instituições são obrigadas a publicar uma declaração de não discriminação, a manter um departamento dedicado a monitorar seu cumprimento e a adotar procedimentos de denúncia e apoio. Esse departamento, de forma geral, é chamado de Title IX Office ou apenas Title IX. Diante dos propósitos da norma, medidas contra assédio sexual são um meio de proteção contra discriminação de gênero. Para a lei, o assédio sexual, incluindo a violência sexual, é a forma de discriminação que nega e limita a capacidade de um indivíduo participar ou se beneficiar de programas ou atividades educacionais. Em 1999, a Suprema Corte dos Estados Unidos firmou entendimento no sentido de que uma instituição de ensino poderia ser responsabilizada pelo assédio sexual ocorrido em seu campus, inclusive entre estudantes. Além disso, o Conselho de Educação do Condado de Davis v. Monroe (Davis v. Monroe County Board of Education) entendeu que uma escola poderia ser responsabilizada se, ciente de um caso de assédio sexual, não tomasse providências. A partir desses marcos jurídicos, diante do risco de responsabilização, as instituições de ensino passaram a implementar políticas internas cada vez mais estruturadas para o enfrentamento ao assédio e a outras discriminações relacionadas ao gênero.

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Em 2001, o Departamento de Direitos Civis (Office for Civil Rights) revisou e ampliou um guia116 que enfatizava a obrigação das instituições de tomar medidas para prevenir e banir o assédio sexual como condição para receber fundos federais. Em abril de 2011, o mesmo departamento publicou orientações adicionais em uma carta denominada Dear Colleague,117 que abordava mais especificamente questões relacionadas a casos de violência sexual. Em abril de 2014, quando a força-tarefa da Casa Branca emitiu o relatório intitulado Not Alone,118 o Departamento de Direitos Civis editou documento de perguntas e respostas119 com orientações para a comunidade universitária sobre como conduzir uma investigação e examinar testemunhas. Embora esse tipo de orientação não seja vinculativa, o Departamento de Direitos Civis a toma como referência para a investigação de casos relacionados ao Title IX. Geralmente, as investigações sobre casos de assédio sexual são tratadas de forma sigilosa pelas instituições envolvidas.

4.7.2 Columbia University

Documentos e normativas de referência As políticas de enfrentamento à violência de gênero na Columbia University são pautadas nos seguintes documentos e normativas: (i) Gender-Based Misconduct Policy and Procedures for Students;120 (ii) NYS Students’ Bill of Rights;121

116 Disponível em: https://www2.ed.gov/about/offices/list/ocr/docs/shguide.html. Acesso em: 15 mar. 2019. 117 Disponível em: https://www2.ed.gov/about/offices/list/ocr/letters/colleague-201104.pdf. Acesso em: 15 mar. 2019. 118 Ibidem. 119 Disponível em: https://www2.ed.gov/about/offices/list/ocr/docs/qa-201404-title-ix.pdf. Acesso em: 15 mar. 2019 120 Disponível em: http://www.columbia.edu/cu/studentconduct/documents/GBMPolicyand ProceduresforStudents.pdf. Acesso em: 15 mar. 2019 121 Disponível em: https://www.schools.nyc.gov/get-involved/students/student-bill-of-rights. Acesso em: 15 mar. 2019. 160

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(iii) Employee Police and Procedures on Discrimination, Harassment, Sexual Assault, Domestic Violence, Dating Violence and Stalking;122 (iv) Report an Incident;123 (v) New York Education Law, Article 129-A – O artigo 129-A exige que todas as faculdades e universidades, públicas e privadas, do estado de Nova York mantenham políticas relacionadas à segurança, bem como violência sexual, violência doméstica e informação de prevenção à perseguição;124 (vi) New York Education Law, Article 129-B125 – O artigo 129-B do Estado de Nova York, também conhecido como Enough is Enough, visa combater a violência sexual em faculdades e universidades de todo o estado e exige que todas as faculdades adotem procedimentos e diretrizes abrangentes, incluindo uma definição uniforme de consentimento, bem como garantam a segurança de todos os estudantes que frequentam faculdades no estado; (vii) Office of Equal Opportunity and Affirmative Action Report (EOAA);126 (viii) 2016-17 Annual Report127 – Gender-Based Misconduct Policy and Procedures for Students.128

Descrição da política De acordo com informações disponibilizadas em documentos publicados pela Columbia,129 a universidade desenvolve uma série de estratégias com o objetivo de promover o enfrentamento da violência de gênero no ambiente acadêmico, incluindo: (i) programas educacionais, (ii) disponibilização de serviços de apoio 122 Disponível em: https://eoaa.columbia.edu/files/eoaa/content/EOAA_Policy_10_03_2018. pdf. Acesso em: 15 mar. 2019. 123 Disponível em: https://eoaa.columbia.edu/sites/default/files/content/docs/EOAA_ Policy_10_03_2018_reupload.pdf. Acesso em: 15 mar. 2019. 124 Disponível em: https://www.nysenate.gov/legislation/laws/EDN/A129-A. Acesso em: 15 mar. 2019. 125 Disponível em: https://www.nysenate.gov/legislation/laws/EDN/A129-B. Acesso em: 15 mar. 2019. 126 Disponível em: https://eoaa.columbia.edu/sites/default/files/content/docs/EOAA_Annual_ Report_FINAL.pdf. Acesso em: 15 mar. 2019. 127 Disponível em: http://www.columbia.edu/cu/studentconduct/documents/Gende r-BasedMisconductPreventionandResponse2016-2017.pdf. Acesso em: 15 mar. 2019. 128 O relatório dos anos anteriores está disponível em: https://sexualrespect.columbia.edu/ archive. Acesso em: 15 mar. 2019. 129 Disponível em: https://www.nysenate.gov/legislation/laws/EDN/A129-A. Acesso em: 15 mar. 2019. 161

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e acolhimento para pessoas que passaram por situações de violência, (iii) acesso a procedimentos de enfrentamento a tais situações, incluindo os de cunho investigativo, e (iv) medidas de proteção com o objetivo de evitar reincidência. Para tanto, Columbia desenvolveu duas políticas principais: Employee Policy and Procedures on Discrimination, Harassment, Sexual Assault, Domestic Violence, Dating Violence, and Stalking,130 direcionada para discentes e funcionários da universidade, e Gender-Based Misconduct Policy and Procedures for Students, voltada para o corpo docente. Resumidamente, a política da Columbia é desenvolvida da seguinte forma: • Medidas de prevenção: Columbia oferece programas de treinamento para orientar professores, funcionários e alunos quanto a condutas que possam consistir em violação da política da universidade, notificá-los dos deveres e responsabilidades com a comunidade e para informá-los sobre os procedimentos disponíveis de acolhimento de vítimas conforme já detalhado.131 Além disso, o Columbia Health, serviço voltado para a garantia do bem-estar do corpo docente, discente e funcionários da universidade, oferece treinamentos sobre (i) consentimento e relações sexuais saudáveis; (ii) intervenção em situações de violência; (iii) relacionamentos abusivos; (iv) prevenção de violência sexual, violência por parceiro íntimo, e outras formas de violência, informações sobre serviços disponíveis na universidade para atendimento de vítimas de violência.132 Como forma de incentivar o engajamento da comunidade acadêmica de Columbia, a universidade desenvolveu também a Sexual Respect and Community Initiative, campanha que tem como objetivos: (i) promover uma cultura no campus universitário que não tolere a ocorrência de assédio, estupro e outras formas de violência sexual e (ii) garantir que todos saibam onde e quando devem buscar ajuda.133 • Medidas de acolhimento de mulheres e/ou pessoas que sofreram outras formas de discriminação: como forma de acolher mulheres em situação de violência, Columbia oferece as seguintes medidas: (i) Sexual Violence 130 Disponível em: https://eoaa.columbia.edu/sites/default/files/content/docs/EOAA_ Policy_10_03_2018.pdf. Acesso em: 29 out. 2019. 131 Disponível em: https://eoaa.columbia.edu/sites/default/files/content/docs/consensual_ relationship_policies_staff_to_staff.nov_2019.pdf. Acesso em: 29 out. 2019. 132 Disponível em: https://health.columbia.edu/content/workshops-and-trainings. Acesso em: 16 set. 2019. 133 Disponível em: https://sexualrespect.columbia.edu/sexual-respect-and-communitycitizenship-initiative#goals. Acesso em: 16 set. 2019. 162

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Response (SVR),134 serviço que oferece atendimento para vítimas de estupro, violência doméstica e intrafamiliar e qualquer outra forma de violência de gênero; (ii) Trauma Support, equipe de psicólogos e assistentes sociais voltados ao atendimento de pessoas que vivenciaram situações traumáticas de todos os tipos, incluindo episódios de violência física ou sexual, assédio e discriminação,135 (iii) Counseling Services, oferecem orientações, acolhimento em casos de traumas, encaminhamento para serviços de saúde ou para grupos de estudantes que realizam o acompanhamento de pessoas em situação de violência, (iv) Public Safety,136 oferece serviços com atendimento 24 horas para casos emergenciais, disponibilização de escolta policial para trajetos nos entornos da universidade137 e tomada de providências para garantia de determinações legais decorrentes de uma situação de violência, (v) Gender-Based Misconduct Office, realiza o atendimento de estudantes que passaram por situações de violência de gênero para garantir a sua segurança e bem-estar, (vi) Title IX Office, responsável por conduzir os processos, (vii) Pastoral and Spiritual Counseling, (viii) Ombuds Office e (ix) EOAA: voltado para o atendimento de estudantes em casos que envolvam um funcionário da universidade. • Medidas de responsabilização dos docentes: quando a pessoa denunciada faz parte do corpo docente ou é funcionária de Columbia, é possível que a denunciante opte por um dos seguintes meios para solução da situação: (i) meios de resolução informal de conflitos: conversas presenciais, telefônicas, trocas de e-mails ou outras formas de comunicação; (ii) mediação ou outras formas alternativas de solução de conflitos oferecidas pelo EOAA; e (iii) instauração de procedimento disciplinar. As sanções aplicáveis podem envolver: (i) repreensão ou advertência verbal, (ii) mudança das responsabilidades do denunciado, como a impossibilidade de orientar determinada aluna ou tê-la como sua assistente de pesquisa, (iii) revogação de prêmios e condecorações, (iv) restrição 134 Disponível em: https://health.columbia.edu/content/sexual-violence-response. Acesso em: 16 set. 2019. 135 Disponível em: https://health.columbia.edu/services/trauma-support. Acesso em: 16 set. 2019. 136 Disponível em: https://publicsafety.columbia.edu/; https://www.ps.columbia.edu/education/ student-resources/campus-resources/public-safety; https://publicsafety.columbia.edu/; https://www.ps.columbia.edu/education/student-resources/campus-resources/publicsafety; e https://www.tc.columbia.edu/security/about-us/. Acesso em: 16 set. 2019. 137 Disponível em: https://publicsafety.columbia.edu/content/safety-escorts. Acesso em: 16 set. 2019. 163

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de acesso à universidade ou determinadas atividades acadêmicas, (v) mudança de cargo ou local de trabalho, (vi) alteração de local de residência, se esta foi concedida pela universidade, (vii) proibição de contato, (viii) destituição de posições de liderança ou chefia, (ix) redução salarial, (x) suspensão, e (xi) demissão e/ou proibição de ocupar qualquer cargo na universidade futuramente. • Monitoramento: Columbia publica um relatório anual com informações sobre os recursos disponíveis na universidade para atendimento de alunas e responsabilização de possíveis agressores, a forma de condução das investigações e, por fim, sobre as medidas tomadas para o enfrentamento da violência de gênero na universidade. Tal documento tem como objetivo garantir o acesso de toda a comunidade acadêmica a informações sobre o trabalho desenvolvido pelo EOAA, incluindo o número de denúncias recebidas sobre discriminação, assédio e violência de gênero, bem como o tipo de conduta investigada.

4.7.3 Harvard University

Documentos e normativas de referência As políticas de enfrentamento a assédio sexual ou outras formas de discriminação baseadas no gênero em Harvard são pautadas nos seguintes documentos: (i) Sexual and Gender-Based Harassment Policy;138 (ii) Procedures for Handling Complaints Involving Students Pursuant to the Sexual and Gender-Based Harassment Policy;139 (iii) HLS Sexual Harassment Resources and Procedures for Students; (iv) Sexual and Gender-Based Harassment Policy and Procedures for The Faculty of Arts and Sciences;140

138 Disponível em: https://www.hupd.harvard.edu/sexual-and-gender-based-harassmentpolicy. Acesso em: 15 mar. 2019. 139 Disponível em: http://titleix.harvard.edu/files/title-ix/files/harvard_student_sexual_ harassment_procedures.pdf. Acesso em: 15 mar. 2019. 140 Disponível em: https://www.fas.harvard.edu/files/fas/files/fas_sexual_and_genderbased_harassment_policy_and_procedures-1-13-16.pdf. Acesso em: 15 mar. 2019. 164

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(v) Procedures of Handling Sexual and Gender-Based Harassment Complaints Against Faculty;141 (vi) Procedures Concerning Alleged Sexual or Gender-Based Harassment by HKS Faculty;142 (vii) The Investigative Process;143 (viii) FY18 Annual Report.144

Descrição da política Resumidamente, a política de Harvard é desenvolvida da seguinte forma: • Medidas de prevenção: Harvard oferece programas de treinamento para orientar professores, funcionários e alunos quanto a condutas que possam consistir em violação da política da universidade, notificá-los de deveres e responsabilidades com a comunidade e para informá-los sobre os procedimentos disponíveis de acolhimento de vítimas. • Medidas de acolhimento de mulheres e/ou pessoas que sofreram outras formas de discriminação: algumas medidas preventivas listadas nos documentos institucionais são (i) aconselhamento e assistência; (ii) mudanças nos horários das aulas, além da possibilidade de retirar-se de um curso sem penalidade; (iii) mudança de horários de trabalho ou atribuições; (iv) mudanças na moradia do campus; (v) ordens de distância mínima (projetadas para restringir ou proibir contato ou comunicações entre indivíduos); (vi) tutorias ou outros suportes acadêmicos, incluindo tempo extra para exames e trabalhos; (vii) serviços médicos; (viii) prestação de serviços de acompanhantes. • Medidas de responsabilização dos docentes: as medidas gerais previstas, tanto para alunos quanto docentes que violem a política, são: (i) advertências, que são inseridas no registro permanente individual do suposto 141 Disponível em: https://www.hks.harvard.edu/sites/default/files/about_us/policies/title_ix/ HKS_Sexual_Harassment-Procedures_for_Problem_Resolution_July_2017.pdf. Acesso em: 15 mar. 2019. 142 Disponível em: https://www.hks.harvard.edu/sites/default/files/about_us/policies/title_ix/ HKS_Sexual_Harassment-Procedures_for_Problem_Resolution_July_2017.pdf. Acesso em: 15 mar. 2019. 143 Disponível em: https://flowchart.odr.harvard.edu/files/odrip/files/harvard-odrinvestigation-process-flowchart.pdf. Acesso em: 15 mar. 2019. 144 Disponível em: https://odr.harvard.edu/files/odr/files/title_ix_odr_2018_annual_report_ final_121218_for_web.pdf. Acesso em: 15 mar. 2019. 165

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agressor; (ii) advertências mais severas, que se tornam parte do registro permanente individual; (iii) vigilância disciplinar por um determinado período de tempo, durante o qual novas violações à política ou outras políticas da faculdade serão motivo para suspensão, além de possível determinação de aconselhamento e pedido formal de desculpas; (iv) suspensões, que podem ser condicionais ou incondicionais. As condições podem incluir aconselhamento sem prazo definido e pedido formal de desculpas; (v) perda de moradia ou emprego no campus; (vi) restrição de acesso ao espaço, recursos e atividades; (vii) retenção de grau; (viii) demissão ou expulsão. • Monitoramento: além do acompanhamento de casos individuais, Harvard faz o monitoramento para identificar tendências comportamentais tanto dos agressores quanto das vítimas. Os dados levantados são publicados anualmente em um relatório denominado FY Annual Report, que tem, dentre outros, o objetivo de registrar o trabalho desempenhado pelo Title IX Office.

4.7.4 Massachusetts Institute of Technology (MIT)

Documentos e normativas de referência Os documentos-base para enfrentamento da violência sexual no MIT, incluindo o assédio na universidade, são: (i) Sexual Harassment, Sexual Misconduct, Gender-Based Harassment Policy;145 (ii) Guide to MIT’s Investigation and Resolution Process for Student Cases of Gender-Based Discrimination, Sexual Misconduct, Intimate Partner Violence, Stalking, and/or Gender-Based Bullying or Hazing;146 (iii) Information for Student Complainants – Sexual Misconduct;147 145 Disponível em: https://idhr.mit.edu/sites/default/files/documents/Title%20IX%20Sexual%20 Harassment%20Hearing%20Procedures%20-%20Employees%20%28Eff.%208-14-20%29. pdf. Acesso em: 15 mar. 2019. 146 Disponível em: https://idhr.mit.edu/sites/default/files/documents/Title%20IX%20Sexual%20 Harassment%20Hearing%20Procedures%20-%20Employees%20%28Eff.%208-14-20%29. pdf. Acesso em: 15 mar. 2019. 147 Disponível em: https://idhr.mit.edu/sites/default/files/documents/IDHR%20Sexual%20 Misconduct%20Resource%20Sheet%20v6.1.pdf. Acesso em: 15 mar. 2019. 166

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(iv) If You’ve Been Assaulted – “What You Need to Know”;148 (v) 2017-2018 Annual Report.149

Descrição da política Resumidamente, a política do MIT é desenvolvida da seguinte forma: • Medidas de prevenção: dentre as medidas preventivas existentes foi identificado um treinamento online direcionado para funcionários e alunos. Além disso, o MIT dispõe de uma comissão de prevenção e resposta às más condutas sexuais (Committee on Sexual Misconduct Prevention and Response),150 órgão de caráter consultivo, que orienta o reitor, o vice-presidente de Recursos Humanos, a comunidade, dentre outros. • Medidas de acolhimento de mulheres e/ou pessoas que sofreram outras formas de discriminação: não foram encontradas no âmbito desta pesquisa informações acerca da existência de medidas de acolhimento de mulheres e/ou pessoas que sofreram outras formas de discriminação nessa universidade. As medidas previstas no Title IX, no entanto, devem ser observadas, uma vez que a universidade toma o diploma legal como referência. • Medidas de responsabilização dos docentes: não foram encontradas no âmbito desta pesquisa informações acerca da existência de medidas de responsabilização dos docentes dessa universidade. As medidas previstas no Title IX, no entanto, devem ser observadas, uma vez que a universidade toma o diploma legal como referência. • Monitoramento: relatórios anuais são publicados pela instituição, ilustrando dados quantitativos referentes aos casos de assédio identificados (porcentagem de denúncias contra estudantes de graduação, estudantes de pós-graduação, professores etc.).

148 Disponível em: https://idhr.mit.edu/sites/default/files/documents/what%20you%20need%20 to%20know%20flier%202_0_0.pdf. Acesso em: 15 mar. 2019. 149 Disponível em: https://idhr.mit.edu/sites/default/files/documents/Annual%20Report%20 2019%20v%2011-1-19.pdf. Acesso em: 15 mar. 2019. 150 Mais informações disponíveis em: https://idhr.mit.edu/our-office/CSMPR. Acesso em: 15 mar. 2019. 167

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4.7.5 Stanford University

Documentos e normativas de referência Os documentos que orientam as políticas de enfrentamento ao assédio e violência sexual na Stanford University são: (i) Prohibited Sexual Conduct: Sexual Misconduct, Sexual Assault, Stalking, Relationship Violence, Violation of University or Court Directives, Student-on-Student Sexual Harassment and Retaliation Policy;151 (ii) Sexual Harassment Policy;152 (iii) Dealing with Sexual Harassment;153 (iv) Sexual and Gender-Based Violence Resource Guide – a guide to differentiate between Title IX, CST, and SARA Offices.154

Descrição da política Resumidamente, a política da Stanford é desenvolvida da seguinte forma: • Medidas de prevenção: Stanford oferece programas de treinamento para orientar professores, funcionários e alunos. • Medidas de acolhimento de mulheres e/ou pessoas que sofreram outras formas de discriminação: Há uma equipe especializada (Confidential Support Team – CST)155 que presta suporte confidencial a estudantes que passaram por um episódio de violência sexual ou violência doméstica, violência por parceiros íntimos, perseguição e assédio sexual. Os serviços da CST incluem orientações quanto aos recursos que a

151 Disponível em: https://adminguide.stanford.edu/chapter-1/subchapter-7/policy-1-7-3. Acesso em: 15 mar. 2019 152 Disponível em: https://adminguide.stanford.edu/chapter-1/subchapter-7/policy-1-7-1. Acesso em: 15/03/2019. 153 Disponível em: https://studentservices.stanford.edu/more-resources/student-policies/ student-rights-responsibilities/sexual-harassment-consensual-sexual. Acesso em: 15 mar. 2019. 154 Disponível em: https://adminguide.stanford.edu/chapter-2/subchapter-2/policy-2-2-4. Acesso em: 15 mar. 2019. 155 Mais informações em: https://vaden.stanford.edu/get-help-now/confidential-supportteam. Acesso em: 15 mar. 2019. 168

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instituição disponibiliza, apoio emocional de curto prazo e aconselhamento individual contínuo. Não há nenhum custo para as estudantes. Também há um serviço psicológico disponível (Counseling & Psychological Services – CAPS),156 que visa acompanhar estudantes que experimentam uma ampla variedade de preocupações pessoais, acadêmicas e de relacionamento. Em sua página, consta que o serviço pode servir como ajuda para abordar qualquer assunto que possa interessar em um ambiente confidencial. • Medidas de responsabilização dos docentes: não foram encontradas no âmbito desta pesquisa informações acerca da existência de medidas de responsabilização dos docentes. As medidas previstas no Title IX, no entanto, devem ser observadas, uma vez que a universidade toma o diploma legal como referência. • Monitoramento: não foram encontradas no âmbito desta pesquisa informações acerca da existência de medidas de monitoramento da política dessa universidade.

4.7.6 Yale University

Documentos e normativas de referência Os documentos de referência para políticas de enfrentamento ao assédio sexual e violência sexual na Yale University são: (i) Preventing and Responding to Sexual Misconduct policy: Building a Climate of Safety and Respect at Yale;157 (ii) Rights and Options Handout;158 (iii) Report of Complaints of Sexual Misconduct 2018;159

156 Ibidem. 157 Disponível em: https://provost.yale.edu/sites/default/files/files/Title%20IX_FAQs_080913. pdf. Acesso em: 15 mar. 2019. 158 Disponível em: http://smr.yale.edu/sites/default/files/files/Rights-and-Options-HandoutYale.pdf. Acesso em: 15 mar. 2019. 159 Disponível em: https://provost.yale.edu/sites/default/files/files/August%202018%20 Sexual%20Misconduct%20Report.pdf. Acesso em: 15 mar. 2019. 169

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(iv) The procedures for the University Wide Committee on Sexual Misconduct;160 (v) Sexual Harassment and Assault Response & Education (SHARE) Annual Report 2017-2018;161 (vi) Guidance & FAQs for Faculty and Administrators.162

Descrição da política Resumidamente, a política da Yale é desenvolvida da seguinte forma: • Medidas de prevenção: Yale oferece programas de treinamento para orientar professores, funcionários e alunos. • Medidas de acolhimento de mulheres e/ou pessoas que sofreram outras formas de discriminação: os serviços disponíveis – que devem garantir o sigilo dos dados das denunciantes163 – no campus incluem: resposta à violência sexual, serviços de aconselhamento e psicologia, serviços de saúde mental, ombudsman e provedores de assistência médica. Adicionalmente, a faculdade dispõe do Gender-Based Misconduct Office, órgão responsável por oferecer suporte e assistência às estudantes vítimas de violência sexual durante todo o processo disciplinar e ao longo de todo o tempo que a estudante passa na Universidade. • Medidas de responsabilização dos docentes: A responsabilização de docentes em Yale é realizada por meio de um procedimento conduzido pelo University-Wide Committee on Sexual Misconduct (UW), composto por 30 integrantes de diferentes faculdades, sendo funcionários, docentes164 e

160 Disponível em: http://provost.yale.edu/sites/default/files/files/UWC%20Procedures.pdf. Acesso em: 15 mar. 2019. 161 Ibidem. 162 Disponível em: http://provost.yale.edu/sites/default/files/files/UWC%20Procedures.pdf. Acesso em 15 mar. 2019. 163 De acordo com o site de Yale, a universidade compreende que o respeito à privacidade e confidencialidade dos dados fornecidos pelas alunas vítimas de assédio sexual e outras formas de discriminação de gênero deve ser objeto de constante preocupação. Nesse sentido, informa que os profissionais são treinados sobre a importância da confidencialidade dos dados e devem respeitar protocolos específicos para manter o sigilo das informações recebidas por meio de denúncias. Mais informações estão disponíveis em: https://smr.yale. edu/find-policies-information/understanding-confidentiality. Acesso em: 11/2019. 164 Os funcionários e docentes deverão ser indicados pela administração de cada uma das faculdades. 170

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estudantes165 que deverão participar de um treinamento voltado para o atendimento de casos de violência, havendo a seleção de um presidente. • Monitoramento: Yale informa todos os anos, por meio do SHARE Center, o número de denúncias realizadas por alunos com alegações de terem sofrido alguma violação.

4.8 Conclusões Com o objetivo de subsidiar a atuação do Nudem nos autos do Procedimento Administrativo nº 254/2016, o presente memorando consolida um panorama acerca das políticas de enfrentamento à violência de gênero desenvolvidas em 22 universidades de sete países. Como resultado, foi possível constatar que, após o reconhecimento da existência de violência e discriminação baseada no gênero no meio acadêmico como um problema estrutural, grande parte das universidades pesquisadas desenvolveu políticas que têm como objetivo promover o seu enfrentamento. Nesse ponto, é importante destacar a experiência dos Estados Unidos, em que, após a responsabilização de instituições de ensino pela ocorrência de violência sexual em julgamento da Suprema Corte, as universidades passaram a construir políticas internas cada vez mais estruturadas. No Brasil, ao contrário dos demais países, o enfrentamento da violência de gênero no ambiente universitário é bastante incipiente, contando com estratégias de enfrentamento que, em sua grande maioria, consistem em iniciativas do corpo discente, em evidente ausência de um caráter institucional. Nesse contexto, as experiências narradas ao longo deste documento podem servir de parâmetro para a construção de políticas de enfrentamento à violência de gênero no país, de forma que a síntese das principais características e boas práticas dos casos analisados se mostra relevante. Em todas as universidades pesquisadas houve a necessidade de construção de um protocolo específico para lidar com situações de violência de gênero que leva em consideração as peculiaridades dessa forma de violência e, em algumas situações, as especificidades da violência sexual. Evita-se, para tanto, a utilização dos processos administrativos comuns da universidade para responsabilização do membro do corpo docente e acolhimento das mulheres. 165 A indicação de estudantes, por sua vez, será realizada pelo “Tale College Council” e “Professional Student Senate”. 171

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No caso da UBA, UNLP e UNC, por exemplo, o protocolo aplicado tem como princípio a não revitimização, evitando-se a reiteração desnecessária do relato dos fatos pelas mulheres. A UNC e Uniandes apontam, também, o respeito à autonomia das mulheres como central para a condução de todos os procedimentos, garantindo que o acionamento e a continuação dos meios de intervenção devem ser sempre consentidos. Além disso, a UNC elenca como princípios de sua política: (i) a realização de atendimento integral (atendimento às pessoas que tiveram seus direitos violados em sua dimensão psicológica, social, legal e/ou física, compreendendo a prevenção, informação, orientação, estabilização e proteção) e (ii) a atuação sem dano, ou seja, a busca pela construção de respostas que atendam às necessidades das mulheres, respeitando a sua vontade diante das ações pretendidas e evitando culpabilizá-las ou estigmatizá-las. Por fim, em diversas universidades, como Columbia, Harvard, MIT, Oxford, UB, UBA, UNLP, Uniandes e Yale, há uma preocupação com a garantia do respeito à privacidade e confidencialidade dos dados fornecidos pelas alunas que passaram por episódios de violência. Além disso, em cada um dos tópicos analisados, as seguintes boas práticas podem ser citadas: (i) Medidas de prevenção: a. Desenvolvimento de estratégias de sensibilização, capacitação e comunicação com vistas a erradicar a violência de gênero. b. Construção de políticas voltadas para relacionamentos consentidos entre o corpo docente e discente com o objetivo de prevenir a ocorrência de violências, especialmente o assédio, como em Columbia. (ii) Medidas de acolhimento de mulheres: a. Desenvolvimento de políticas que não sejam apenas centradas na aplicação de medidas de responsabilização, mas que se voltem para o acolhimento das mulheres a partir de uma perspectiva multidisciplinar. b. Disponibilização de atendimento psicológico, médico e social às estudantes, com recorte de gênero, independentemente da realização de denúncia formal. Importante mencionar, nesse ponto, que a UNC propõe a realização de um atendimento integral como forma de melhor atender às demandas das mulheres. c. Articulação com serviços da rede de atendimento a mulheres em situação de violência, como no caso de Columbia. 172

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Políticas de enfrentamento ao assédio e à violência de gênero em universidades

d. Possibilidade de aplicação de medidas cautelares em caso de constatação de situação de risco. Tais medidas podem incluir: suspensão temporária do acusado (UB), troca de unidade ou departamento da estudante ou do docente (Sciences Po), garantia de que não haverá contato com o suposto agressor, disponibilização de escolta para locomoção da aluna no campus, mudança de grade horária, realização de ajustes na jornada de trabalho da estudante, permissão para que a aluna se ausente de aulas sem qualquer prejuízo ao seu desempenho acadêmico, garantia de acesso a uma tutora para melhor condução de seus estudos e reposição de aulas (Columbia), dentre outras. (iii) Medidas para responsabilização do membro do corpo docente: a. Desenvolvimento de procedimentos administrativos que garantam o respeito ao contraditório e à ampla defesa. b. Disponibilização de auxílio jurídico e psicológico para que as mulheres se sintam amparadas na condução do processo administrativo. Tal iniciativa foi vislumbrada em Columbia, por exemplo. c. Disponibilização de documentos que descrevem de forma clara e acessível: (i) como e onde denunciar; (ii) quais os direitos das denunciantes e dos denunciados ao longo do processo; (iii) quais as etapas do processo administrativo; e (iv) quais as sanções aplicáveis ao acusado. d. Análise das denúncias e condução dos processos administrativos por comissões compostas por profissionais de diferentes trajetórias, incluindo a participação de estudantes, como no caso de Cambridge. (iv) Monitoramento: a. Publicação anual dos dados sobre a ocorrência de violência de gênero no campus, como forma de manter um diagnóstico atualizado sobre o problema a ser enfrentado. b. Existência de processos que permitem a avaliação por toda a comunidade acadêmica das medidas aplicadas, com a abertura de canais para a realização de propostas de alterações necessárias e ajustes. Como pôde ser vislumbrado, uma política que vise ao enfrentamento efetivo da violência de gênero nas universidades deve, portanto, estar voltada especificamente para o tema, buscando sempre preservar a autonomia das mulheres, evitar a revitimização e garantir um atendimento integral.

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As iniciativas não podem apenas estar relacionadas com a responsabilização de supostos agressores, mas devem, também, priorizar o desenvolvimento de serviços voltados ao acolhimento e fortalecimento de mulheres e à prevenção da ocorrência de novas violências. O primeiro passo para o desenvolvimento de estratégias que busquem solucionar tal problema é o reconhecimento da violência de gênero como uma questão estrutural e presente em toda e qualquer universidade. É urgente que os ambientes acadêmicos brasileiros passem, assim como as demais instituições aqui analisadas, a enfrentar a questão com seriedade e comprometimento.

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Direito Antidiscriminatório

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5. Direito à indenização decorrente da rescisão unilateral de contrato de locação em razão de ato discriminatório

Neste capítulo, apresentaremos o parecer elaborado pelo Mattos Filho em abril de 2020 ao Núcleo Especializado de Defesa da Diversidade e da Igualdade Racial da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.1 O objetivo foi analisar se a rescisão de contrato de locação de imóvel em função de intolerância religiosa contra praticantes de religião de matriz africana constituiria ilícito civil ou se seria direito do locador amparado pelo exercício de sua autonomia privada. Teve como base o princípio da eficácia horizontal dos direitos humanos, do abuso de direito, da cláusula geral de boa-fé e seus desdobramentos. O parecer evidencia a necessidade de observação das relações entre particulares sob a ótica dos direitos humanos, o que impossibilita que a violação a tais direitos – no caso em debate, a intolerância religiosa – seja justificada pela autonomia privada.

Introdução Consultam-nos a Defensoria Pública do Estado de São Paulo, por meio do Núcleo Especializado de Defesa da Diversidade e da Igualdade Racial (Nuddir)2 para entender se a rescisão do contrato celebrado para locação de buffet no caso em análise constituiria ilícito civil ou se seria direito do locador amparado pelo exercício de sua autonomia privada. 1

Beatriz de Almeida Borges e Silva, Renata Gaspar Barbosa Correa, Ana Carolina Longhini Spinelli, Clara de Almeida Thomé da Silva e Keise Cristine da Silva Salvador

2

Em referência ao Termo de Cooperação nº 8/2019, celebrado entre o Mattos Filho, Veiga Filho, Marrey Jr. e Quiroga Advogados e a Defensoria Pública do Estado de São Paulo em 10 de outubro de 2019. 177

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Para demonstrar como se trata de um ilícito civil, passível, portanto, de reparação, apresentamos um breve histórico do ocorrido. Duas mulheres de religião de matriz africana, o candomblé, buscavam espaço para realizar evento beneficente no dia 25 de agosto de 2019, cujo caráter não seria estritamente religioso. Em 27 de junho de 2019, foi feita a contratação de um espaço para o evento e efetuado o pagamento de sinal no valor de R$ 150,00, correspondente a 50% do total da locação. O restante do valor, bem como a taxa de R$ 150,00 referente à faxina a ser realizada no local, seria pago na semana do evento. Naquela oportunidade, nenhum contrato escrito foi firmado entre as partes, pois o representante do buffet contratado (“Representante”) indicou que o instrumento só seria assinado três dias antes do evento, após o pagamento do valor integral devido. Durante as tratativas, o representante foi informado do teor do evento e de que seriam feitas algumas homenagens religiosas durante a festa, sendo que este não demonstrou qualquer discordância. Uma vez encontrado o local para a realização do evento e com a sua devida contratação, em 30 de junho de 2019 criou-se compromisso na rede social Facebook para divulgá-lo. As contratantes informaram que muitos dos convidados, ao confirmar presença, compartilharam fotos no evento nas quais usavam roupas da cor branca, conhecidas por serem tradicionais do candomblé. Em 4 de agosto de 2019, as contratantes receberam mensagem de áudio do representante do contratado informando que seria necessário cancelar o evento, pois não seria possível seguir com a utilização do espaço. Foi esclarecido, ainda, que o motivo da rescisão seria um conflito de religião, pois os sócios do buffet haviam visto as fotos postadas no evento do Facebook, e, por serem evangélicos praticantes, ficaram incomodados em permitir que o local sediasse evento beneficente a religião de matriz africana. A rescisão foi feita, ainda, com pouca antecedência do evento, o que aumentou significativamente os custos da festa, pois a contratação de um novo espaço não só gerou um custo de R$ 850,00, como também dificultou a organização do evento. Além disso, causou às contratantes problemas de credibilidade com relação à festa, já que os convites estavam prontos e a alteração de local teve de ser feita à mão, rasurando os ingressos. Embora as contratantes tenham argumentado que a rescisão era injustificada, pois se pautava tão somente em preconceito religioso, o representante do buffet insistiu em desfazer o antes convencionado, contudo valendo-se de argumento diferente do inicialmente apresentado: alegou como causa da rescisão a insuficiência do pagamento, ao que lhe foi lembrado que o montante

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entregue fora justamente o acordado. As partes não chegaram a um acordo e o evento foi realizado em outro local. Apresentado o panorama fático, esta opinião legal demonstrará como as contratantes fazem jus à indenização, tendo em vista que a rescisão do contrato por questões de cunho religioso não é um exercício regular de direito, configurando, ao contrário, um ilícito civil. Esclarecemos que a nossa opinião leva em conta os documentos disponibilizados pelo Nuddir, as informações fornecidas em reunião presencial, bem como as normas previstas na legislação em vigor na data de elaboração do parecer e de edição deste livro e o atual posicionamento jurisprudencial referente às teorias da eficácia horizontal dos direitos humanos, do abuso de direito, da cláusula geral de boa-fé e de seus desdobramentos. Ressaltamos, todavia, que alterações legislativas e jurisprudenciais futuras podem interferir significativamente nas conclusões aqui apresentadas, motivo pelo qual recomendamos a análise periódica de eventuais efeitos dessas mudanças no que aqui opinamos.

5.1 Sumário executivo Somos da opinião de que a rescisão de um contrato por intolerância religiosa não é um exercício regular de direito pautado na autonomia dos contratantes, mas um ato ilícito passível de indenização. Isso ocorre porque o reconhecimento da eficácia horizontal dos direitos humanos impõe aos contratantes, mesmo no âmbito estritamente privado, o dever de mutuamente observar e promover os direitos humanos da contraparte, sob pena de sua conduta implicar um ato de intolerância. Ainda, por uma ótica estritamente contratual, nossa opinião é no sentido de que o aceite do sinal em um contrato verbal indiscutivelmente válido e sua posterior rescisão unilateral pelo representante do buffet frustrou uma legítima expectativa das contratantes e por isso constituiu um ato ilícito, encartado na máxima do nemo potest venire contra factum proprium. Por fim, da perspectiva consumerista, entendemos que há prática discriminatória e abusiva por parte do representante do buffet, pois, como o cancelamento do aluguel do espaço foi realizado por questão de divergência religiosa, certo é que esse não seria o tratamento dado a outros consumidores cuja crença fosse outra. Há, portanto, clara diferenciação entre consumidores e, portanto, efetiva prática abusiva. Apresentada, em suma, nossa opinião, passamos a traçar breves considerações a respeito dos conceitos e teses jurídicas que a respaldam. 179

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5.2 A eficácia horizontal dos direitos humanos A opinião aqui exposta respalda-se, em primeiro lugar, na teoria da eficácia horizontal dos direitos humanos e, para compreender não só a teoria, mas a sua incidência no caso em análise, é importante traçar breves considerações sobre o paradigma jurídico-constitucional no qual o direito contemporâneo se assenta – o Estado Democrático de Direito, que busca harmonizar as dimensões pública e privada, tratando-as como complementares em prol de todos os indivíduos, considerando que o Estado Democrático de Direito busca respeitar a autonomia de todos e de cada um, concretamente considerados, e pressupõe o reconhecimento e a aceitação da diferença. Partimos, assim, da premissa de que o respeito à igualdade e à diferença é um pilar do Estado Democrático de Direito, entendimento que encontra respaldo nas palavras do Min. Edson Fachin, ao relatar a Ação Direta de Inconstitucionalidade 5357 DF: É somente com o convívio com a diferença e com o seu necessário acolhimento que pode haver a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, em que o bem de todos seja promovido sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.3

O reconhecimento de que os direitos existem para serem exercidos em um determinado contexto social implica que toda atuação pessoal repercute sobre os outros. Dito de outra forma, se por um prisma eminentemente individualista, a proteção da autonomia centrava-se apenas na vontade declarada do praticante de determinada conduta, agora a vontade deixa de ser alvo de tutela por si só para se submeter, como todos os outros institutos jurídicos, à verificação de se respeitar ou não a condição humana alheia. Como pontua Anderson Schereiber: Impõe-se, no exercício da autonomia privada, um intenso respeito à condição alheia – da contraparte ou dos terceiros sobre quem repercute tal exercício – compreendida em sua integral amplitude, com atenção às suas expectativas, às suas necessidades e às suas fraquezas. Enquanto, na perspectiva liberal, o direito atentava tão-somente para a vontade do praticante da conduta, na perspectiva solidarista, o enfoque se este 3

STF, ADI 5357/DF (0005187-75.2015.1.00.0000), rel. Min. Edson Fachin, j. 09/06/2016.

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também, e com especial importância, sobre o destinatário do ato, ou aqueles que sofram seus reflexos.4

Essa perspectiva veio a ser, inclusive, positivada no artigo 32.1 do Pacto de San José, ao estabelecer que “toda pessoa tem deveres para com a família, a comunidade e a humanidade”. Assim, conforme ensina Márcio Luís de Oliveira: Há, portanto, deveres fundamentais que não são somente imputados ao Estado, mas também aos indivíduos, aos grupos sociais e à sociedade como um todo. Logo, se somos – como indivíduos e como coletividade – sujeitos de direito e de garantias, somos igualmente devedores do respeito e da efetivação dos direitos dos demais indivíduos e da coletividade.5

Daí porque afirmarmos que, sob o pano de fundo do Estado Democrático de Direito, há vinculação dos particulares aos direitos humanos, de modo que nenhuma situação poderá ser analisada sob a estrita ótica da vontade individualista de uma das partes, na medida em que haverá sempre uma “ponderação, na qual deve figurar num dos pratos da balança o próprio direito fundamental em jogo e, no outro, a autonomia privada do particular”.6 Registre-se, aliás, que o Supremo Tribunal Federal (STF) já se manifestou sobre o tema em diversas oportunidades,7 concluindo pela possibilidade da aplicação horizontal dos direitos humanos. Nesse sentido: Tem-se, assim, assentada a horizontalidade da principiologia constitucional, aplicável a entes estatais ou a particulares. Quer-se dizer: os princípios constitucionais relativos a direitos fundamentais não obrigam apenas os entes e órgãos estatais. São de acatamento impositivo e insuperável de todos os cidadãos em relação aos demais.8

4

SCHEREIBER, Anderson. A proibição do comportamento contraditório: tutela da confiança e venire contra factum proprium. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 59.

5

OLIVEIRA, Márcio Luís de. A Constituição juridicamente adequada. Belo Horizonte: D’Plácido, 2016, p. 245.

6

SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 175-176.

7

Nesse sentido, STF, RE 161.243/DF, rel. min. Carlos Velloso, DJ 19/12/1997; STF, RE 407.688/ AC, rel. min. Cezar Peluso, DJ 06/10/2006.

8

ADI 4.815/DF, rel. min. Cármen Lúcia, DJe 29/01/2016. 181

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Interessante ressaltar, inclusive, o voto do Ministro Luiz Fux, quando do julgamento do Agravo Regimental no Recurso Extraordinário com Agravo 1.008.625/SP, no qual se entendeu que: As normas definidoras de direitos e garantias fundamentais têm campo de incidência em qualquer relação jurídica, seja ela pública, mista ou privada, donde os direitos fundamentais assegurados pela Carta Política vinculam não apenas os poderes públicos, alcançando também as relações privadas.9

O Superior Tribunal de Justiça (STJ), também já se manifestou em sentido semelhante, ao decidir, por exemplo, o Habeas Corpus 12.547/DF, no qual o voto do Ministro Ruy Rosado de Aguiar menciona a vinculação de particulares aos direitos fundamentais: A tutela da personalidade não pode se conter em setores estanques, de um lado os direitos humanos e de outro as chamadas situações jurídicas de direito privado. A pessoa, à luz do sistema constitucional, requer proteção integrada, que supere a dicotomia direito público e direito privado e atenda à cláusula geral fixada pelo texto maior, de promoção da dignidade humana.10

Dito tudo isso, passamos a demonstrar em que medida o caso em análise amolda-se à indicação acima. Nesse sentido, como afirmado, as contratantes tiveram o contrato de locação de buffet rescindido com o argumento inicial de que haveria um conflito de religião, pois os sócios do buffet teriam visto as fotos postadas no evento do Facebook, e, por serem evangélicos praticantes, ficaram incomodados em permitir que o local sediasse evento beneficente em seu espaço realizado por pessoas de religião de matriz africana. Com efeito, tanto a religião das contratantes quanto a dos sócios do buffet recebem proteção constitucional, a teor do que prevê o artigo 5º, IV, da Constituição Federal.11 Em razão disso, a questão que se apresenta não diz respeito a uma análise sobre qual liberdade religiosa deveria 9

STF, AgRg no ARE 1.008.25, rel. min. Luiz Fux, DJe 19/04/2017.

10

STJ, HC 12.547 – Distrito Federal, rel. min Ruy Rosado de Aguiar, 01/06/2000.

11

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

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prevalecer – notadamente porque não há hierarquia entre elas –, consistindo, na verdade, em uma avaliação de se constitui legítimo exercício da autonomia privada do locador de um buffet, ou seja, um espaço marcadamente não religioso, rescindir o contrato, invocando como motivo para tanto a religião das contratantes. Dito de outra forma, a situação em apreço não se equipara a uma ponderação de se, por exemplo, escolas islâmicas deveriam ser obrigadas a matricular alunos não muçulmanos. Ao contrário, está-se a ponderar, em última análise, se uma escola laica poderia se recusar a aceitar matrículas de alunos de uma determinada religião.12 Na ponderação entre a autonomia do representante do buffet e o direito à liberdade religiosa das contratantes, o fiel da balança indiscutivelmente pende à tutela deste último direito – ou seja, com base na eficácia horizontal dos direitos humanos é inadmissível cogitar-se da rescisão de um contrato em virtude da religião de uma das partes. Aliás, em exemplo muito próximo à situação ora discutida, Daniel Sarmento sustenta: Por exemplo, entendemos que se fosse ajustada pelas partes num contrato de locação uma cláusula estipulando a possibilidade de rescisão do pacto com a retomada do imóvel, caso o locatário passasse a receber em sua casa pessoas negras, ou se convertesse à umbanda, a autonomia privada não deveria assumir um peso relevante, numa colisão com os direitos fundamentais do inquilino que estivesse sendo despejado.13

Defender como legítima a rescisão de um contrato com base na religião de um dos contratantes implicaria, assim, patente desconsideração ao marco jurídico vigente no Brasil, que se assenta no Estado Democrático de Direito. Entendemos, em suma, que defender que a rescisão unilateral por diferenças religiosas não acarreta um dano indenizável corresponde a ignorar que a ordem jurídica vigente se estrutura no respeito à dignidade humana e as escolhas individuais de cada pessoa, de forma a consagrar o direito à diferença.



[...] III- é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e as suas liturgias.

12

Os exemplos são colhidos em NAKAHIRA, Ricardo. Eficácia horizontal dos direitos fundamentais. Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2007.

13

SARMENTO, Op. cit., p. 309. 183

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5.3 A validade do contrato verbal celebrado entre as contratantes e o representante do buffet O paradigma jurídico-constitucional vigente impõe a observância aos direitos humanos mesmo nas relações privadas, cujo exemplo por excelência são os contratos. Nesse sentido, é necessário analisar em que medida tais institutos estão funcionalizados à pessoa humana, isto é, em que medida resguardam e promovem a condição humana. A partir de uma breve análise doutrinária sobre o tema, entendemos que no caso em comento não houve legítimo exercício da autonomia privada do locador, seja a partir da teoria da eficácia horizontal dos direitos humanos, mas também a partir de uma análise funcionalizada dos contratos. O contrato é tido por grande parte da doutrina como a categoria mais relevante dos negócios jurídicos. Trata-se de instituto complexo, formado por ao menos duas partes e utilizado por elas para externar desejos convergentes. É, portanto, negócio jurídico bilateral ou plurilateral, oriundo de declaração de vontade compatível entre as partes que o celebram e utilizado para criar, transferir, restringir, ampliar e até extinguir obrigações.14 Em um primeiro momento, os contratos eram majoritariamente utilizados em relações exclusivamente privadas, pois eram raras as hipóteses em que se permitia à Administração Pública convencionar com o particular. Esse cenário foi se alterando com a aproximação das relações públicas e privadas e, atualmente, existem inúmeras espécies de contrato que podem ser celebradas entre particulares, entre público e privado e até mesmo entre entes da Administração.15 Justamente pela vasta gama de relações que podem ser regidas pelo instituto, somada à sua indiscutível importância no ordenamento jurídico pátrio e à função de tutelar tanto objetivos individuais quanto sociais, emergiu o entendimento de que os contratos possuem função social, reconhecida pelo legislador e positivada no artigo 421 do Código Civil.16 Apesar da escolha do termo “função social”, é inegável que os contratos também possuem função econômica, na medida em que se prestam a reger inúmeras situações e interesses de cunho financeiro, que permitem a circulação 14

WALD, Arnoldo; CAVALCANTI, Ana Elizabeth L. W.; PAESANI, Liliana Minardi. Direito civil: direito das obrigações e teoria geral dos contratos. Vol. 2. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 228. No mesmo sentido, LOUREIRO, Luiz Guilherme. Contratos: Teoria geral e contratos em espécie. 3. ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Método, 2008, p. 28.

15

ALMEIDA, Fernando Dias Menezes de. Contrato administrativo. São Paulo: Quartier Latin, 2012.

16

Art. 421. A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato.

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de riquezas. Assim, mesmo sob uma perspectiva de direito privado, a autonomia privada das partes e sua liberdade de contratar é assegurada, desde que respeitados alguns requisitos necessários ao contrato. O que a princípio pode ser entendido como mera imposição de restrição à autonomia privada das partes é, na verdade, a preservação de seus direitos – em especial do elo mais fraco da relação –, pois representa uma tentativa de garantir o equilíbrio entre o que Luiz Guilherme Loureiro estabelece como útil e justo: [...]. O direito objetivo reconhece as convenções porque elas são úteis para as partes e para a sociedade, na medida em que observam standards da justiça. É assim que o útil e o justo aparecem como os elementos de base que definem todo o regime contratual atual. O útil e o justo são, na realidade, o fundamento da força obrigatória do contrato, suplantando a autonomia de vontade.17

São três os elementos essenciais ao contrato: (i) a capacidade das partes,18 verificada quando estas possuem capacidade legal de agir; (ii) o objeto idôneo, que é aquele lícito, possível, determinado e adequado à finalidade almejada pelos contratantes; e (iii) o consentimento, verificado pela manifestação de vontade das partes. Atualmente, o entendimento majoritário é de que os três elementos são aqueles essenciais ao contrato, contudo muito se discutiu sobre a possibilidade de existência de um quarto elemento essencial: a necessidade de os contratos serem efetivamente documentados de forma escrita. Essa controvérsia foi superada com o advento da globalização, catalisado pela internet e pelos meios de comunicação modernos, que permitem a celebração de contratos que prescindem da forma escrita. Nos dias de hoje, a regra é a liberdade de forma dos contratos, que garante validade aos contratos verbais e até mesmo àqueles firmados por meio de gestos. Como bem leciona Sílvio de Salvo Venosa: Todas são formas de manifestação de vontade que podem gerar um contrato. A forma é o continente de um negócio jurídico, de um contrato. É a manifestação externa, perante a sociedade, que atesta existir um

17

LOUREIRO, Luiz Guilherme. Op. cit., p. 46-47.

18

A doutrina moderna entende que, para algumas espécies de contrato, também é necessária a legitimação das partes para celebrá-lo (WALD, A. et al. Op. cit., p. 254-255). 185

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negócio jurídico subjacente. Ao mesmo tempo em que serve para exteriorizar a vontade, a forma serve de prova para o negócio jurídico.19

Não se pode confundir a preferência pela celebração de instrumentos escritos como mera comodidade para armazenamento de documentos e constituição de prova, com elemento imprescindível para a validade do contrato. A “[...] forma, ainda que seja útil para provar a avença, não constitui elemento de validade do contrato, o qual pode ser constituído verbalmente”.20 Importante destacar que, além dos requisitos essenciais, alguns contratos preveem certas formalidades para sua validade. É o caso daqueles instrumentos que, por força do artigo 108 do Código Civil, devem ser escritos (via escritura pública) para “constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário-mínimo vigente no país”. Note-se, entretanto, que a exigência de requisitos alheios aos já mencionados constitui exceção à regra geral para validade dos contratos, que, frise-se, impõe somente três restrições à liberdade de contratar. Pelo que até aqui expusemos, é nítida no presente caso a existência de contrato verbal firmado entre as partes para aluguel do espaço visando à realização do evento. Ainda que não tenha ocorrido a assinatura do instrumento escrito, pois esta ocorreria somente em momento posterior, por indicação do próprio representante do buffet, as partes capazes, com consentimento expresso, manifestaram suas vontades convergentes, sendo o objeto da avença idôneo. Ainda que se caracterize o acordo firmado entre as partes como “pré-contrato”, este nada mais é do que uma espécie do gênero “contratos”, pois o contrato definitivo está previsto no contrato preliminar.21 Por representar a intenção das partes de celebrar determinado negócio e gerar legítima expectativa à parte contratante, o pré-contrato está sujeito a todas as diretrizes e obrigações atinentes a um contrato definitivo. Dessa forma, à luz de uma perspectiva contratual, nossa opinião é de que todos os requisitos para validade do contrato foram respeitados no caso em análise, de modo que o ajuste realizado entre as partes trata de contrato verbal válido e que, portanto, tem força obrigatória e está sujeito aos princípios que incidem sobre o direito contratual. 19

VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: Teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. Vol. 2. 214. ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 482.

20

LOUREIRO, Luiz Guilherme. Op. cit., p. 55.

21

GOMES, Orlando. Contratos. Atualizado por Edvaldo Brito e Reginalda Paranhos de Brito. 27. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 137.

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5.4 Os princípios contratuais aplicáveis ao caso

5.4.1 Cláusula geral de boa-fé Uma vez demonstrado que o contrato celebrado entre a contratante e o representante do buffet é válido, entendemos importante, a fim de demonstrar o dever de indenizar que decorre da rescisão unilateral arbitrária desse mesmo contrato, discorrer sobre os princípios contratuais que se aplicam ao caso e subsidiam nossa opinião. Celebrado o contrato, não se permite que aquele que tinha conhecimento acerca de todos os aspectos que circundam a avença a questione, por ferir a boa-fé objetiva, cláusula geral que rege as relações públicas e privadas no direito brasileiro. Por se tratar de cláusula geral, a boa-fé objetiva não possui definição estrita, sendo aplicada de diversas maneiras e adaptando-se às peculiaridades de cada situação.22 Apesar de seu conceito aberto, estabelece padrões de comportamentos que devem ser seguidos e balizam todos os negócios jurídicos celebrados sob a égide da legislação pátria.23 Dada a importância de assegurar que as partes ajam dentro dos limites da boa-fé, esse instituto foi positivado e está presente em diversos artigos do Código Civil, em especial no artigo 422.24 Desse dispositivo, extrai-se o racional por detrás do dever de boa-fé: agir de forma leal, de acordo com os padrões esperados durante toda relação havida entre as partes – não somente no momento no qual é celebrado o negócio jurídico. Também da cláusula geral de boa-fé decorre o dever de não frustrar legítimas expectativas. Uma vez realizado o negócio, é vedado às partes desfazer a avença 22

“Além disso, trata-se de uma cláusula geral, a ser preenchida pelo aplicador do Direito caso a caso, de acordo com a ideia de senso comum” (TARTUCE, Flávio. Direito civil 3: Teoria geral dos contratos e contratos em espécie. São Paulo: Método, 2012, p. 92).

23

Para Judith Martins-Costa, trata-se de “[...] instituto jurídico indicativo de (i) uma estrutura normativa dotada de prescritividade; (ii) um cânone de interpretação dos contratos e (iii) um standard comportamental. Conquanto não se possa definir um conceito, os juristas chegam ao seu conteúdo pela análise de diferentes situações nas quais os tribunais encontram a razão de decidir (ou uma delas) na violação a esse standard comportamental” (MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no Direito Privado: Critérios para sua aplicação. 2. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 42).

24

Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé. 187

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tão somente para atender aos seus interesses, frustrando os interesses dos outros envolvidos, sem que estes sejam devidamente indenizados pelo negócio malogrado, porque, como já demonstrado, a lógica irrompida pelo paradigma do Estado Democrático de Direito torna todas as partes contratantes igualmente devedoras do respeito e da efetivação dos direitos dos demais envolvidos. Nesse aspecto, há também que se considerar a influência da ética para criação e aplicação da norma jurídica. Ao iniciar qualquer relação jurídica, inclusive uma relação contratual privada, presume-se que esta será baseada nos princípios que orientam o bom funcionamento das relações, tais como, e principalmente, a boa-fé. No presente caso, houve descumprimento do contrato celebrado entre as partes sob a perspectiva objetiva, ante a frustração da legítima expectativa gerada às contratantes de que o evento poderia ser realizado no espaço acordado e, ainda, sem qualquer razão plausível ou pagamento de indenização pela rescisão tão próxima à data do evento. Sob o enfoque subjetivo, o descumprimento reside no fato de que o representante tinha conhecimento, no momento da celebração do contrato, de que a festa contaria com algumas homenagens religiosas. Naquela oportunidade, não foi realizada qualquer ressalva a esse fato, que só voltou a ser suscitado quando da rescisão do instrumento. Além disso, a falta de pagamento adiantado de metade da taxa de limpeza não poderia ser considerada violação contratual pelas contratantes, pois a entrega antecipada dessa quantia não fora acordada entre as partes. Por outro lado, há nova evidência de má-fé (ou violação à boa-fé subjetiva) do representante do buffet ao expressar esse argumento ciente de que o referido pagamento não havia sido pactuado. Assim, independentemente da óptica que se adote, inegável a violação da boa-fé por parte do representante do buffet, o que é vedado pelo ordenamento jurídico brasileiro e pelos tribunais pátrios.

5.4.2 Vedação ao comportamento contraditório: o venire contra factum proprium Como se viu, a cláusula geral de boa-fé possui conceito amplo e dinâmico e dela decorrem alguns desdobramentos, dos quais se pode mencionar a violação ao venire contra factum proprium, que impede a adoção de condutas desleais e contraditórias, que resultem em autêntica quebra de confiança das partes

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envolvidas.25 Esse desdobramento impõe certa limitação à conduta do agente e à sua autonomia privada, visto que este não pode agir exclusivamente com base em seus interesses ou nos daquele que representa. Seu modo de atuar deve, necessariamente, pautar-se em seu comportamento anterior, como forma de garantia às partes envolvidas. Nesse contexto, a desistência por parte do representante do buffet em locar o espaço, sem antecedência razoável que não prejudicasse o evento organizado e, principalmente, mediante a rasa justificativa baseada em “conflito religioso”, não apenas excede os limites de seu direito – ferindo os princípios que orientam a relação contratual – como vai de encontro ao direito constitucional de liberdade religiosa. A decisão dos proprietários, ainda que tomada a partir da compreensão pessoal de que estariam no exercício de seu direito como titulares do espaço, feriu a relação contratual estabelecida entre as contratantes e aquele que agia em seu nome, no caso o representante do buffet. Dessa maneira, foi causado dano direto às contratantes, que precisaram despender de valor consideravelmente maior para alugar outro espaço a fim de não cancelar o evento, bem como demandou ajustes no material de divulgação já elaborado à época, o que causou impacto à credibilidade e possível arrecadação de recursos, uma vez que se tratava de evento beneficente. Evidente que a conduta do representante do buffet, sob orientação de seus proprietários, é caracterizada como comportamento contraditório que, na exemplificação trazida por Luciano de Camargo Penteado, se dá quando uma pessoa, durante determinado período de tempo, em geral longo, mas não medido em dias ou anos, comporta-se de certa maneira, gerando a expectativa justificada para outras pessoas que dependem desse seu comportamento, de que ela prosseguirá atuando naquela direção. Contudo, há uma frustração da expectativa gerada, a partir da adoção de comportamento subsequente contraditório ao inicialmente manifestado.26 O venire contra factum proprium, consiste, portanto, na interrupção de uma sequência de atitudes não apenas semelhantes em sua forma, mas que caminham para um mesmo fim, por uma ação divergente, isto é, a expectativa de uma das partes envolvidas, criada a partir de comportamento coerente da outra parte 25

“Pela máxima venire contra factum proprium non potest, determinada pessoa não pode exercer um direito próprio contrariando comportamento anterior, devendo ser mantida a confiança e o dever de lealdade decorrentes da boa-fé objetiva, depositada quando da formação do contrato” (TARTUCE, Flávio. Op. cit., p. 104).

26 PENTEADO, Luciano de Camargo. Figuras parcelares da boa-fé objetiva e venire contra factum proprium. Revista Eletrônica Thesis, São Paulo, v. 8, p. 39-70, 2007. 189

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que permite esperar que seus atos levarão a determinado resultado, se frustra diante da sua súbita, incoerente e inesperada modificação. No caso em comento, repita-se, as contratantes negociaram e celebraram contrato de locação de espaço para realização de evento, tendo, inclusive, cumprido com os requisitos que lhes cabiam – como o pagamento antecipado do valor exigido a título de sinal para reserva do local na data escolhida. Diante do adimplemento parcial das obrigações assumidas pelas contratantes e das tratativas havidas entre as partes sem que o representante, em momento algum, sinalizasse qualquer oposição ou ressalva, criou-se a legítima expectativa de que o objeto do contrato seria efetivado, ou seja, que, nos termos contratados, o espaço seria colocado à disposição das contratantes para a ocasião combinada. Após a sequência de atos que indicavam que o contrato seria devidamente cumprido pelo representante, este se negou a disponibilizar o espaço alugado, quebrando a legítima expectativa que havia criado nas contratantes. Para que seja possível manter a credibilidade e a segurança das relações jurídicas e sociais, é necessário que se observe, na conduta das partes, coerência. Daí porque, para garantir que a confiança, orientada pela boa-fé, se faça presente a todo tempo nas relações contratuais, como no caso em tela, o direito configurou o comportamento contraditório como conduta ilícita, o que é reconhecido pela jurisprudência do STJ: Assim é que o titular do direito subjetivo que se desvia do sentido teleológico (finalidade ou função social) da norma que lhe ampara (excedendo aos limites do razoável) e, após ter produzido em outrem uma determinada expectativa, contradiz seu próprio comportamento, incorre em abuso de direito encartado na máxima nemo potest venire contra factum proprium.27

Nessa linha, de acordo com o Enunciado 362 da Jornada de Direito Civil, “a vedação do comportamento contraditório (venire contra factum proprium) fundamenta-se na proteção da confiança, tal como se extrai dos arts. 187 e 422 do Código Civil”. No mesmo sentido, vale ressaltar as palavras de Anderson Schreiber:

27

STJ. REsp 1143216 RS. Rel. Min. Luiz Fux, Primeira Seção, julgamento em 24 de março de 2010.

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a proibição do comportamento contraditório não tem por fim a manutenção da coerência por si só, mas afigura-se razoável apenas quando e na medida em que a incoerência, a contradição aos próprios atos, possa violar expectativas despertadas em outrem e assim causar-lhes prejuízos. Mais que contra a simples coerência, atenta o ‘venire contra factum proprium’ à confiança despertada na outra parte, ou em terceiros, de que o sentido objetivo daquele comportamento inicial seria mantido, e não contrariado.28

Dessa forma, a continuidade de comportamento anterior e a preservação da coerência são elementos indispensáveis de garantia para as partes envolvidas. Daí porque, no caso ora analisado, ao concordar com o aluguel do espaço para realizar a festa organizada por membros de religião do candomblé, não poderia o representante do buffet, poucos dias antes da data do evento, descontinuar o acordado, sob a alegação de que o aluguel do espaço estava cancelado por motivo de conflito religioso, demonstrando comportamento discriminatório incoerente, quando da celebração do contrato.

5.4.3 A aplicação da teoria do abuso de direito ao presente caso O entendimento contemporâneo de que inexistem direitos absolutos exige que os atos relativos ao exercício de determinado direito sejam não apenas lícitos, mas que também cumpram sua finalidade social e econômica. Para Francisco Amaral: O abuso de direito consiste no uso imoderado do direito subjetivo, de modo a causar dano a outrem. Em princípio, aquele que age dentro do seu direito a ninguém prejudica (neminem laedit qui iure suo utitur). No entanto, o titular do direito subjetivo, no uso desse direito, pode prejudicar terceiros, configurando ato ilícito e sendo obrigado a reparar o dano.29

28

SCHREIBER, Anderson. A proibição do comportamento contraditório: Tutela da confiança e venire contra factum proprium. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 50.

29

AMARAL, Francisco. Direito civil: Introdução. 5ª ed. rev. atual. aum. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 550. 191

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Reconhecendo que certos preceitos éticos não se cumprem sempre de forma espontânea, o legislador, com o intuito de proteger a boa relação e o efetivo cumprimento da finalidade das relações contratuais, enxergou a necessidade de positivar certos preceitos como princípios. Nesse sentido, o artigo 18730 do Código Civil caracteriza expressamente o abuso de direito como ato ilícito, consistente no exercício de direito que excede manifestamente os limites impostos (i) por seu fim econômico e social; (ii) pela boa-fé; e (iii) pelos bons costumes. Ao positivar tais princípios, condiciona-se a legitimidade do exercício do direito não só à legalidade da conduta, mas também à necessária observância de todos e de cada um daqueles limites. A corrente majoritária da doutrina estabelece, enfrentando algumas divergências, requisitos para a qualificação do ato como abusivo. Veja-se, a seguir, tais requisitos e o paralelo traçado com o caso ora analisado: • Titularidade do direito: o indivíduo a ser responsabilizado civilmente deve ser titular do direito subjetivo que possui seus limites questionados. • Exercício irregular do direito e rompimento dos limites impostos: ocorre quando o titular do direito excede os limites de seu exercício, causando dano a terceiros. • Violação do direito alheio: é a concretização da violação ao direito alheio que permite que o prejudicado busque medidas judiciais para reparação de tal dano. • Elemento subjetivo da conduta: enquanto a configuração do ato ilícito, em regra, possui o dolo ou, ao menos, a culpa como elementos necessários, o legislador estabeleceu que, em se tratando de abuso de direito, há dispensa de tais requisitos para caracterização da responsabilidade. • Nexo de causalidade: é relação linear, o elo que conecta necessariamente a conduta do titular do direito subjetivo e o dano causado ao terceiro. No caso, somos da opinião de que (a) os contratados para locação do espaço são proprietários do imóvel e, portanto, titulares do direito; (b) os proprietários cancelaram o negócio jurídico com base em motivo irrazoável e não legítimo, porque justificado em aspectos religiosos, em afronta à liberdade religiosa constitucionalmente garantida, violando a boa-fé contratual e os bons costumes da prática desse tipo de relação jurídica; (c) a ruptura do contrato, da forma como ocorrida, viola o direito da contratante à efetivação dos termos antes 30 Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. 192

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pactuados, bem como ofende seu direito à liberdade religiosa e à igualdade; (d) como prescinde de dolo ou culpa, o mero cometimento do ato, ou seja, o simples rompimento do contrato, caracteriza responsabilidade do agente; e (e) o dano só ocorreu em virtude da quebra do contrato. Entendemos, portanto, que estão presentes todos os requisitos necessários à configuração do ato como ilícito, o que permite concluir pela existência de responsabilidade dos contratados por abuso de direito em claro prejuízo às contratantes.

5.5 Incidência do Código de Defesa do Consumidor Além das diretrizes puramente contratuais, são aplicáveis ao caso as normas do Código de Defesa do Consumidor (CDC), pois preenchidos todos os requisitos necessários para que seja caracterizada relação de consumo. No caso sob análise, as contratantes figuram como consumidoras, o buffet como contratado (na figura do representante) e o aluguel do espaço como produto, nos termos dos arts. 2º e 3º, ambos do CDC.31 Em que pese tratar-se de aluguel de espaço para realização de evento, é entendimento da jurisprudência que contratações dessa natureza não são regidas pela lei de locações, mas sim pelas normas consumeristas, em conjunto com os preceitos contratuais anteriormente descritos. Nesse sentido: RECURSO INOMINADO. RESPONSABILIDADE CIVIL. RELAÇÃO DE CONSUMO. PRESTAÇÃO DE SERVIÇO. LOCAÇÃO DE ESPAÇO PARA EVENTOS. RESCISÃO DO CONTRATO POR CULPA EXCLUSIVA DA CONSTRATADA. GASTOS EXTRAS EM RAZÃO DE MUDANÇA. NEXO DE CAUSALIDADE DEMONSTRADO. DANO MATERIAL PARCIALMENTE

31



Art. 2º. Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final. Art. 3º. Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços. § 1º Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial. Aplicação do CDC: Na hipótese dos autos, é inquestionável que a relação jurídica que envolve as partes é regida pelas normas do Código de Defesa do Consumidor, pois os litigantes enquadram-se perfeitamente nos conceitos de fornecedor e consumidor esculpido por este diploma legal (arts. 2º e 3º do CDC). 193

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COMPROVADO. DANO MORAL INOCORRENTE. AUSÊNCIA DOS REQUISITOS CONFIGURADORES.32

Assim, o artigo 6º, II, do CDC33 garante que os consumidores não sejam diferenciados entre si, salvo por situações excepcionais, nas quais o consumidor precisa de tutela especial. Essa garantia é amparada pelo princípio da isonomia, positivado no artigo 5º da Constituição Federal, que garante igualdade de tratamento a todos os cidadãos, sem qualquer distinção. Nesse sentido, leciona Rizzatto Nunes: Pela norma instituída no inciso II em comento fica estabelecido que o fornecedor não pode diferenciar os consumidores entre si. Ele está obrigado a oferecer as mesmas condições com todos os consumidores. Admitir-se-á apenas que se estabeleçam certos privilégios aos consumidores que necessitam de proteção especial, como idosos, gestantes e crianças, exatamente em respeito à aplicação concreta do princípio da isonomia.34

Depreende-se, portanto, que eventual diferenciação entre consumidores pode ser realizada tão somente em benefício do próprio consumidor. A distinção realizada pelo representante do buffet, pautada em motivos religiosos, viola o princípio da isonomia e, portanto, a garantia dada às contratantes de que o negócio seria devidamente realizado. Além disso, o disposto no artigo 6º, IV, do CDC35 proíbe a adoção de práticas abusivas por parte dos fornecedores, traçando um paralelo com a teoria do abuso de direito e cuja vedação foi positivada no artigo 187 do Código Civil. Dada a dificuldade de se versar sobre todas as práticas abusivas adotadas nas relações de consumo, o legislador optou por inserir cláusula aberta ao tratar dos direitos básicos do consumidor e abordar parte dessas práticas ao longo da lei. 32 TJ-RS. Recurso Cível: 71007478555, Relator: Elaine Maria Canto da Fonseca. Data de julgamento: 5 de setembro de 2018, Segunda Turma Recursal Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça, 12 set. 2018. 33

Art. 6º São direitos básicos do consumidor: II- a educação e divulgação sobre o consumo adequado dos produtos e serviços, asseguradas a liberdade de escolha e a igualdade nas contratações.

34

NUNES, Rizzatto. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 7. ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 217.

35

Art. 6º, IV. A proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, métodos comerciais coercitivos ou desleais, bem como contra práticas e cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos e serviços.

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Dessa forma, os arts. 39 e seguintes do CDC apresentam rol exemplificativo de algumas condutas que podem ser enquadradas como abusivas, mas o racional por trás dos dispositivos legais é justamente o de impedir a adoção de práticas que lesem o consumidor de modo geral, não estando limitadas somente às explicitamente mencionadas na lei. Ressalte-se que, também sob a ótica do CDC, as práticas abusivas são caracterizadas como ilícito civil e geram o dever de indenizar àquele que a cometeu. Sobre esse aspecto, cabe ensinamento preciso de Rizzatto Nunes: A legislação brasileira, adotando a doutrina do abuso de direito, acabou por regular uma série de ações e condutas que outrora eram tidas como meras práticas abusivas, tornando-as ilícitas. Assim, a proibição das práticas abusivas é absoluta, e o contexto normativo da lei consumerista apresenta rol exemplificativo dela nos arts. 39, 40, 41, 42 etc.36

Da narrativa da situação vivenciada pelas contratantes, inferimos que o cancelamento do aluguel do espaço foi realizado em razão de divergência religiosa, o que não possuía relação direta com o propósito do negócio. O representante do buffet indicou abertamente que o motivo do cancelamento do aluguel era a crença religiosa das contratantes e de outros indivíduos que estavam organizando o evento. Via de consequência, concluímos que este não seria o tratamento dado a outros consumidores cuja crença fosse outra, de modo que há clara diferenciação entre consumidores e efetiva prática abusiva, em ofensa ao artigo 6º, II e IV, do CDC. Assim, também sob uma perspectiva consumerista, as contratantes devem ser indenizadas.

Conclusões De todo o exposto, concluímos que: 1. Os direitos humanos devem ser observados também nas relações entre particulares, de sorte que é impossível cogitar-se da regularidade da rescisão de um contrato de locação de um espaço comercial por motivos de ordem religiosa, visto que tal conduta afronta justamente a aplicação 36

NUNES, Rizzatto. Op. cit., p. 219-220. 195

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horizontal dos direitos humanos, na medida em que consiste em ato de discriminação e intolerância. 2. Sob a perspectiva contratual, a rescisão do contrato é igualmente inadmissível no caso em exame, afinal, contratos, ainda que verbais, celebrados entre pessoas capazes, com objeto lícito e consentimento das contratantes, são considerados válidos pelo ordenamento jurídico brasileiro. Trata-se da valorização do princípio do pacta sunt servanda, ou seja, o acordado entre as partes, em um livre exercício de sua autonomia privada. 3. Justamente porque se trata de um contrato válido que vincula as partes ao cumprimento das obrigações lá pactuadas, evidenciamos que seria imprescindível não só a aplicação da cláusula geral da boa-fé, mas sua violação no caso em tela, porque o aceite do sinal e a posterior rescisão unilateral do contrato pelo representante do buffet frustrou uma legítima expectativa das contratantes e por isso constituiu um ato ilícito, encartado na máxima do nemo potest venire contra factum proprium, que deflagra o dever de indenizar. 4. À luz do Código de Defesa do Consumidor, há prática discriminatória e abusiva por parte do representante do buffet, afinal, como demonstrado, o cancelamento do aluguel do espaço foi realizado por questão de divergência religiosa, dado que as contratantes são praticantes de religião de matriz africana. Via de consequência, certo é que esse não seria o tratamento dado a outros consumidores cuja crença fosse outra, de modo que há clara diferenciação entre consumidores e efetiva prática abusiva. 5. Dessa forma, entendemos que, sob quaisquer das óticas analisadas, a conduta do locador, ao rescindir o contrato de locação do buffet invocando, para tanto, questões de cunho de ordem religiosa, desborda de um exercício regular e direito – na medida em que viola um direito humano das contratantes, o da liberdade religiosa – e atrai, portanto, o dever de indenizar pelos danos indiscutivelmente sofridos.

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6. Educação sexual em sala de aula no Brasil: a liberdade de cátedra para promoção e respeito à orientação sexual e identidade de gênero

Neste capítulo, é apresentado o memorando elaborado em setembro de 2021, originalmente em inglês, à Human Rights Watch, organização que realiza investigações sobre violações de direitos humanos em diversos países e promove o uso dos meios de comunicação para informar e sensibilizar diversos públicos.1 Analisamos o direito de acesso à educação sexual em sala de aula, no contexto em que movimentos da sociedade civil têm apresentado projetos de lei que objetivam limitar o ensino sobre gênero e sexualidade em escolas brasileiras. O memorado busca evidenciar o direito à liberdade de expressão e de cátedra à luz do direito nacional. O texto compôs uma análise comparada elaborada pela Human Rights Watch com a legislação de diferentes países acerca do tema.

Introdução Atualmente,2 existem cerca de 150 projetos de lei em tramitação ou aprovados em âmbitos municipal e estadual, além de nove projetos de lei federais que buscam coibir o que vem sendo denominado por movimentos da sociedade civil como o Escola Sem Partido (ESP) como “doutrinação política” ou “ideologia de gênero” nas escolas de ensino fundamental e médio de todo o país. O objetivo deste memorando é analisar o alcance da liberdade de expressão dos professores em sala de aula no Brasil, iniciando pela previsão contida no

1

Ana Luiza Ferré Coutinho, Beatriz Bellintani, Bianca dos Santos Waks, Bruno Simões Biscaia, Caroline Sayuri Ogata Graells, Francisca Guerreiro Andrade, Octavio Sampaio de Moura Azevedo e Victoria Cristofaro Martins Leite.

2

Levantamento realizado em setembro de 2021. 197

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ordenamento jurídico brasileiro sobre a liberdade de expressão dos professores em geral. O trabalho aponta que os projetos de lei que buscam limitar as discussões de gênero e sexualidade nas escolas conflitam com normas internacionalmente reconhecidas em relação à educação integral.3 A seção 6.2 discute três decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) que declararam inconstitucionais leis municipais que restringiam a capacidade dos professores de ensinar sobre sexualidade e diversidade de gênero. Em seguida, é feita análise sobre como outros direitos previstos na Constituição Federal podem proteger a liberdade de expressão dos professores, tais como o direito à educação, o direito à educação sexual, a proteção contra a não discriminação, o direito à saúde, dentre outros. Por fim, o memorando conclui com um apêndice que expõe questões de ordem prática sobre a modificação de currículos escolares, os efeitos da impugnação de normativos educacionais pelo STF e outras questões sobre litígio constitucional no Brasil.

6.1 Liberdade de expressão dos professores em geral A liberdade de expressão, consagrada em diversas fontes nacionais e internacionais que vinculam o Estado brasileiro, incluindo a Constituição Federal, a Convenção Americana de Direitos Humanos e o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais tem sido amplamente reconhecida como um direito fundamental. Embora os professores geralmente gozem do direito à liberdade de expressão, tal faculdade contém nuances quando aplicada na prática do ensino.

3 UNESCO. Orientação técnica internacional sobre educação em sexualidade: Uma abordagem baseada em evidências. Setor de Educação da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), 2018. Disponível em: https://www.unfpa.org/ sites/default/files/pub-pdf/ITGSE.pdf; COMITÊ DOS DIREITOS DA CRIANÇA. Comentário Geral n. 20, 2016, sobre a implementação dos direitos da criança na adolescência, UN Doc. CRC/C/GC/20 (2016) (O Comitê dos Direitos da Criança da ONU recomendou que os estados adotem “educação em saúde sexual e reprodutiva apropriada, abrangente e inclusiva, baseada em evidências científicas e padrões de direitos humanos… [Para adolescentes], [A] atenção deve ser dada à igualdade de gênero, diversidade sexual, direitos à saúde sexual e reprodutiva, paternidade responsável e comportamento sexual e prevenção da violência, bem como à prevenção de gravidez precoce e infecções sexualmente transmissíveis”); KAYE, David (relator especial para a Promoção e Proteção do Direito à Liberdade de Opinião e Expressão), Rep. de Liberdade Acadêmica, UN Doc. A/75/261, 28 jul. 2020. 198

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Educação sexual em sala de aula no Brasil

O artigo 5º da Constituição brasileira estabelece os direitos relacionados à livre expressão do pensamento4 e à liberdade de expressão.5 Esses direitos estão entre aqueles considerados direitos e garantias individuais fundamentais previstos pela Constituição, o que significa que não podem ser substituídos ou diminuídos por meio de emendas constitucionais.6 Quando exercido no âmbito escolar, o direito à liberdade de expressão está ligado ao princípio constitucional da liberdade de cátedra, que estabelece como diretrizes da educação no Brasil (1) a liberdade para aprender, ensinar, pesquisar e expressar pensamentos, arte e conhecimento, e (2) o pluralismo de ideias e conceitos pedagógicos.7 Esses princípios constitucionais são previstos na Lei nº 9.394/1996 (Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional).8 Além disso, a Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional prevê direitos adicionais que vão além do conceito constitucional de liberdade de cátedra, incluindo “o respeito à liberdade e a valorização da tolerância” e “a consideração da diversidade étnico-racial”.9 No que diz respeito ao ensino superior, o artigo 207 da Constituição garante autonomia em relação ao ensino e à ciência nas universidades, bem como nas instituições de pesquisa científica e tecnológica.10 O direito dos professores à liberdade de expressão também é garantido por instrumentos internacionais, especificamente aqueles relacionados ao Sistema

4

Art. 5º, IV, da Constituição Federal Brasileira de 1988.

5

Art. 5º, IX da Constituição Federal Brasileira de 1988.

6

Art. 60, §4º, da Constituição Federal Brasileira de 1988: “Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I - a forma federativa de Estado; II - o voto direto, secreto, universal e periódico; III - a separação dos Poderes; IV - os direitos e garantias individuais”. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ constituicaocompilado.htm.

7

Art. 206, II e III da Constituição Federal Brasileira de 1988.

8

As Diretrizes Nacionais estão estabelecidas no próprio texto da Lei nº 9.394/1996. Como tal, são considerados lei e têm o mesmo peso normativo de qualquer outra lei do ordenamento jurídico brasileiro. Essas Diretrizes Nacionais não se confundem com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), documento normativo que define o acervo de aprendizagens essenciais que todo aluno deve desenvolver ao longo de sua educação básica, ou seja, pré-escolar, fundamental e médio, no Brasil. A versão atual da BNCC está prevista na Resolução nº 2 do Conselho Pleno do Conselho Nacional de Educação (órgão do Ministério da Educação), de 22 de dezembro de 2017. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/ historico/RESOLUCAOCNE_CP222DEDEZEMBRODE2017.pdf.

9

Art. 3º, II, III, IV e XII da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996.

10

Artigo 207 da Constituição Federal Brasileira de 1988: “As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. […] §2º: O disposto neste artigo aplica-se às instituições de pesquisa científica e tecnológica”. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. 199

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Interamericano de Direitos Humanos e ao Sistema das Nações Unidas (ONU). Em dezembro de 1999, o Brasil ratificou o Protocolo Adicional à Convenção Americana de Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.11 O artigo 13 do Protocolo prevê o direito à educação, afirmando que esta deve ser direcionada para o pleno desenvolvimento da personalidade humana e da dignidade humana, bem como fortalecer o respeito aos direitos humanos, ao pluralismo ideológico, às liberdades fundamentais, à justiça e à paz.12 Quanto ao sistema da ONU, o Brasil ratificou o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP)13 e o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC)14 em julho de 1992. Em particular, o Comentário Geral nº 34 da Comissão de Direitos Humanos da ONU, que discutiu o Artigo 19 do PIDCP, afirma que o direito à liberdade de expressão inclui “a expressão e o recebimento de comunicações de toda forma de ideia e opinião capazes de transmitir a outros”, incluindo “ensino”.15 O artigo 13 do PIDESC estabelece que o direito à educação deve “reforçar o respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais e habilitar toda pessoa a desempenhar um papel útil numa sociedade livre”, bem como “promover a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e grupos raciais, étnicos ou religiosos”.16 11

Decreto nº 3.321, de 30 de dezembro de 1999.

12

Artigo 13.2 do Protocolo de San Salvador: “Os Estados Partes neste Protocolo convêm em que a educação deverá orientar-se para o pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sentido de sua dignidade e deverá fortalecer o respeito pelos direitos humanos, pelo pluralismo ideológico, pelas liberdades fundamentais, pela justiça e pela paz. Convêm, também, em que a educação deve capacitar todas as pessoas para participar efetivamente de uma sociedade democrática e pluralista, conseguir uma subsistência digna, favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e todos os grupos raciais, étnicos ou religiosos e promover as atividades em prol da manutenção da paz”. Disponível em: http://www.cidh.org/basicos/portugues/e.protocolo_de_san_salvador.htm.

13

Decreto nº 592, de 6 de julho de 1992.

14

Decreto nº 591, de 6 de julho de 1992.

15

Comentário Geral da Comissão de Direitos Humanos da ONU, n. 34, §11, 12 set. 2011. O Comentário Geral não menciona nenhum tipo específico de ensino: “Este direito inclui a expressão e o recebimento de comunicações de toda forma de ideia e opinião suscetível de transmissão a outros, observado o disposto no artigo 19, parágrafo 3º, e artigo 20. Inclui discurso político, comentários sobre assuntos próprios e públicos, angariação de votos, discussão de direitos humanos, jornalismo, expressão cultural e artística, ensino e discurso religioso”.

16

Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, 16 de dezembro de 1966, 993 UNTS 3 [doravante PIDESC], no art. 13.1: “Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de todos à educação. Eles concordam que a educação deve ser dirigida ao pleno desenvolvimento da personalidade humana e ao senso de sua dignidade, e deve reforçar o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais. Além disso,

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6.2 Direito dos professores à liberdade de expressão em relação à sexualidade e à diversidade de gênero A Constituição brasileira estabelece a educação como direito do cidadão e dever do Estado e da família. Segundo a Constituição, o objetivo da educação é “o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.17 A educação deve obedecer a certos princípios, incluindo a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e difundir ideias, bem como o de respeitar o pluralismo de ideias e os conceitos pedagógicos.18 Além disso, a Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional, que regulamenta a educação pública e privada no Brasil, estabelece que a educação também deve ser pautada pelo respeito à liberdade e pelo apreço à tolerância.19 Em 1997, o Ministério da Educação criou os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN),20 a fim de garantir a igualdade de acesso à educação no país. Os PCN buscam fornecer princípios curriculares para o ensino fundamental e médio em nível nacional, respeitando a diversidade regional, cultural e política. Especificamente no que diz respeito à educação em sexualidade, os PCN orientam as escolas a considerar noções e emoções relacionadas à sexualidade que crianças e adolescentes adquiriram por meio de suas experiências e relações pessoais e a promover a reflexão e o debate para ajudar os alunos a desenvolverem suas opiniões e fazerem suas próprias escolhas, sem impor valores ou direcionar comportamentos. Embora os PCN constituam diretrizes destinadas a ajudar os educadores por meio da padronização de alguns aspectos fundamentais relativos a cada concordam que a educação deverá permitir a todas as pessoas participar efetivamente de uma sociedade livre, promover a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e todos os grupos raciais, étnicos ou religiosos e promover as atividades das Nações Unidas para a manutenção da paz”. 17

Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

18

Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: I - igualdade de condições para o acesso e a permanência na escola; II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; III - pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino; [...].

19

BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Disponível em: http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm.

20 BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Parâmetros curriculares nacionais. 1998. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/introducao.pdf. 201

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disciplina, é permitido certo grau de flexibilidade. Os PCN não são obrigatórios e requerem implementação por meio de decisões curriculares das autoridades governamentais locais, das escolas e dos professores, portanto não impõem um modelo curricular homogêneo que se sobreponha à competência política e executiva dos estados e municípios.21 O Ministério da Educação também emitiu as Bases Nacionais Comuns Curriculares (BNCC),22 um documento que prescreve o escopo básico de conhecimentos que os estudantes em território nacional devem aprender todos os anos, independentemente de onde moram ou estudam. Ainda, a Lei Federal nº 13.005/201423 aprovou o Plano Nacional de Educação e estabeleceu metas e diretrizes para desenvolver a educação nacional na década seguinte. Uma de suas diretrizes diz respeito à redução da desigualdade educacional, com ênfase na erradicação de todas as formas de discriminação e no respeito aos direitos humanos e à diversidade. O Supremo Tribunal Federal (STF) vem analisando em várias ocasiões o alcance dos direitos constitucionais relativos à liberdade de expressão e à liberdade acadêmica, bem como os direitos estabelecidos na Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional. Em maio de 2020, o STF julgou inconstitucional uma lei municipal de Ipatinga (MG) que proibia as escolas municipais de ensinar e discutir orientação sexual e diversidade de gênero.24 Nessa oportunidade, o STF reconheceu o direito à liberdade de cátedra como um instrumento de promoção da livre difusão de ideias, com base no artigo 206 da Constituição e no artigo 3º da Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional. A Corte argumentou que “O objetivo [do artigo 206, inciso II, da Constituição] é evitar a censura e o monitoramento ideológico, pois isso acabaria por esterilizar o debate sobre questões polêmicas e relevantes que deveriam ser consideradas e discutidas entre professores e alunos para fomentar o pensamento crítico”.25 Além disso, o Tribunal afirmou que as atividades de ensino e aprendizagem 21

Cf. BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Parâmetros curriculares nacionais: Introdução aos parâmetros curriculares nacionais. 1997. Disponível em: http://portal.mec. gov.br/seb/arquivos/pdf/livro01.pdf.

22 BRASIL. Ministério da Educação. Base nacional comum curricular: educação e a base. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_ versaofinal_site.pdf. 23

BRASIL. Lei nº 13.005, de 25 de junho de 1996. Disponível em: http://www.planalto.gov. br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l13005.htm.

24 MENDES, Gilmar. Arguição de descumprimento de preceito fundamental n. 467/Minas Gerais. Supremo Tribunal Federal, 29 maio 2020. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/ paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=753189469. 25

Art. 206. Op. cit.

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devem basear-se não apenas em estudos científicos, mas também em abordagens acadêmicas e pedagógicas, de modo que deve haver autonomia e flexibilidade no desenvolvimento do conteúdo das aulas.26 Na mesma linha, em um caso julgado em agosto de 2020, o STF considerou inconstitucional uma lei promulgada pelo estado de Alagoas que proíbe “doutrinação política e ideológica” em escolas públicas.27 A lei alagoana criou um programa chamado Escola Livre para o sistema educacional do Estado, baseado na ideia de que os pais teriam o direito de proporcionar a seus filhos uma “educação moral” livre de doutrinação política, religiosa ou ideológica. Em sua decisão, o STF argumentou que, para que os alunos formem habilidades de pensamento crítico, os profissionais da educação também devem ser capazes de exercer o pensamento crítico e expor seus alunos à informação e à cultura, sem a supressão de ideias políticas ou filosóficas. Como disse o Tribunal, “não se pode esperar que uma educação adequada floresça em um ambiente acadêmico hostil, onde o professor se sente ameaçado e em risco de opinar em sala de aula”.28 Da mesma forma, em abril de 2020, o STF declarou inconstitucional uma lei de um município goiano que proibia a distribuição de materiais discutindo “ideologia de gênero” em escolas públicas.29 O Tribunal argumentou que o direito à liberdade de expressão protege tanto ideias dominantes quanto opiniões ou interpretações político-ideológicas conflitantes, “não porque sejam necessariamente válidas, mas porque são extremamente relevantes para garantir o pluralismo democrático”.30 O STF também declarou que uma democracia representativa funcional se baseia na existência de um sistema de educação pluralista que respeita o direito à liberdade de expressão, que permite a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e expressar pensamentos, arte e conhecimento, como garantido pela Constituição.31

26 Ibidem. 27

BARROSO, Luís Roberto. Ação direta de inconstitucionalidade n. 5537/Alagoas. Supremo Tribunal Federal, 24 ago. 2020. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador. jsp?docTP=TP&docID=753837203.

28

BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Op. cit.

29 MORAIS, Alexandre de. Arguição de descumprimento de preceito fundamental n. 457/Goiás. Supremo Tribunal Federal, 27 abr. 2020. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/ paginador.jsp?docTP=TP&docID=752834386. 30

Decreto n.º 3.321, de 30 de dezembro de 1999. Op. cit.

31

Artigo 13.2 do Protocolo de San Salvador. Op. cit. 203

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6.3 O direito à liberdade de expressão fora da sala de aula De acordo com a jurisprudência brasileira, a condição profissional de um indivíduo como professor não afeta seu direito à liberdade de expressão, de modo que os professores têm os mesmos direitos que os cidadãos em geral, e os limites à liberdade de expressão aplicáveis a um professor são os mesmos dentro ou fora da sala de aula. A legislação brasileira estabelece limitações gerais ao direito à liberdade de expressão, incluindo (i) calúnia;32 (ii) difamação;33 (iii) injúria;34 (iv) discurso racialmente discriminatório;35 e (v) discurso homofóbico e transfóbico.36 O artigo 26 da Lei nº 7.170/1983, conhecida como Lei de Segurança Nacional, caracteriza os crimes de calúnia e difamação como matéria de segurança nacional quando cometidos contra o Presidente da República, bem como os líderes do Senado Federal, Câmara dos Deputados e do STF, e estipula pena de um a quatro anos de reclusão.37 Geralmente, as restrições ao direito à liberdade de expressão carecem de termos claramente definidos, deixando espaço para discricionariedades. Um estudo recente do Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo (LAUT) mostra, por exemplo, que a Lei de Segurança Nacional tem sido usada como tentativa de intimidar e silenciar ideias oposicionistas no governo do presidente Jair Bolsonaro.38 Em dezembro de 2020, na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), a professora Erika Suruagy foi investigada sob o artigo 26 da Lei de Segurança Nacional em referência a um cartaz exibido na cidade do Recife, culpando o

32

Artigo 138 do Código Penal Brasileiro.

33

Artigo 139 do Código Penal Brasileiro.

34

Artigo 140 do Código Penal Brasileiro.

35

Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ Leis/L7716.htm .

36

MELLO, Celso de. Ação direta de inconstitucionalidade por omissão 26 Distrito Federal. Supremo Tribunal Federal, 13 jun. 2019. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador. jsp?docTP=TP&docID=754019240.

37

Art. 26 da Lei 7.170, de 14 de dezembro de 1989. Disponível em: http://www.planalto.gov. br/ccivil_03/LEIS/L7170.htm.

38

BERGAMO, M. Relatório diz que Lei de Segurança Nacional sob Bolsonaro é usada para calar a oposição. Folha de S. Paulo, 16 maio 2021. Disponível em: https://www1.folha.uol. com.br/colunas/monicabergamo/2021/05/relatorio-diz-que-lei-de-seguranca-nacionalsob-bolsonaro-e-usada-para-calar-a-oposicao.shtml.

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presidente Bolsonaro pelas mortes causadas pela Covid-19 no Brasil.39 A Justiça Federal de Pernambuco entendeu que o conteúdo do outdoor não ultrapassava as críticas constitucionalmente aceitáveis às autoridades políticas.40 Em outro episódio recente, o Procurador-Geral da República apresentou uma queixa-crime contra Conrado Hubner Mendes, professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. A queixa foi uma resposta às repetidas críticas de Mendes ao governo Bolsonaro e, mais especificamente, à falta de ação do Procurador-Geral em relação à gestão de Bolsonaro perante a crise sanitária do país.41 Segundo o Procurador-Geral, Mendes usou “termos que vão além da mera crítica e beiram a zombaria e a calúnia”. O Procurador-Geral também alegou que a liberdade de imprensa não é um direito absoluto, e que é proibida a publicação de críticas com intenção de difamar, insultar ou caluniar, acusando Mendes de espalhar notícias falsas e argumentando que, ao se identificar como professor universitário, teria buscado “fazer suas invenções e críticas infundadas parecerem mais sérias e verdadeiras”. Especificamente, a denúncia acusa Mendes do crime de prevaricação, que é definido como “retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal”.42 Em sua defesa, Mendes argumentou que a queixa ameaçava a liberdade de expressão ao afirmar: “o resultado, no final, é o menos importante. 39 BALTHAZAR, R. Conheça 20 atingidos por investigação de crimes da Lei de Segurança Nacional e opositores de Bolsonaro. Folha de S. Paulo, 2 maio 2021. Disponível em: https:// www1.folha.uol.com.br/poder/2021/05/conheca-20-atingidos-por-investigacoes-decrimes-da-lei-de-seguranca-nacional-e-opositores-de-bolsonaro.shtml. 40

A Lei de Segurança Nacional também foi usada para justificar a prisão e o julgamento do deputado federal Daniel Silveira em fevereiro de 2021. O deputado postou um vídeo em seus perfis nas redes sociais atacando e ameaçando os ministros do STF, além de defender a volta da ditadura militar. Ao justificar a decisão de prender o deputado, o ministro Alexandre de Moraes destacou que as palavras do deputado “atingem a honorabilidade e constituem ameaça ilegal à segurança dos ministros do Supremo Tribunal Federal, como se revestem de claro intuito visando a impedir o exercício da judicatura, notadamente a independência do Poder Judiciário e a manutenção do Estado Democrático de Direito”. O ministro Moraes também determinou que o vídeo fosse imediatamente removido das redes sociais. Esse caso demonstra como a imprecisão e a ambiguidade em torno da proteção da liberdade de expressão podem levar a restrições expansivas. Veja: MOLTA, A. Deputado do PSL é preso após divulgar vídeo com ataques a ministros do ST. UOL Notícias, 16 fev. 2021. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2021/02/16/ prisao-deputado-daniel-silveira-psl.htm.

41

TEIXEIRA, M.; LINHARES, C. Aras pede que Conselho de Ética da USP investigue professor por coluna na Folha. Folha de S. Paulo, 15 maio 2021. Disponível em: https://www1.folha.uol. com.br/poder/2021/05/aras-pede-que-conselho-de-etica-da-usp-investigue-professorpor-coluna-na-folha.shtml?origin=folha.

42

Artigo 319 do Código Penal Brasileiro. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ Decreto-lei/Del2848compilado.htm. 205

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Silenciar o alvo também é menos importante. O importante é enviar uma mensagem geral, para que outros possam ser censurados”.43 Esses casos fornecem um retrato de como os limites ao exercício da liberdade de expressão permanecem obscuros no direito brasileiro. Apesar de uma iniciativa recente do Congresso para revogar a Lei de Segurança Nacional,44 o ordenamento jurídico brasileiro ainda apresenta dispositivos que podem ser explorados e usados para censurar professores e cidadãos em geral. Com conceitos vagos e ambíguos como “honra”, “segurança nacional” e “ordem pública”, o direito brasileiro deixa a proteção do direito à liberdade de expressão ao poder discricionário do Judiciário.

6.4 Outros direitos relevantes para a proteção da liberdade de expressão dos professores Como explicado anteriormente, a liberdade de expressão dos professores deve ser entendida como parte de sua liberdade acadêmica e, portanto, diferente do direito à liberdade de expressão em si. Essa diferença decorre do fato de a liberdade de expressão dos professores ser um direito exercido no âmbito de uma atividade – a docência – que envolve intrínseca e mais diretamente outros direitos fundamentais protegidos pela Constituição, notadamente o direito à educação (artigo 6º) e o direito à informação (artigo 5º, XIV). Nesse sentido, esse direito afeta indiretamente todos os demais direitos fundamentais, pois o acesso à educação e à informação é fundamental para que as pessoas compreendam, exijam e exerçam seus direitos.

6.4.1 O Direito à educação A educação no Brasil está prevista na Constituição entre os direitos sociais, sendo obrigação do Estado ofertá-la. O artigo 22, inciso XXIV, do texto constitucional estabelece a responsabilidade do Estado em disponibilizar diretrizes e bases para a educação nacional, enquanto o artigo 205 estabelece que o objetivo

43

TEIXEIRA, M.; LINHARES, C. Op. cit.

44

RIBEIRO, M. Câmara aprova projeto que revoga a Lei de Segurança Nacional. Valor, 4 maio 2021. Disponível em: https://valor.globo.com/politica/noticia/2021/05/04/cmara-aprovatexto-base-da-nova-lei-de-segurana-nacional.ghtml.

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primordial da educação é o desenvolvimento integral do indivíduo, sua preparação para o exercício da cidadania e a qualificação para o trabalho. Conforme mencionado anteriormente, as diretrizes nacionais no Brasil incluem os PCN, que determinam o que o Estado considera fundamental para qualquer currículo educacional no país. Embora os PCN não sejam vinculantes, o direito à educação integral em sexualidade também está previsto em instrumentos vinculantes, como a Lei nº 9.394/1996. Ao fazê-lo, os PCN estabelecem limites claros sobre o que pode ser dito às crianças sobre sua sexualidade. Ainda, é proibida a discriminação contra qualquer forma de expressão de orientação sexual e estabelecido o dever de ensinar às crianças sobre sua liberdade de fazer suas próprias escolhas em relação à sexualidade. Da mesma forma, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990, ECA) faz referência à necessidade de proteção contra o abuso sexual de menores de 18 anos, conforme o artigo 130, que dispõe que “verificada a hipótese de maus-tratos, opressão ou abuso sexual impostos pelos pais ou responsável, a autoridade judiciária poderá determinar, como medida cautelar, o afastamento do agressor da moradia comum”. Essa proteção implica que crianças e adolescentes precisam estar cientes de que determinados comportamentos por parte de um dos pais ou responsável podem ser considerados abusivos, envolvendo ou não contato físico, e que devem procurar ajuda caso se deparem com isso. Se identificado, o abuso sexual pode ser legalmente enquadrado em diversos crimes, como corrupção de menores, sedução, estupro e atentado ao pudor, todos previstos no Código Penal. E isso só é possível na medida em que o sistema educacional lhes proporcione educação sexual. De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2017 e 2018 foram registrados 127.585 estupros no país, sendo que 63,8% envolveram vítimas menores de 14 anos.45 Mais recentemente, o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos publicou em 2019 dados sobre abuso sexual infantil, que mostram que em 73% dos casos acontecem nas próprias casas das vítimas crianças e adolescentes e, em 40% desses casos, o agressor é o pai ou padrasto. Os dados também mostram que meninas entre 12 e 17 anos se enquadram no perfil mais comum de vítimas (46% dos casos).46 Isso reforça o papel central do 45

Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2019. Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2019. Disponível em: https://www.forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2019/10/Anuario2019-FINAL_21.10.19.pdf.

46

Ministério divulga dados de violência sexual contra crianças e adolescentes. Governo do Brasil, 18 maio 2020. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2020-2/ maio/ministerio-divulga-dados-de-violencia-sexual-contra-criancas-e-adolescentes. 207

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Estado na educação sexual, pois as crianças podem ter sua sexualidade e dignidade sexual violadas em suas próprias casas, onde supostamente receberiam parte importante de sua educação, incluindo a sexual. A educação sexual para adolescentes também tem papel na prevenção à exposição a infecções sexualmente transmissíveis, bem como da gravidez precoce. Dados divulgados pelo Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) mostraram que o Brasil tem a sétima maior taxa de gravidez na adolescência da América do Sul, com índice de 65 gestações para cada 1.000 meninas de 15 a 19 anos.47 As discussões em sala de aula sobre planejamento familiar estão fora do escopo da Lei de Diretrizes e Bases da Educação. O artigo 226, parágrafo 7º da Constituição, no entanto, estabelece que “o planejamento familiar é uma escolha livre do casal”, devendo o Estado fornecer “recursos educacionais e científicos” para garantir o exercício desse direito. Nesse sentido, o STF entendeu que as iniciativas que proíbem discussões ou referências a gênero e sexualidade são inconstitucionais porque impõem aos alunos o desconhecimento sobre uma dimensão fundamental da experiência humana e, portanto, impedem que a educação desempenhe seu papel fundamental na formação cultural, na promoção de igualdade e na própria proteção integral garantida pela Constituição às crianças e jovens.48

6.4.2 O direito à não discriminação A Constituição afirma que promover o bem-estar de todos os cidadãos, independentemente de origem, raça, sexo, cor, idade e outras possíveis formas de discriminação, é um objetivo fundamental da República. A Lei nº 7.716/1989, por sua vez, define como crime a discriminação baseada em raça, religião e nacionalidade. Na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão 26 (ADO 26),49 o STF estendeu essa compreensão aos atos de discriminação por orientação sexual e identidade de gênero (homofobia e transfobia). 47

Brasil tem sétima maior taxa de gravidez adolescente da América do Sul, UNFPA, 19 out. 2017. Disponível em: https://brazil.unfpa.org/pt-br/news/brasil-tem-s%C3%A9tima-maiortaxa-de-gravidez-adolescente-da-am%C3%A9rica-do-sul.

48

Arguição de descumprimento de preceito fundamental n. 461/Paraná. Supremo Tribunal Federal, 24 ago. 2020. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe. asp?incidente=5204906.

49

Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão nº 26/DF. Supremo Tribunal Federal, 13 jun. 2019. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4515053.

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O Plano Nacional de Educação (PNE – Lei nº 13.005/2014),50 em seu artigo 2º, determina como uma das dez principais diretrizes do PNE a superação das desigualdades educacionais, principalmente no que diz respeito à promoção da cidadania e à erradicação de todas as formas de discriminação. Como esses direitos estão previstos em lei e são parte do programa nacional de educação, os professores não podem promover atitudes discriminatórias em relação aos alunos, tratando-os de forma diferenciada devido à sua raça ou à sua orientação sexual. Nessa linha, como os projetos de lei resultantes do Movimento Escola sem Partido sequer mencionam o termo “raça”, suas propostas referem-se a um conceito de educação que vai em sentido contrário ao disposto na Lei nº 10.639/2003,51 que inclui História e Cultura Afro-Brasileira no currículo oficial dos PCN. Os PCN preveem em seu artigo 3º, inciso XII, que a diversidade racial e étnica deve ser um princípio da educação. Ao lidar com crianças e adolescentes, abordar a importância da história e da cultura negra na sociedade brasileira é importante e necessário, tendo em vista que a educação é um elemento fundamental no combate à discriminação racial. Além disso, a liberdade de expressão dos professores também coloca em questão os direitos dos alunos à não discriminação com base em religião, gênero, orientação sexual e raça. Nesse sentido, o STF decidiu: A primeira vez que alguns jovens são identificados como afeminados ou masculinizados é na escola, onde o padrão cultural naturalizado é identificado como comportamento “normal”, e onde o comportamento divergente é rotulado como “anormal” e estigmatizado. Nesse sentido, o mero silêncio da escola nessa questão, a falta de identificação do preconceito, a falta de combate à ridicularização das identidades de gênero e orientações sexuais, ou a falta de ensino do respeito à diversidade funciona para replicar a discriminação e contribui para a consolidação da violência contra crianças LGBTQ+ […].52 50

Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ leis/2003/l10.639.htm.

51

BRASIL. Lei nº 13.005, de 25 de junho de 1996. Disponível em: http://www.planalto.gov. br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l13005.htm.

52 BARROSO, Roberto. Arguição de descumprimento de preceito fundamental n. 461/ Paraná. Supremo Tribunal Federal, 24 ago. 2020. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico. jsf?seqobjetoincidente=5204906. 209

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6.4.3 O direito dos pais de influenciar a educação de seus filhos De acordo com o ECA, a educação dos filhos é dever da família, da comunidade e do Estado (artigo 6º), portanto tanto os pais quanto o Estado são responsáveis pela educação dos filhos. O ECA também garante aos pais o direito de conhecer o processo pedagógico a que seus filhos estão submetidos, bem como de participar da definição de propostas educativas. Cabe destacar que o Protocolo de San Salvador e o PIDESC também reconhecem o papel dos pais e responsáveis legais na educação de seus filhos. O documento interamericano reconhece que “os pais devem ter o direito de escolher o tipo de educação a ser dada a seus filhos”.53 Da mesma forma, o PIDESC estabelece que os pais e responsáveis legais têm “a liberdade de assegurar a educação religiosa e moral de seus filhos de acordo com suas próprias convicções”,54 no entanto ambos os instrumentos afirmam que essa liberdade deve ser guiada e limitada por padrões mínimos de educação básica, previstos no próprio documento e na legislação interna do Estado Parte.55 É importante, entretanto, distinguir a educação formal da informal, reconhecendo a sua complementaridade. A educação formal é constituída pelo sistema educacional público e privado e está estruturada em diferentes níveis, estendendo-se desde a primeira infância até os níveis mais altos de educação, os quais devem obedecer a certas diretrizes. A educação informal

53

Artigo 13.4 do Protocolo de San Salvador: “De acordo com a legislação interna dos Estados Partes, os pais terão direito a escolher o tipo de educação a ser dada aos seus filhos, desde que esteja de acordo com os princípios enunciados acima”.

54

PIDESC, Decreto nº 591, de 6 de julho de 1992, no art. 13.3: “Os Estados Partes do presente Pacto comprometem-se a respeitar a liberdade dos pais e, quando for o caso, dos responsáveis legais de escolher para seus filhos escolas, além das estabelecidas pelas autoridades públicas, que estejam em conformidade com os padrões educacionais mínimos, podem ser estabelecidas ou aprovadas pelo Estado e assegurar a educação religiosa e moral de seus filhos de acordo com suas próprias convicções”.

55

Na Ação Direita de Inconstitucionalidade (ADI) 5.537, o Ministro Luís Roberto Barroso tratou dessa questão, mencionando o Protocolo de San Salvador. Ele declarou que os pais não podem restringir o universo informacional de seus filhos ou buscar impor limitações à escola por causa de conteúdos com os quais discordam. Segundo o Ministro Barroso, como a educação é justamente o acúmulo e o processamento de informações, conhecimentos e ideias provenientes de diferentes pontos de vista – sejam vivenciados em casa ou no contato com amigos, grupos religiosos, movimentos sociais ou na escola –, isso impediria o acesso de crianças e adolescentes a domínios inteiros da vida, violando, assim, o seu direito de aprender. BARROSO, Luís Roberto. Ação direta de inconstitucionalidade 5.537/ Alagoas. Supremo Tribunal Federal, 24 ago. 2020. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/ paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=753837203.

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vem de diferentes fontes, incluindo a família, e teoricamente não está sujeita a nenhuma orientação.56 O ensino em casa como educação formal não é permitido no Brasil, e os pais são legalmente obrigados a enviar seus filhos para escolas públicas ou privadas. O STF se pronunciou sobre essa interpretação da lei como parte da Ação Direita de Inconstitucionalidade 4.82257 e o assunto tem sido frequentemente discutido no Congresso Nacional, em razão dos projetos de lei que pretendem permitir e regulamentar o ensino domiciliar, a exemplo do Projeto de Lei nº 3.179/2012.58 A atual59 Ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos já se pronunciou a favor dessa possibilidade de ensino, declarando que o governo pode emitir uma medida provisória para permitir o ensino em casa,60 no entanto nenhuma medida foi emitida até o momento.61

6.4.4 O direito à saúde A BNCC indica como conteúdo obrigatório em relação às ciências biológicas o “estudo dos seres vivos (incluindo os seres humanos), suas características e necessidades, […] os elementos essenciais para sua manutenção e os processos evolutivos”. Outro foco da educação básica das ciências biológicas deve ser “a percepção de que o corpo humano é um todo dinâmico e articulado, e que a manutenção e o funcionamento harmonioso desse conjunto dependem da integração entre as funções específicas desempenhadas pelos diferentes sistemas que o compõem”.62 Por fim, a BNCC prevê que os aspectos relacionados à saúde devem ser entendidos “não apenas como um estado de equilíbrio dinâmico do 56 Dizemos teoricamente, já que os comportamentos discriminatórios são proibidos por lei. 57

Ministro Marco Aurélio. STF, ADI 4822/DF. 13 jun. 2020. Disponível em: https://redir.stf. jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=753837203.

58

Projeto de Lei PL 3.179/2012, Câmara dos Deputados. Disponível em: https://www.camara. leg.br/propostas-legislativas/534328#:~:text=Acrescenta%20par%C3%A1grafo%20ao%20 art.,oferta%20domiciliar%20da%20educa%C3%A7%C3%A3o%20b%C3%A1sica. Em agosto de 2021, data de revisão e preparação da publicação do presente texto, ele já havia sido aprovado na Câmara dos Deputados, mas encontrava-se aguardando apreciação pelo Senado Federal.

59

Em setembro de 2021, data de elaboração do presente texto.

60 NEVES, Rafael. Negada pelo STF, educação domiciliar será regulada pelo governo, UOL, 29 jan. 2019. Disponível em: https://congressoemfoco.uol.com.br/educacao/ negada-pelo-stf-educacao-domiciliar-sera-regulada-pelo-governo/. 61

Em agosto de 2022, data de revisão e preparação da publicação do presente texto.

62

Disponível em http://basenacionalcomum.mec.gov.br/. 211

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corpo, mas como um bem da coletividade, abrindo espaço para discutir o que é preciso para promover a saúde individual e coletiva, inclusive no âmbito das políticas públicas”. Na mesma linha, o artigo 7º do ECA afirma que “A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência”. Na interação entre o direito à saúde e o direito dos professores à liberdade de expressão, a questão principal diz respeito ao direito à educação integral em sexualidade, conforme já delineado anteriormente. Além dos aspectos da educação sexual já mencionados – como ensinar as crianças a expressar sua sexualidade livremente, ou identificar e prevenir abusos sexuais e fornecer informações sobre concepção e contracepção como parte do planejamento familiar –, a educação sexual também diz respeito a informações sobre a prevenção, consequências e tratamento de doenças sexualmente transmissíveis.

Apêndice

Educação no Brasil

Como e em que nível são decididos os currículos escolares no Brasil? A Constituição atribui competência legislativa sobre o sistema educacional à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos municípios.63 A Lei de Diretrizes e Bases da Educação, por sua vez, determina que a União deve se incumbir de elaborar o Plano Nacional de Educação, em colaboração com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, com “diretrizes e metas para os dez anos seguintes, em sintonia com a Declaração Mundial sobre Educação para Todos”.64 É o Poder Legislativo Federal, portanto, que deve estabelecer diretrizes e padrões gerais para a educação, incluindo os currículos nacionais, o que vincula os estados e municípios.

63

Art. 24, IX da Constituição Federal Brasileira de 1988.

64

Art. 87, p. 1º, da Lei nº 9.394/1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional.

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Em resumo, os currículos escolares no Brasil são predominantemente determinados pelo governo federal por meio do Ministério da Educação e podem ser complementados pelos regulamentos de cada estado ou município, que têm competência suplementar, para se adequar às suas necessidades regionais ou locais, desde que estejam em consonância às leis federais e à Constituição.

Com que frequência os currículos escolares brasileiros são revisados e por meio de que processo? O artigo 214 da Constituição estabelece um prazo de dez anos para o Plano Nacional de Educação, após o qual ele será revisto. Esse processo de revisão não seguiu, até então, um padrão estrito, especialmente porque o prazo de dez anos é uma disposição relativamente recente.65 Nesse sentido, o prazo de dez anos foi instituído em 2009, por meio da Emenda Constitucional nº 59. O artigo 214, antes dessa alteração, previa apenas um “prazo plurianual”. Após essa revisão, o Congresso Nacional discutiu o Plano Nacional de Educação para a década de 2011 a 2020. Embora sua discussão tenha começado na Câmara dos Deputados em dezembro de 2010, tramitando como Projeto de Lei nº 8.035/2010, só foi aprovado e encaminhado ao Senado Federal em outubro de 2012. O Senado Federal, por sua vez, apresentou, em janeiro de 2014, um projeto de lei substitutivo, que foi sancionado em junho de 2014 (Plano Nacional de Educação de 2014 a 2024). A BNCC66 foi aprovada apenas em dezembro de 2018. O artigo 210 da Constituição prevê que sejam estabelecidos currículos mínimos, e o PNE 2014 estabelece como meta o desenvolvimento da BNCC. Após a Conferência Nacional de Educação em 2010, o Seminário para a elaboração da BNCC em 2015 e a consulta pública em 2015 e 2016, o Ministério da Educação apresentou o documento final em 2017 e, em 2018, iniciou sua implementação nas escolas do país. Além disso, a Portaria nº 331/2018 estabeleceu o Programa para apoiar a implementação da BNCC. Atualmente,67 a BNCC ainda prevalece e não há prazo definido. Em qualquer caso, a revisão dos currículos escolares deve seguir sempre os procedimentos legislativos regulares. Geralmente começa com um projeto 65

Para mais informações sobre o PNE 2014, ver: AZEVEDO. Janete Maria Lins. Plano Nacional de Educação e Planejamento: A questão da qualidade da educação básica. Revista Retratos da Escola, Brasília, v. 8, n. 15, p. 265-280, jul./dez. 2014. Disponível em: http://retratosdaescola. emnuvens.com.br/rde/article/viewFile/441/572.

66 Para mais informações sobre a história da BNCC ver: Histórico. Base Nacional Comum Curricular. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/historico/. 67

Agosto de 2022, data de revisão para publicação deste texto. 213

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de lei apresentado pelo Poder Executivo por meio do Ministério da Educação, baseado em propostas da sociedade civil elaboradas na Conferência Nacional de Educação e no Fórum Nacional de Educação. Em seguida, o projeto é discutido e votado na Câmara dos Deputados e no Senado – durante esse processo, o Ministério da Educação pode ser obrigado a fornecer informações técnicas e estatísticas para apoiar a proposta. Por fim, se aprovado no Congresso, o projeto é enviado ao Presidente da República para sanção. Outras regulamentações podem surgir, e não há um cronograma específico para elas. Regulamentos adicionais ou outros processos de revisão são normalmente associados a mudanças no governo, já que novos governos podem desejar implementar seu próprio programa e objetivos.

Leis impugnadas

Como as leis impugnadas que objetivavam limitar o ensino de gênero e sexualidade em escolas brasileiras têm sido aplicadas na prática antes de serem declaradas inconstitucionais? Não há dados oficiais sobre como as leis impugnadas pelo STF relacionadas ao ESP foram aplicadas na prática e se elas afetaram o sistema educacional antes de serem declaradas inconstitucionais, por duas razões principais. Em primeiro lugar, a maioria dessas leis só esteve em vigor por períodos curtos e limitados.68 Em segundo lugar, tais leis geralmente continham expressões genéricas e não estipulavam consequências diretas ou efeitos práticos, do ponto de vista institucional, aos professores. Como exemplo, o artigo 162, § 5º, da Lei Orgânica do Município de Foz do Iguaçu (PR) – declarada inconstitucional na decisão da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 526 – proibiu adotar, divulgar, implementar ou organizar políticas educacionais, currículos escolares, disciplinas ou atividades culturais que apliquem os termos “ideologia de gênero”, “gênero” ou “orientação”. Um exemplo ilustrativo de movimento contra os professores foi realizado pela deputada estadual Ana Caroline Campagnolo. A deputada usou seus perfis nas redes sociais para instar os alunos a filmar seus professores e denunciá-los a um canal não governamental em caso de “manifestações político-partidárias 68

As leis impugnadas foram válidas por um período, em média, entre dois e cinco anos, com base na data de promulgação das leis e na data de sua declaração de inconstitucionalidade.

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ou ideológicas”. Vale dizer que a publicação da deputada Campagnolo foi retirada da internet após decisão judicial do ministro Edson Fachin.69;70 Além disso, a pesquisa de jurisprudência em tribunais de 2ª instância71 não apresentou resultados quanto à aplicação dos atos normativos impugnados. Consequentemente, a pesquisa indica que os efeitos dessas leis parecem ser mais retóricos, tendendo a criar um ambiente inseguro para professores, que temem ser perseguidos ou responsabilizados por atos interpretados como políticos ou imorais.

Quais regulamentações específicas para os currículos escolares foram feitas de acordo com essas leis? Conforme mencionado anteriormente, as leis contestadas careciam de especificações concretas e foram questionadas nos tribunais superiores, de modo que não foram encontrados resultados quanto aos seus efeitos concretos sobre o ensino na prática. Considerando que essas leis geralmente se concentravam na expressão de visões políticas ou da chamada “ideologia de gênero”, professores de algumas disciplinas, tais como história, no caso de apresentação de visões políticas, ou biologia, no caso de temas relacionados a gênero e sexo, ficaram mais suscetíveis

Ações constitucionais

Qual é o processo para impugnar um projeto de lei no STF? Quem tem legitimidade para fazê-lo? Em regra, não é possível ajuizar ação para impugnar um projeto de lei no STF por meio de controle judicial preventivo. No entanto, a jurisprudência do 69 STF, Ação Constitucional nº 33137/SC, Ministro Edson Fachin, data do julgamento em 10 de junho de 2019. A medida cautelar foi proferida em 8 de fevereiro de 2019. 70 Deputada aliada de Bolsonaro estimula perseguição a professores. Carta Capital, 29 out. 2018. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/politica/ aliada-de-bolsonaro-estimula-perseguicao-a-professores/. 71

A pesquisa, realizada nos sites dos tribunais estaduais, utilizou as palavras-chave “ideologia de gênero”, “orientação sexual” e o número da lei específica impugnada. Apesar de alguns sites apresentarem resultados, nenhum deles se referia à liberdade de expressão em sala de aula ou ao comportamento dos professores, motivo pelo qual não foram citados anteriormente. 215

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STF admite exceção quando se trata de violação a procedimentos legislativos formais, e somente se a ação for proposta por parlamentar no exercício de seu mandato. Nesse caso, parlamentares podem impetrar Mandado de Segurança perante o STF72 para obstruir o processo legislativo e impedir que o projeto de lei seja debatido no Congresso. Em relação ao controle constitucional das leis já em vigor (denominados “concentrado ou difuso”), a Constituição prevê dois meios principais de contestação que podem ser apresentados perante o STF:73 (i) Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI); e (ii) Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF). As ADI e ADPF podem ser apresentadas pelo Presidente da República, pelo Senado Federal, pela Câmara dos Deputados, pelo Comitê Executivo de uma Assembleia Legislativa Estadual ou pela Câmara Legislativa do Distrito Federal, pelo Governador de um Estado ou do Distrito Federal, pelo Procurador-Geral da República, pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, por um partido político representado no Congresso Nacional, por uma confederação de Estados ou por uma entidade de classe nacional – desde que respeitados determinados requisitos, de acordo com a jurisprudência do STF. Ressalta-se, no entanto, que uma ADI só pode ser impetrada contra leis federais ou estaduais promulgadas que violem a Constituição Federal. Enquanto isso, uma ADPF pode ser usada para questionar todos os tipos de atos públicos ligados a qualquer entidade federativa, desde que haja uma violação direta a preceitos fundamentais, tais como direitos fundamentais, e não haja outro mecanismo de impugnação da norma cabível.

Sob a administração do presidente Jair Bolsonaro, novos projetos de lei relacionados à agenda do ESP podem ser trazidos à prática? Não foram identificados estudos formais publicados que possam determinar a probabilidade de aumento desses casos devido ao governo Bolsonaro, no entanto há diversos registros de declarações do Presidente apoiando a agenda do ESP, bem como de outros membros de seu governo.74 72

Ministro Gilmar Mendes, MS nº 32.033/DF, Supremo Tribunal Federal, 20 jun. 2013.

73

Há também outras ações constitucionais com o objetivo de declarar uma lei como constitucional ou para declarar a ausência de lei (ou seja, o silêncio de um órgão público) como inconstitucional.

74

SALDANA, P. MEC nomeia aliado a fazer Escola sem Partido para coordenar materiais didáticos. Folha de S.Paulo, 10 mar. 2021. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2021/03/ mec-nomeia-aliada-do-escola-sem-partido-para-coordenar-materiais-didaticos.shtml;

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Em muitas ocasiões, o presidente demonstrou publicamente seu apoio à promulgação de leis e à implementação de medidas para restringir o conteúdo que os professores poderiam apresentar em salas de aula. Durante a cerimônia de posse no Congresso Nacional em 1º de janeiro de 2019, o presidente afirmou que lutaria contra a “ideologia de gênero”.75 Em maio de 2020, mesmo após o STF já ter declarado inconstitucional a Lei nº 1.516/2015 (via ADPF 457/GO), Bolsonaro anunciou que apresentaria um projeto de lei proibindo a ideologia de gênero na escola.76 Discursos públicos de ministros de Bolsonaro também reforçaram a posição do governo. Em discurso na Comissão de Educação, Cultura e Esporte do Senado Federal, o ex-ministro da Educação Ricardo Vélez Rodríguez afirmou que lutaria contra a “ideologia de gênero” e o “marxismo cultural” e não permitiria que agendas que ameaçassem os costumes tradicionais fossem impostas no Brasil.77 Damares Alves, Ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos da administração Bolsonaro, anunciou a criação de um canal do governo por meio do qual os alunos poderiam denunciar professores que infringissem a “moral, religião e ética familiar”.78 Além disso, há vários projetos de lei no Congresso Nacional relacionados à “ideologia de gênero” e ESP, a maioria deles proposta por congressistas que são apoiadores públicos do governo Bolsonaro.79 ESTADÃO CONTEÚDO. “Escola Sem Partido” já está em operação, mesmo sem lei específica, diz Bolsonaro. Istoé Dinheiro, 18 dez. 2019. Disponível em: https://www.istoedinheiro.com. br/escola-sem-partido-ja-esta-em-operacao-mesmo-sem-lei-especifica-diz-bolsonaro/. 75

“Vamos unir o povo, valorizar a família, respeitar as religiões e nossa tradição judaico-cristã, combater a ideologia de gênero, conservando nossos valores. O Brasil voltará a ser um país livre das amarras ideológicas.” Discurso do Presidente da República, Jair Bolsonaro, durante Cerimônia de Posse no Congresso Nacional, Gov.Br, 1º jan. 2019. Disponível em: https://www. gov.br/planalto/pt-br/acompanhe-o-planalto/discursos/2019/discurso-do-presidente-darepublica-jair-bolsonaro-durante-cerimonia-de-posse-no-congresso-nacional.

76

COLETTA, R. D. Após STF barrar lei municipal, Bolsonaro promete enviar projeto contra “ideologia de gênero". Folha de S.Paulo, 12 mar. 2020. Disponível em: https://www1.folha. uol.com.br/cotidiano/2020/05/apos-stf-barrar-lei-municipal-bolsonaro-promete-enviarprojeto-contra-ideologia-de-genero.shtml.

77

Ministro da Educação fala sobre ideologia de gênero e Escola sem Partido. Senado Notícias, 25 fev. 2019. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2019/02/25/ ministro-da-educacao-fala-sobre-ideologia-de-genero-e-escola-sem-partido.

78

AUGUSTO, L. Ministra diz que governo vai criar canal para denunciar professor que atente “contra a moral". Estadão, 19 nov. 2019. Disponível em: https://educacao.estadao.com.br/ noticias/geral,ministra-diz-que-governo-vai-criar-canal-para-denunciar-professor-queatente-contra-a-moral,70003095662.

79 Por exemplo, o Projeto de Lei nº 246/2019, proposto por Bia Kicis, Carla Zambelli, Luiz Philippe de Orleans e Bragança, Kim Kataguiri, Joice Hasselmann e outros, em sua maioria apoiadores do governo Bolsonaro. Além disso, o principal projeto relacionado à Escola 217

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É provável que o STF decida da mesma forma que antes? O histórico do STF em relação à ESP tem sido coerente até agora, e a Corte parece ter estabelecido uma jurisprudência consolidada para a liberdade de expressão em sala de aula. Várias decisões recentes foram contrárias a atos normativos que proíbem “ideologia de gênero” ou outros tópicos relacionados a gênero ou sexo. Em geral, o STF tem utilizado dois tipos de argumentos. O primeiro é de natureza formal, relacionado à competência da União para legislar diretrizes educacionais e respeitar o Plano Nacional de Educação. O outro é de natureza material, associado à violação de preceitos constitucionais como o da liberdade de expressão; o da igualdade e o da não discriminação, assim como o pluralismo de ideias, a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e disseminar pensamento, arte e conhecimento. Nesse sentido, nove decisões foram analisadas80 sobre os temas educação, ESP e “ideologia de gênero”, sete das quais foram proferidas em 2020 e duas em 2019. Todos, exceto um desses casos, foram julgados pelo plenário do STF, e a maioria por unanimidade.81 A ADPF 624/DF,82 proposta pela Procuradoria Geral da República com o objetivo de dirimir a controvérsia constitucional em todos os projetos e leis (federais, estaduais e municipais) relacionados ao ESP, mostra que o Ministro Celso de

Sem Partido, atualmente em discussão no Congresso Nacional, é o Projeto de Lei nº 7.180/2014, que pode ser monitorado em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/ fichadetramitacao?idProposicao=606722. 80 As decisões do STF são: ADI 5.537/AL (2020 – julgado em conjunto com as ADI 5.580 e 6.038); ADO 26/DF (2019); ADPF 457/GO (2020); ADPF 460/PR (2020); ADPF 462/SC (2019 – decisão do Ministro Edson Fachin); ADPF 465/TO (2020); ADPF 467/MG (2020); ADPF 526 (2020); e ADPF 600/PR (2020). É importante afirmar que, na ADO 26, não se discutiu a liberdade de expressão em sala de aula, mas sim a aplicação da lei contra o racismo à discriminação por orientação sexual e identidade de gênero. Na ocasião, o ministro Celso de Mello referiu-se às ações no STF sobre “ideologia de gênero”, afirmando que os estudos sobre gênero e sexualidade estavam sendo proibidos devido a posições discriminatórias. 81

As únicas decisões que não foram concedidas por unanimidade pela Corte foram a ADI 5537 e a ADO 26. Em ambos os casos, o voto contrário foi proferido pelo Ministro Marco Aurélio por questões formais. Na ADI 5.537, o ministro Aurélio argumentou que não era competência do STF analisar uma decisão política do Poder Legislativo. Da mesma forma, na ADO/26, argumenta-se que o Poder Legislativo tem competência para legislar em matéria penal, embora também tenha sido reconhecida a necessidade de proteção de grupos em situação de vulnerabilidade.

82

Ministro Celso de Mello, Supremo Tribunal Federal, ADPF nº 624/DF, data do julgamento em 29 de setembro de 2020. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/ consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqobjetoincidente=5775645.

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Mello, que não mais compõe a Corte,83 entendeu em decisão transitada em julgado que não é possível impugnar todos os projetos de lei e as leis referentes ao ESP em geral por meio de uma única ação, sob o argumento de que tal pedido seria amplo e impreciso em relação aos seus limites e também por não especificar os atos que teriam violado os direitos fundamentais.

83

Após mais de trinta anos como membro do STF, o Ministro Celso de Mello se aposentou em outubro de 2020. 219

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7. Regulação da situação migratória de venezuelanos no Brasil

Neste capítulo, apresentaremos o memorando elaborado por meio do Programa Trust Law, à organização venezuelana Un Mundo Sin Mordaza, em março de 2021.1 O documento apresenta um panorama sobre leis e procedimentos relacionados aos principais meios de regularização migratória e de obtenção de refúgio para venezuelanos no Brasil. O estudo realizado irá integrar pesquisa comparada sobre o marco legal da imigração vigente realizada também na Argentina, no Chile, na Colômbia, no Equador e no Peru referente à emigração da população venezuelana. O memorando evidencia a migração como direito humano, discorrendo sobre as variadas formas jurídicas segundo as quais um migrante pode se estabelecer no país.

Introdução De acordo com dados do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur),2 até 5 de fevereiro de 2021, existiam aproximadamente 5.478.377 migrantes, refugiados e solicitantes de refúgio venezuelanos vivendo em outros países. Ao mesmo tempo, apenas 3.409.468 desses têm ou estão a caminho de obter uma situação migratória regular.

1

Carolina Bigulim Pualon Moreno e Júlia Piazza Leite Monteiro.

2

Disponível em: https://data2.unhcr.org/en/situations/platform. Acesso em: 22 fev. 2021. 223

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O Brasil, apesar das dificuldades encontradas por conta da diferença de idioma, é um dos principais destinos desses migrantes: até outubro de 2020,3 foram recebidos 261.441 migrantes e refugiados venezuelanos,4 dos quais 145.462 obtiveram residência temporária ou permanente, 46.343 a condição de refugiados e 96.556 aguardam análise de sua solicitação de refúgio.5 Este memorando analisa, portanto, como essas pessoas se estabelecem legalmente no país. A informação sistematizada foi compilada, fundamentalmente, por meio da pesquisa em websites oficiais de leis e regulamentos da União além de dados da Cáritas Arquidiocesana de São Paulo, organização de referência na área de refúgio e migração.

7.1 Marco jurídico migratório No Brasil, a possibilidade de que um migrante se estabeleça no território nacional, além do refúgio ou permissão de residência, é regulada pela Lei nº 13.445/20176 (Lei de Migração) e o Decreto nº 9.199/2017.7

7.1.1 Requisitos gerais para iniciar um processo migratório O artigo 30 da Lei de Migração estabelece os seguintes requisitos para que uma pessoa obtenha permissão de residência: 1. que a finalidade da residência seja: pesquisa, docência ou extensão acadêmica; tratamento de saúde; recepção humanitária; estudo; trabalho; férias-trabalho; prática de atividade religiosa ou serviço voluntário;

3

Para fins de atualização dos dados quando da publicação dessa pesquisa, identificou-se que segundo o Ministério da Justiça brasileiro, até abril de 2022, havia 112.260 venezuelanos no país com autorização de residência temporária, válida por dois anos; 72.334 com residência permanente; 51.538 refugiados reconhecidos e 93.997 pedidos de asilo. Disponível em: https://www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/noticias/em-cinco-anos-brasil-recebeu-mais-de700-mil-imigrantes-venezuelanos. Acesso em: 20 jun. 2022.

4

Disponível em: https://data2.unhcr.org/en/situations/platform/location/7509. Acesso em: 2 mar. 2021.

5 Ibidem. 6

Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13445. htm. Acesso em: 19 fev. 2021.

7

Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2017/Decreto/D9199. htm. Acesso em: 19 fev. 2021.

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investimentos ou atividade com relevância econômica, social, científica, tecnológica ou cultural e/ou reunião familiar; 2. que a pessoa: seja beneficiária de um tratado sobre residência ou livre circulação; tenha uma oferta de trabalho; tenha a nacionalidade brasileira e não deseje ou não cumpra os requisitos para recuperá-la; seja beneficiária de refúgio, asilo ou proteção a apátridas; seja menor de idade de outro país ou apátrida, não acompanhada ou abandonada, e se encontre nas fronteiras brasileiras ou no território nacional; tenha sido vítima de contrabando de pessoas, trabalho escravo ou violação da lei agravada por sua condição migratória; se encontre em liberdade temporária ou cumprindo pena no Brasil ou outras hipóteses definidas por regulamento. No mesmo sentido, o Decreto nº 9.199/2017, em seu artigo 123, amplia as possibilidades estabelecendo que os migrantes podem solicitar uma permissão de residência, independentemente de sua condição migratória, sempre que se cumpram os requisitos da modalidade prevista de residência. Assim, em 2018 o Ministério da Justiça e Segurança Pública publicou a Portaria Interministerial nº 4/2018,8 que regula situações não previstas pela Lei de Migração ou pelo Decreto nº 9.199/2017 com respeito à permissão de residência. Assim, regula o procedimento para a obtenção de permissão de residência para migrantes no Brasil.

7.1.2 Requisitos especiais para iniciar um processo migratório por parte de um cidadão venezuelano ante a Polícia Federal Desde 2018, o número de venezuelanos que chegou ao Brasil tem crescido demasiadamente, e por esse motivo a cidade fronteiriça de Pacaraima recebia em torno de 500 pessoas por dia até antes da pandemia, quando as fronteiras

8

Disponível em: https://portaldeimigracao.mj.gov.br/images/portarias/PORTARIA_ INTERMINISTERIAL_N%C2%BA_4_DE_27_DE_FEVEREIRO_DE_2018_REVOGADA. pdf#:~:text=PORTARIA%20INTERMINISTERIAL%20N%C2%BA%204%2C%20DE%2027%20 DE%20FEVEREIRO,Portaria%20n%C2%BA748%2C%20de%2029%20de%20setembro%20 de%202019%29. Acesso em: 19 fev. 2021. 225

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foram fechadas.9 Em outubro de 2020,10 havia 261.441 venezuelanos vivendo no Brasil, mais do dobro que na mesma data em 2018, e a maioria busca uma solução para sua situação migratória através de permissões de residência.11 Nesse contexto, o Brasil se viu obrigado a buscar soluções legais para coordenar a recepção desse contingente de pessoas. Precisamente por isso, em 14 de março de 2018, o Ministério de Estado e o Ministério de Justiça e Segurança Pública publicaram a Portaria Interministerial nº 9/2018,12 que regulamenta a permissão de residência aos imigrantes que sejam nacionais de países fronteiriços onde o Acordo de Residência para Nacionais dos Estados Partes do Mercado Comum do Sul (Mercosul) e países associados não seja vigente, como é o caso dos venezuelanos. Nesse documento é reconhecida a vulnerabilidade especial do migrante para a obtenção de documentos, assim como é facilitada a obtenção da permissão de residência em casos especiais, que tem validade inicial de dois anos e pode ser obtida mediante o procedimento indicado no item (d).

7.1.3 Possibilidades legais para que um migrante venezuelano possa se estabelecer permanentemente no Brasil Um migrante venezuelano pode se estabelecer permanentemente no Brasil mediante uma permissão de residência permanente, dentro do prazo de noventa dias antes do vencimento do prazo de dois anos da permissão temporária, nos termos do artigo 3º da Portaria Interministerial nº 9/2018.13 Para isso, o solicitante não pode ter antecedentes criminais no Brasil e deve demonstrar ter meios de subsistência. Embora exista a obrigação legal de demostrar os meios de subsistência, é possível solicitar a isenção de tarifas, em situações em que a pessoa não possa pagar o valor sem pôr em risco seu próprio sustento. 9

Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2020-12-15/o-meu-hoje-e-o-brasil-asaga-dos-venezuelanos-que-se-tomaram-cidadaos-brasileiros.html. Acesso em: 22 fev. 2021.

10

Em abril de 2022, esse número subiu para 325.763. Disponível em https://www.gov.br/mj/ pt-br/assuntos/noticias/em-cinco-anos-brasil-recebeu-mais-de-700-mil-imigrantesvenezuelanos. Acesso em: 20 jun. 2022.

11

Disponível em: https://data2.unhcr.org/en/situations/platform/location/7509. Acesso em: 22 fev. 2021.

12

Disponível em: https://portaldeimigracao.mj.gov.br/images/portarias/PORTARIA%20 INTERMINISTERIAL%20N%C2%BA%209,%20DE%2014%20DE%20MAR%C3%87O%20 DE%202018.pdf. Acesso em: 19 fev. 2021.

13 Ibidem. 226

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7.1.4 Requisitos gerais para iniciar uma solicitação de permissão ou visto ante o Comitê Nacional de Refugiados Para obter a permissão de residência, o solicitante pode procurar qualquer unidade da Polícia Federal, com a seguinte documentação: • requerimento devidamente preenchido e o número do protocolo desse documento no website da Polícia Federal; • duas fotografias 3x4; • cédula de identidade ou passaporte; • certidão de nascimento ou casamento ou certificado consular, caso não exista afiliação no documento anterior; • certidão negativa de antecedentes criminais nos estados em que tiverem residido no Brasil nos últimos cinco anos; • declaração, sob as penas da lei, de ausência de antecedentes penais em qualquer país nos últimos cinco anos e comprovante de pagamento de tarifas,14 quando for o caso. Esses documentos podem variar de acordo com a situação de vulnerabilidade do solicitante da permissão. Caso o migrante tenha dificuldade em fazer a solicitação diretamente à Polícia Federal, recomenda-se que busque o apoio de entidades públicas ou organizações sem fins lucrativos que atuem na área de migração e refúgio. Alguns exemplos no Brasil, especialmente nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro estão listadas ao final deste memorando (Anexo I). Posteriormente, a Polícia Federal remeterá a solicitação de permissão de residência ao Departamento de Migração do Sistema de Informação Eletrônica (SEI), que, por sua vez, poderá solicitar à Polícia Federal que realize diligências adicionais e, ao solicitante, que complemente informações em um prazo de 30 dias. O Departamento de Migração tomará uma decisão, baseada nos princípios e objetivos estabelecidos no artigo 3º da Lei de Migração. É possível apresentar recurso dessa decisão, nos termos do artigo 134 do Decreto nº 9199/2017.15

14

É possível apresentar uma declaração alegando insuficiência para obter a isenção de custos.

15

Art. 134. Contra a decisão que negue permissão de residência se interporá recurso de apelação, dentro de dez dias contados a partir da data do conhecimento do imigrante, são assegurados os princípios de acusação e ampla defesa e se estabelece, subsidiariamente, o disposto na Lei n. 9.784, de 29 de janeiro de 1999. 227

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Segundo o Ministério de Justiça e Segurança Pública,16 esse é um processo que dura entre 130 e 180 dias, variando segundo o tipo e a complexidade da solicitação. Depois da autorização de residência, o migrante poderá solicitar à Polícia Federal a expedição de sua Carteira de Registro Nacional Migratório (CRNM), documento de identidade no território nacional, segundo os artigos 58 e seguintes do Decreto nº 9199/2017. Para obtê-la, o migrante deve apresentar os seguintes documentos:17 • requerimento completo no website da Polícia Federal; • uma fotografia 3x4 recente; • declaração de endereço de e-mail e outros meios de contato, acompanhada de uma cópia do comprovante de residência, cédula de identidade ou passaporte; • certidão de nascimento ou casamento ou certificado consular, quando o documento oficial de identidade não contiver dados de afiliação; • a página do Diário Oficial da União que contém a autorização de residência; e • comprovante de pagamento da taxa de R$ 204,77. São direitos dos migrantes de acordo com o tipo de permissão obtida: (i) inviolabilidade do direito à vida, liberdade, igualdade, segurança e propriedade; (ii) direitos e liberdades civis, sociais, culturais e econômicas; (iii) direito à liberdade de circulação no território nacional; (iv) direito à reagrupação familiar do migrante com seu cônjuge ou parceiro e seus filhos, familiares e dependentes; (v) medidas de proteção a vítimas e testemunhas de delitos e violações de direitos; (vi) direito a transferir fundos de suas rendas e economias para outro país, sujeito à lei aplicável; (vii) direito de reunião com fins pacíficos; (viii) direito de associação, incluída a sindicalização, para fins lícitos; 16

Disponível em: https://www.justica.gov.br/seus-direitos/migracoes/autorizacao-de-residência. Acesso em: 19 fev. 2021.

17

Disponível em: https://www.gov.br/pf/pt-br/assuntos/imigracao/registrar-se-comoestrangeiro-no-brasil/registro-com-base-em-publicacao-em-diario-oficial-da-uniao. Acesso em: 2 mar. 2021.

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(ix) acesso aos serviços de saúde pública, assistência social e seguridade social, nos termos da lei, sem discriminação por razão de nacionalidade e situação migratória; (x) amplo acesso à justiça e assistência legal completa e gratuita a quem comprovar recursos insuficientes; (xi) direito à educação pública, sem discriminação por nacionalidade e condição migratória; (xii) garantia do cumprimento das obrigações trabalhistas legais e contratuais e aplicação das normas de proteção ao trabalhador, sem discriminação por nacionalidade e situação migratória; (xiii) isenção de taxas de acordo com a Lei da Imigração, mediante declaração de insuficiência econômica; (xiv) direito de acesso à informação e garantia de confidencialidade dos dados pessoais do migrante; (xv) direito a abrir uma conta bancária; (xvi) direito a sair, permanecer e voltar a entrar no território nacional, inclusive para aguardar solicitação de permissão de residência, prorrogação de estadia ou transformação de visto em permissão de residência; (xvii) direito dos imigrantes a serem informados sobre as garantias para fins de regularização migratória.

7.2 Marco jurídico para Refugiados No Brasil, a Lei nº 9.474 de 199718 define os mecanismos para a implementação do Estatuto do Refugiado de 1951 no país, assim como seu protocolo adicional de 1967. Nesse sentido, a Lei criou o Comitê Nacional para os Refugiados (Conare),19 órgão que integra o Ministério da Justiça e tem função deliberativa, sendo o encarregado de analisar as solicitações de refúgio. Posteriormente, em 25 de maio de 2017, foi publicada a Lei nº 13.445/2017 (chamada Nova Lei da Migração), que prevê a criação de uma Política Nacional de Migrações, Refúgio e Apatridia, estabelece normas para a obtenção de 18

Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9474.htm. Acesso em: 22 fev. 2021.

19

Artigo 11 da Lei n. 9.474/1997. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/ L9474.htm. Acesso em: 22 fev. 2021. 229

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documentos de identidade por refugiados e reafirma a vigência do protocolo de refúgio como documento de identidade para solicitantes de refúgio, dentre outras previsões.

7.2.1 Requisitos gerais para iniciar uma solicitação de asilo político ou refúgio por um estrangeiro É importante salientar que, no Brasil, o asilo político não se confunde com o instituto de refúgio, que se ocupa dos fluxos massivos de populações desalojadas, enquanto o direito de asilo geralmente é concedido caso a caso. No entanto, os dois institutos podem coincidir ocasionalmente, já que cada refugiado pode solicitar asilo político de forma individual. Segundo o artigo 1º da Lei nº 9.474/1997, existem três possibilidades para uma pessoa ser reconhecida como refugiada no Brasil: (i) o indivíduo que tenha fundados temores de persecução por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas e se encontrar fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira aceitar a proteção deste país; (ii) o indivíduo que, ao não ter nacionalidade e encontrar-se fora do país onde anteriormente tinha sua residência habitual, não pode ou não queira regressar a ele, pelas circunstâncias descritas no tópico anterior; (iii) o indivíduo que, devido a uma violação grave e generalizada dos direitos humanos, tenha sido obrigado a abandonar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país.20 O asilo é uma instituição segundo a qual uma pessoa perseguida por suas opiniões políticas, situação racial ou crenças religiosas em seu país de origem pode ser protegida no Brasil. A possibilidade de asilo está prevista no artigo 4º da Constituição Federal de 1988, que situa o asilo político como um dos pilares que regem as relações internacionais do Brasil. Não existe uma lei específica para atender aos casos de asilo, que é prerrogativa do Poder Executivo, por meio 20 Essa possibilidade surge a partir da terceira conclusão da Declaração de Cartagena de 1984, que entendeu, segundo a experiência adquirida pela afluência massiva de refugiados na América Central, que é necessário incluir a violação massiva de direitos humanos como uma das possíveis vias para ser reconhecido como refugiado em um país, além dos requisitos da Convenção de 1951 e do Protocolo de 1967. Disponível em: https://www. acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BD_Legal/Instrumentos_Internacionais/ Declaracao_de_Cartagena.pdf. Acesso em: 1º mar. 2021. 230

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do Ministério da Justiça, e avaliado diretamente pela Presidência da República.21 Para receber o benefício, o solicitante de asilo não pode ter cometido um delito comum nem estar aguardando julgamento relacionado a um delito comum. Os solicitantes de asilo no Brasil que pretendam permanecer no país devem cumprir com os requisitos contidos na Resolução Normativa nº 06/1997 e a Resolução Normativa nº 91/2010 do Conselho Nacional de Migração (CNIg).

7.2.2 Requisitos especiais para iniciar uma solicitação de asilo político ou refúgio por um cidadão venezuelano Em 13 de junho de 2019, considerando a crise humanitária na Venezuela, à luz dos direitos humanos, o Conare reconheceu a aplicabilidade do conceito de grave e generalizada violação de direitos humanos às solicitações de refúgio de cidadãos venezuelanos,22 conforme estabelecido no âmbito do inciso III do artigo 1º da Lei nº 9.474/1997. Tendo em vista esse posicionamento, o processo de reconhecimento da condição de refugiado por cidadãos venezuelanos no Brasil foi facilitado, já que, a partir da situação de grave e generalizada violação de direitos humanos, o Conare passou a julgar as solicitações de refúgio com base no critério prima facie, ou seja, objetivamente, e, portanto, já não é necessário demostrar o cumprimento individual dos requisitos legais, mas simplesmente a cidadania venezuelana do solicitante. Dessa forma, os nacionais venezuelanos que não tenham como comprovar o fundado temor de perseguição, de acordo com o inciso I do artigo 1º da Lei nº 9474/1997, podem ser reconhecidos com base na terceira categoria. No entanto, a decisão não se aplica a integrantes de grupos paramilitares ou indivíduos vinculados ao governo venezuelano.23 Devido a esse entendimento, até setembro de 2020, 46.343 venezuelanos já haviam sido reconhecidos como refugiados no Brasil.

21

Guia Prático para Orientação a Estrangeiros no Brasil, Secretaria Nacional dos Direitos da Cidadania e Justiça, Departamento de Estrangeiros, do Ministério da Justiça- 1997; dados da Divisão de Atos Internacionais do Ministério das Relações Exteriores.

22

Disponível em: https://www.justica.gov.br/news/collective-nitf-content-1564080197.57/ sei_mj-8757617-estudo-de-pais-de-origem-venezuela.pdf. Acesso em: 22 fev. 2021.

23

Disponível em: http://sisconare.mj.gov.br/conare-web/refugiado/solicitante/cadastro?2. Acesso em: 22 fev. 2021. 231

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7.2.3 Procedimento para obter asilo político ou refúgio e término da solicitação Para iniciar o processo de refúgio no Brasil, o primeiro passo é fazer uma solicitação, disponível tanto a partir de um registro no Sisconare (Sistema do Conare)24 como em qualquer unidade da Polícia Federal. A seguir, é necessário preencher um formulário e apresentá-lo a uma unidade da Polícia Federal, levando todos os documentos possíveis. Depois da solicitação, a pessoa deverá receber o Protocolo de Refúgio da Polícia Federal, documento pelo qual será possível obter um Cadastro de Pessoa Física (CPF), Carteira de Trabalho e abrir uma conta bancária. Esse protocolo será válido por um ano e poderá ser renovado até que o Conare emita uma decisão final. Depois de feita a solicitação de refúgio, a Polícia Federal a remeterá ao Conare, que é o órgão responsável por decidir sobre a concessão da condição de refugiado. Por meio dos dados apresentados pelo solicitante no formulário, o Conare o contatará para programar uma entrevista, na qual se investigará a situação pela qual o indivíduo solicita refúgio ao Brasil. Também pode ocorrer uma entrevista com um representante de uma das organizações associadas, como é o caso da Cáritas. Por último, o Conare adotará uma decisão, sem data-limite para ocorrer. Caso essa decisão seja positiva, o solicitante será reconhecido como refugiado, podendo solicitar seu CRNM. Em caso de decisão negativa, poderá recorrer ao Ministério da Justiça. É importante reiterar que os venezuelanos podem optar, no Brasil, tanto pela permissão de residência (por meio da Portaria Interministerial nº 19/2021, com suas respectivas modificações) como o refúgio. Os procedimentos são independentes: enquanto a permissão de residência se concede mediante um procedimento mais simples e rápido, que, no entanto, não garante nenhuma proteção especial, o refúgio se concede mediante um procedimento mais longo e complexo, mas garante proteção internacional à pessoa. É importante considerar que depois de haver solicitado refúgio, caso a pessoa mude de opinião e solicite uma permissão de residência para, por exemplo, obter o documento de identidade mais rapidamente, a solicitação de refúgio será automaticamente arquivada.

24 Ibidem. 232

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Quanto ao asilo político, existem dois tipos no Brasil: territorial e diplomático. O territorial pode ser usado quando o solicitante se encontrar dentro dos limites territoriais do Brasil, e é uma permissão do governo brasileiro para que a pessoa possa permanecer em território nacional, estando protegida pelo país. O asilo diplomático pode ser outorgado enquanto a pessoa ainda estiver em seu país de origem, ao buscar a Embaixada ou o Consulado do país ao qual deseja solicitar asilo. Caso seja aceito, o exilado “viverá” na Embaixada ou Consulado de outro país, ficando, assim, protegido de qualquer perseguição.

7.2.4 Comentários sobre possíveis modificações normativas ou projetos promovidos por organizações públicas ou privadas O fluxo migratório em direção ao Brasil tem aumentado exponencialmente desde 2018, de modo que o país, atualmente, é o segundo país que mais recebe refugiados venezuelanos em todo o mundo.25 Nesse contexto, o Brasil se viu obrigado a tomar medidas para gerir esse fluxo migratório, e o fez de duas formas que são consideradas avanços importantes em termos de direitos de migrantes e refugiados. O primeiro mecanismo foi a facilitação da obtenção da permissão de residência para os migrantes venezuelanos, por meio da Portaria Interministerial nº 9/2018. Além disso, por meio da Nota Técnica nº 3/2019 do Conare,26 o país reconheceu a situação de grave e generalizada violação dos direitos humanos na Venezuela. Na mesma linha, em 5 de dezembro de 201927 o órgão adotou, pela primeira vez, o critério prima facie dos refugiados, reconhecendo a condição de 21.432 venezuelanos.28 Desde então, o processo de obtenção de refúgio ficou facilitado e acelerado, já que os venezuelanos não precisam mais passar pela fase subjetiva da análise, que é a entrevista pessoal. Devido à situação da pandemia da Covid-19, o Ministério de Justiça e Segurança Pública publicou a Portaria DIREX/PF nº 18 de outubro de 2020, que 25

Disponível em: https://data2.unhcr.org/en/situations/platform. Acesso em: 22 fev. 2021.

26

Disponível em: https://www.justica.gov.br/news/collective-nitf-content-1564080197.57/ sei_mj-8757617-estudo-de-pais-de-origem-venezuela.pdf. Acesso em: 1º mar. 2021.

27

Disponível em: https://www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/seus-direitos/refugio/refugio-emnumeros-e-publicacoes/capa. Acesso em: 1º mar. 2021.

28 Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/decisao-n-1-de-13-de-fevereirode-2020-243320868. Acesso em: 1º mar. 2021. 233

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prevê o retorno do curso dos prazos migratórios no âmbito da Polícia Federal. Como exemplo de uma das mudanças, o artigo 2º da Portaria previu a extensão do período de vigência dos documentos emitidos pela Polícia Federal relacionados com a regularização migratória de 16 de março de 2020 a 16 de março de 2021.29 Também é importante destacar a Operação Acolhida – projeto de interiorização dos migrantes venezuelanos que chegam ao Brasil, coordenado pelo Acnur,30 em colaboração com o governo federal e diversas organizações da sociedade civil. Até fevereiro de 2021, 47.949 migrantes e refugiados venezuelanos foram interiorizados,31 o que possibilita a melhor distribuição dessas pessoas no país, assim como a busca de melhores condições de vida e a continuidade do acesso aos serviços de assistência social e saúde. Também cabe mencionar os projetos de integração dos migrantes ao mercado de trabalho, como a Migraflix,32 uma plataforma que utiliza o empreendimento cultural para conectar os migrantes com as empresas. Alguns dos serviços que a plataforma oferece incluem oficinas culturais, palestras motivacionais e catering cultural. Outro exemplo de integração ao mercado de trabalho é a Empresas com Refugiados,33 que estrutura modalidades de formação profissional em funções de interesse do setor privado e conforme as peculiaridades da formação dos migrantes. Vale mencionar a organização Refúgio 343,34 que aciona um sistema de empresas e pessoas para uma melhor recepção dos migrantes no interior do país. De outra parte, contrariamente à postura adotada nos últimos anos ante a recepção de migrantes e de suas obrigações internacionais, em 12 de fevereiro de 2021 o Ministério de Justiça e Segurança Pública brasileiro publicou a Portaria nº 62,35 na qual autorizou o uso da Força Nacional de Segurança Pública nas atividades de bloqueio à entrada de estrangeiros entre fevereiro e abril de 2021. A publicação dessa portaria possibilita a deportação sumária, até então proibida no Brasil. Na prática, de acordo com os dados coletados pela Cáritas 29 Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-18-direx/pf-de-19-deoutubro-de-2020-283995940. Acesso em: 2 mar. 2021. 30

Disponível em: https://help.unhcr.org/brazil/programa-de-interiorizacao/. Acesso em: 22 fev. 2021.

31

Disponível em: https://www.gov.br/acolhida/. Acesso em: 22 fev. 2021.

32

Disponível em: https://www.migraflix.com.br/. Acesso em: 2 mar. 2021.

33

Disponível em: https://www.empresascomrefugiados.com.br/sobre. Acesso em: 2 mar. 2021.

34

Disponível em: https://refugio343.org/sobre-nos/. Acesso em: 2 mar. 2021.

35

Disponível em: http://www.sinj.df.gov.br/sinj/Norma/119abd023ec34f6fb3ff370e21dbf555/ see_prt_62_2021.html. Acesso em: 1º mar. 2021.

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Arquidiocesana de São Paulo, em seu trabalho com refugiados e migrantes, quando a Polícia Federal toma conhecimento de situações de ingresso ao país depois do fechamento das fronteiras, notifica à pessoa exigindo sua saída espontânea dentro de sessenta dias, sob pena de multa diária de R$ 100,00, podendo chegar a até R$ 10.000,00. Segundo informações obtidas junto à Cáritas, a Polícia Federal não está autorizando a regularização migratória nem a solicitação de refúgio a pessoas que ingressaram no território nacional depois do fechamento das fronteiras devido à pandemia. Com isso, o número de indocumentados na pandemia cresceu exponencialmente, porém, em 24 de junho de 2021, foi publicada a Portaria nº 65536 da Casa Civil, que estabeleceu a restrição excepcional e temporária à entrada de estrangeiros no país. A regulamentação garante a regularização migratória para aquelas pessoas em situação de vulnerabilidade causada pelo agravamento da crise humanitária em seu país de origem, como é o caso dos cidadãos venezuelanos, conforme disposto no artigo 4º, inciso IV e parágrafo único do diploma. Além disso, o parágrafo único do artigo 4º da Portaria estabelece que a possibilidade de regularização migratória também se aplica ao imigrante que ingressou no território nacional entre 18 de março de 2020 e a data de publicação da Portaria.

Anexo I

Contatos das principais entidades brasileiras relacionadas com migração e refúgio

Acnur • Telefone: +55 11 3101-2921

36

Tal portaria deixou de vigorar, porém, em 1º de abril de 2022, a Presidência da República e a Casa Civil publicaram a Portaria Interministerial nº 670, que permite a entrada de estrangeiros no país, desde que vacinados contra a Covid-19. Disponível em: https://www.in.gov. br/en/web/dou/-/portaria-interministerial-n-670-de-1-de-abril-de-2022-390351794. Acesso em: 20 jun. 2022. 235

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• E-mail: [email protected] • Endereço: Largo Pátio do Colégio, nº 148 – Centro Histórico – São Paulo – SP • Horário de atendimento: não informado

Cáritas Arquidiocesana de São Paulo • Telefone: +55 11 4890-0350 ou +55 11 4873-6363 • Email: [email protected]. br • Endereço: Rua José Bonifácio, nº 107 – 2º piso – Centro – São Paulo – SP • Horário de atendimento: Segunda a Sexta das 8h30 às 17h30

Cáritas Arquidiocesana do Rio de Janeiro • Telefone: +55 21 2567-4105 ou +55 11 98463-6504 (WhatsApp) • Email: [email protected] • Endereço: Rua São Francisco Xavier, nº 483 – Maracanã – Rio de Janeiro – RJ • Horário de atendimento: Segunda: 9h30 às 12h30 e 13h30 às 16h30; Quarta: não há; Quinta: 9h30 às 12h30 e 13h30 às 16h30; Sexta: 13h30 às 16h30

Centro referência atendimento para imigrantes (CRAI) • Telefone: +55 11 2361-3780 +55 11 2361-5069 • Email: [email protected] • Endereço: R. Maj. Diogo, 834 – Bela Vista – São Paulo – SP – 01324-001 • Horário de atendimento: Segunda a Sexta: 8h30 às 18h

Defensoria Pública da União (DPU-SP) • Telefone: +55 11 3627-3450 +55 11 98664-0727+55 11 99177-7901 • Email: [email protected] • Endereço: Rua Teixeira da Silva, nº 217 – Paraíso – São Paulo – SP – 04002-030 236

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• Horário de atendimento: Segunda a Sexta: 8h às 14h

Defensoria Pública da União (DPU-RJ) • Telefone: +55 21 99329-1178 +55 21 99210-4294 • Email: [email protected] • Endereço: Rua Uruguaiana, nº 174 – Centro – Rio de Janeiro – RJ – 20050-092 • Horário de atendimento: Segunda a Sexta: 8h às 20h

Defensoria Pública da União (DPU-RR) • Telefone: +55 95 3212-3000 +55 95 981270013 • Email: [email protected] • Endereço: Avenida Nossa Senhora da Consolata, nº 613 – Centro – Boa Vista – RR – 69301-011 • Horário de atendimento: Segunda a Quinta: 8h30 às 11h30 e 13h30 às 16h

Missão Paz • Telefone: +55 11 3340.6966 • Email: [email protected] • Endereço: Rua Glicério, nº 225 – Liberdade – São Paulo – SP • Horário de atendimento: Segunda e Quinta: 9h às 12h e 13h30 às 16h30

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Trabalho Digno e Enfrentamento à Violência no Campo

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8. O instituto da desapropriação em casos de trabalho análogo à escravidão e de propriedades localizadas em unidades de conservação

Neste capítulo, apresentaremos o memorando elaborado ao Centro pela Justiça e Direito Internacional (Cejil) em novembro de 2020.1 O texto contribuiu com o trabalho do Cejil perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos no Caso da Fazenda Boa-Fé Caru, no Estado do Maranhão, que tratou da prática de trabalho escravo e degradação ambiental. O memorando evidencia a necessidade de intervenção estatal quando da verificação de trabalho análogo à escravidão como medida necessária de proteção aos direitos humanos, como a expropriação de imóvel em que a prática for identificada.

8.1 Desapropriação em casos de prática de trabalho análogo à escravidão: a possibilidade de expropriação de imóvel em razão de trabalho escravo possui principal embasamento nos artigos 184 e 243 da Constituição Federal O trabalho em condições análogas à de escravo, por afrontar direitos fundamentais, permite a intervenção estatal com o objetivo de impedir e reprimir qualquer atuação que viole tais direitos. Nesse sentido, o artigo 243 da Constituição Federal (CF) prevê que as propriedades rurais e urbanas de qualquer região do país onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração

1

Anna Carolina Gandolfi, Bianca dos Santos Waks, Giovanna Rodrigues Cavalari, Janaína Vargas, Julia Piazza Leite Monteiro, Juliana Gomes Ramalho Monteiro, Marilia Lofrano, Marina Dutra, Nathane da Franca e Tábata Boccanera Guerra de Oliveira. 241

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de trabalho escravo na forma da lei serão expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei, observado, no que couber, o disposto no art. 5º.

No âmbito da Justiça do Trabalho, não foram identificados julgados que determinem diretamente a expropriação do imóvel pela exploração do trabalho análogo à escravidão, justamente por fugir de sua competência. Na jurisprudência, é possível identificar ações civis públicas2 ajuizadas pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) com o pedido de notificação da União, visando à expropriação por interesse social, para fins de reforma agrária do imóvel, em que foi constatado o trabalho em condição análoga à de escravo. Nesses casos, o reconhecimento do trabalho em condições análogas à de escravo permite que a Justiça do Trabalho notifique a União para tomar providências nesse sentido.

8.2 Desapropriação em casos de propriedades localizadas em Unidades de Conservação Em relação ao instituto da desapropriação em Unidade de Conservação (UC), indicamos a legislação aplicável e a jurisprudência relacionada a cada questionamento que nos foi apresentado pelo Centro pela Justiça e o Direito Internacional.

8.2.1 Como funciona o procedimento de desapropriação em propriedades em Unidades de Conservação (UC)?

Legislação aplicável O instituto da desapropriação se trata de um procedimento de natureza administrativa no qual o Poder Público, por meio de declaração de necessidade pública, utilidade pública ou interesse social, impõe ao proprietário a perda de um bem mediante uma indenização justa. Para que a indenização seja justa, esta deve corresponder ao valor real do bem desapropriado, de modo que o até então proprietário não seja lesado em seu patrimônio (artigo 5º, inciso XXIV da CF). 2

Ação Civil Pública n.º 0000450-57.2017.5.23.0041 e Ação Civil Pública n.º 0010274-94.2020.5.03.0072.

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No caso em apreço, o Decreto 95.614/1988 declarou o imóvel como Reserva Biológica do Gurupi e, portanto, imóvel de utilidade pública para fins de desapropriação. Anos mais tarde, a Lei 9.985/2000 apontou, dentre outras categorias, as Reservas Biológicas como sendo uma UC e determinou em seu artigo 10, §1º, que as áreas particulares, incluídas nos limites das Reservas Biológicas serão desapropriadas. No caso da Reserva Biológica do Gurupi, esta foi declarada como de utilidade pública para fins de desapropriação, e por esta razão a lei aplicável seria o Decreto 3.365/41, que regula as desapropriações por utilidade pública. Nos termos do artigo 10-A do referido Decreto, tem-se que o procedimento seguiria as seguintes etapas: Art. 10-A. O poder público deverá notificar o proprietário e apresentar-lhe oferta de indenização § 1º A notificação de que trata o caput deste artigo conterá: I - cópia do ato de declaração de utilidade pública; II - planta ou descrição dos bens e suas confrontações; III - valor da oferta; IV - informação de que o prazo para aceitar ou rejeitar a oferta é de 15 (quinze) dias e de que o silêncio será considerado rejeição; V - (VETADO). § 2º Aceita a oferta e realizado o pagamento, será lavrado acordo, o qual será título hábil para a transcrição no registro de imóveis. § 3º Rejeitada a oferta, ou transcorrido o prazo sem manifestação, o poder público procederá na forma dos arts. 11 e seguintes deste Decreto-Lei.

Importante mencionar outra normativa que regulamenta desapropriação em UC federais. A IN ICMBio 4/2020 (Instrução Normativa Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) estabelece procedimentos técnicos e administrativos para a indenização de benfeitorias em referidas UC de posse e domínio público. Nos termos de seu artigo 3º, o processo administrativo deverá ser instaurado de ofício ou a pedido do interessado, tramitará em nome do ocupante ou título do domínio e, nos termos do artigo 4º, englobará as seguintes etapas: (i) Instauração do processo; (ii) Verificação dos limites e categoria da Unidade de Conservação; (iii) Inclusão do(s) imóvel(is) na malha fundiária; (iv) Análise técnica documental (cadeia dominial); 243

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(v) Avaliação do imóvel e/ou das benfeitorias; (vi) Provisionamento de recursos financeiros para a indenização; (vii) Análise jurídica; (viii) Notificação do interessado sobre os valores da indenização administrativa amigável, em conformidade com os limites e categoria da Unidade de Conservação; (ix) Abertura de prazo recursal para contestação dos valores da avaliação do imóvel e/ou das benfeitorias, bem como os limites e categoria da Unidade de Conservação; (x) Elaboração do Parecer Técnico e Nota Técnica; (xi) Homologação do processo pelo Presidente do ICMBio; (xii) Pagamento da indenização administrativa ou proposição de ação judicial. Cumpre mencionar posicionamento que, na eventualidade de a Reserva Biológica do Gurupi não pertencer a um particular, mas se tratar de uma terra devoluta, ou seja, pertencente ao domínio público de qualquer das entidades estatais, porém não utilizadas pelo Poder Público, não seria possível a desapropriação, uma vez que, de acordo com o II do artigo 20 da Constituição Federal, terras devolutas, indispensáveis à preservação ambiental, são bens da União e, portanto, não são passíveis de desapropriação.

Jurisprudência Jurisprudência relacionada ao procedimento de desapropriação em Unidades de Conservação: DIREITO AMBIENTAL. CRIAÇÃO DE UNIDADE DE CONSERVAÇÃO. PARQUE NACIONAL DA ILHA GRANDE. DESAPROPRIAÇÃO DE ÁREAS PARTICULARES. OMISSÃO DO PODER PÚBLICO. EFEITOS DO ARTIGO 10 DO DECRETO-LEI 3.365/41 [...] 6- Já na perspectiva do direito administrativo, temos necessidade de praticar atos administrativos relacionados à implantação efetiva da unidade de conservação e sua consolidação enquanto órgão de gestão administrativa e organização do serviço público respectivo. São as medidas administrativas necessárias para que a unidade de conservação efetivamente saia do “papel” e se concretize na realidade, o que acontece a partir da atuação da administração no sentido de, por exemplo: (a) 244

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vincular à unidade de conservação as áreas públicas nela incluídas e necessárias para cumprimento de sua função ecológica ou ambiental; (b) elaborar e aprovar plano de manejo da área da unidade e do seu entorno; (c) desapropriar e indenizar os particulares e as populações tradicionais atingidas pela implantação da unidade de conservação. Esses atos não dependem apenas da Lei 9.985/00 e do direito ambiental, mas se submetem às regras do direito administrativo, especialmente quanto à expropriação forçada por utilidade pública prevista no DL 3.365/41, inclusive quanto ao prazo de caducidade previsto no seu artigo 10. 7- Portanto, eventual caducidade do decreto executivo não interfere sobre a criação da unidade de conservação, mas apenas sobre a respectiva expropriação forçada (desapropriação) (TRF-4. Segunda Seção. Embargos Infringentes nº 5006083-61.2011.404.7000. Relator Desembargador Candido Alfredo Silva Leal Junior. J. 10/04/2014).

8.2.2 O art. 4 do Decreto 95.614/1988, ao estabelecer as terras da Reserva Biológica do Gurupi como de utilidade pública para fins de desapropriação, requer obrigatoriamente que exista a desapropriação de imóveis privados no local e em que condições?

Legislação aplicável O Decreto nº 95.614/1988, em seu artigo 4º, declara que as áreas dentro dos limites são de utilidade pública e estabelece que o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal “fica autorizado a promover a desapropriação das referidas áreas de terras e das benfeitorias nelas existentes, na forma da legislação em vigor”. Diante disso, nos termos do referido Decreto, não havia obrigação em se proceder à desapropriação.

Jurisprudência Jurisprudência que reconhece que, com o Decreto nº 95.614/1988, imóveis particulares inseridos na Reserva Biológica do Gurupi podem ser objeto de desapropriação e indenização: 245

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ADMINISTRATIVO, PROCESSUAL CIVIL. DESAPROPRIAÇÃO INDIRETA. FLORESTA NACIONAL. DECRETOS 51.026/1961. RESERVA BIOLÓGICA DO GURUPI. DECRETO 95.614/1988. LEGITIMIDADE PASSIVA DO IBAMA. PRESCRIÇÃO: INOCORRÊNCIA. 1. Em conformidade com o Decreto 95.614/1988, que criou a Reserva Biológica do Gurupi, a atribuição legal para adotar as medidas necessárias para a implantação e controle da referida unidade de conservação, bem como para a promoção da desapropriação das terras inseridas dentro dos limites da reserva ecológica, era do IBDF, e atualmente é do IBAMA, que lhe sucedeu no exercício da defesa do meio ambiente, portanto, sendo o IBAMA uma autarquia federal com personalidade jurídica própria, pode ser demandando em juízo. Sendo assim, deve ser incluído no polo passivo da lide. 2. Entre a publicação do Decreto 95.614 (12/01/1988) e a propositura da ação (11/01/2008) não transcorreu o lapso vintenário, levando a concluir pela inocorrência da prescrição na espécie.3 O Decreto 50.026/61, que criou a Reserva Florestal do Gurupi, não afetou o direto de propriedade dos autores. Somente com a criação da Reserva Biológica do Gurupi pelo Decreto 95.614/1998, de 12 de janeiro de 1988, é que houve perda dos imóveis particulares inseridos no perímetro da Reserva, surgindo daí a obrigação de indenizar. 4. Agravo de instrumento parcialmente provido para determinar a inclusão do IBAMA no polo passivo da demanda (TRF-1. Terceira Turma. Agravo de Instrumento nº 003705002.2017.4.01.000. Desembargador Federal Ney Bello. J. em 21/11/2017).

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Artigo 2º, Lei do Snuc: “I - unidade de conservação: espaço territorial e seus recursos ambientais, incluindo as águas jurisdicionais, com características naturais relevantes, legalmente instituído pelo Poder Público, com objetivos de conservação e limites definidos, sob regime especial de administração, ao qual se aplicam garantias adequadas de proteção; [...] Artigo 7º: § 1o O objetivo básico das Unidades de Proteção Integral é preservar a natureza, sendo admitido apenas o uso indireto dos seus recursos naturais, com exceção dos casos previstos nesta Lei”.

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8.2.3 Qual a consequência do art. 10.1 da Lei 9.985/2000, o qual estabelece que as propriedades particulares em Reservas Biológicas deveriam ser desapropriadas, para a Reserva Biológica do Gurupi?

Legislação aplicável Nos termos do artigo 10 da Lei Federal nº 9.985/2000 (Lei do Snuc – Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza), a Reserva Biológica do Gurupi está inserida na categoria de Unidade de Proteção Integral, e, por meio do seu artigo 10, §1º, foi determinado que imóveis particulares em Reservas Biológicas seriam entendidos como de utilidade pública. Por sua vez, o artigo 10 do Decreto 3.365/41 dispõe o quanto segue sobre desapropriações por utilidade pública: Art. 10. A desapropriação deverá efetivar-se mediante acordo ou intentar-se judicialmente, dentro de cinco anos, contados da data da expedição do respectivo decreto e findos os quais este caducará.

Nesse sentido, há posicionamento de que o fato de a área estar localizada em uma UC não afasta a aplicabilidade da caducidade prevista no artigo 10, do Decreto 3.365/41, sem qualquer prejuízo à criação da UC. A omissão do administrador em não ter procedido à desapropriação da Reserva Biológica do Gurupi não enseja a extinção da UC, embora haja caducidade da declaração de utilidade pública para fins de desapropriação. Há, ainda, entendimento que aponta para a impossibilidade de desapropriação em UC na eventualidade de esta estar inserida em terras devolutas, uma vez que, de acordo com o inciso II do artigo 20 da CF, terras devolutas indispensáveis à preservação ambiental são bens da União. Por sua vez, o Ministério Público Federal (MPF) e o ICMBio entendem que o referido prazo de caducidade de cinco anos não se aplica ao tratarmos de UC, uma vez que, para tais órgãos, as restrições à propriedade advêm de legislação ambiental, perdurando no tempo.

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Jurisprudência Jurisprudência que reconhece a obrigatoriedade de desapropriação nos termos da Lei do Snuc: CONSTITUCIONAL.

ADMINISTR ATIVO.

PROCESSUAL

CIVIL.

LEGITIMIDADE PASSIVA DA UNIÃO. PARQUE NACIONAL DA SERRA DO ITAJAÍ. DESAPROPRIAÇÃO INDIRETA. DESAPOSSAMENTO ADMINISTRATIVO. ESVAZIAMENTO ECONÔMICO DA PROPRIEDADE. INDENIZAÇÃO DEVIDA. JUROS MORATÓRIOS E COMPENSATÓRIOS. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. SISTEMÁTICA DE PAGAMENTO. LEI 9.985/2000. DL 3.365/41. – [...] O Parque Nacional da Serra do Itajaí foi criado pelo Decreto s/nº, de 04/06/2004, para preservar amostra representativa do bioma Mata Atlântica, tratando-se de área de preservação ambiental, insuscetível de ocupação ou exploração econômica. Apesar de o decreto de criação da referida unidade de conservação ter declarado como de utilidade pública, para fins de desapropriação, diversos imóveis situados nos limites do parque, não houve, por parte do Poder Público, o pagamento de indenização aos respectivos proprietários, a despeito do reconhecimento administrativo deste Direito. A Lei nº 9.985/2000, que trata do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), enquadra os Parques Nacionais na categoria de Unidade de Proteção Integral, com posse e domínio públicos, afirmando a necessidade de que as áreas privadas, abrangidas nos limites dos Parques, sejam desapropriadas. Ademais, a implantação do parque implicou vedação à exploração econômica no prazo máximo de dois anos contados da publicação do decreto. Sendo assim, tendo havido não apenas expedição de decreto de desapropriação sem efetiva concretização, mas também criação e implantação de unidade de conservação, com comprometimento dos direitos de uso e gozo, esvaziando economicamente a propriedade, deve ser assegurado o direito à indenização. Consoante precedentes do Superior Tribunal de Justiça, cabível indenização por desapropriação indireta nas situações em que as restrições à utilização do imóvel, impostas pelo Poder Público, no interesse da proteção ambiental, impliquem o aniquilamento da possibilidade de exploração econômica do bem [...] (TRF-4. Terceira

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Turma. Apelação nº 5008216-72.2013.4.04.7205. Relator Desembargador Ricardo Teixeira Do Valle Pereira. J. em 21/06/2016).

Jurisprudência que entende pela caducidade do Decreto de Utilidade Pública para fins de desapropriação em UC: EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. DIREITO ADMINISTRATIVO. DECLARAÇÃO DE UTILIDADE PÚBLICA PARA CRIAÇÃO DE PARQUE ECOLÓGICO. CADUCIDADE. DESAPROPRIAÇÃO INDIRETA. REQUISITOS. INCABIMENTO. REDUÇÃO DO DOMÍNIO ÚTIL E DO VALOR ECONÔMICO. INOCORRÊNCIA. LIMITAÇÕES IMPOSTAS PELO CÓDIGO FLORESTAL. 1. Passado o prazo de cinco anos sem que o Poder Público tenha efetivado o ato expropriatório ou praticado qualquer esbulho possessório, resulta inequivocamente caduco o ato declaratório de utilidade pública por força do artigo 10 do Decreto-Lei nº 3.365, de 21 de junho de 1941 (REsp. nº 191.656, 2ª Turma, rel. min. João Otávio Noronha, DJE 27.02.2009). AMBIENTAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. PARQUE NACIONAL DA SERRA DA CANASTRA. UNIDADE DE CONSERVAÇÃO FEDERAL DE PROTEÇÃO INTEGRAL. CRIAÇÃO. DECRETO Nº 70.355/1972. DECRETO-LEI 3.365/1941, ART. 10. DESAPROPRIAÇÃO DE PARTE DA ÁREA. NÃO OCORRÊNCIA. CADUCIDADE. I - Sobre a criação de unidade de conservação de proteção integral, o art. 22 da Lei 9.985/2000 dispõe que “As unidades de conservação são criadas por ato do Poder Público”. II - Regulamentando tal dispositivo, o art. 2º do Decreto 4.340/2002 assim preceitua que o ato de criação de uma unidade de conservação deve indicar, dentre outros, a área da unidade e as atividades econômicas. III - “O Parque Nacional é de posse e domínio públicos, sendo que as áreas particulares incluídas em seus limites serão desapropriadas, de acordo com o que dispõe a lei” (§ 1º do art. 11 da Lei 9.985/2000). IV - O Parque Nacional da Serra da Canastra foi criado pelo Decreto 70.355/1972, com área estimada de 200.000,00ha., somente foram efetivamente desapropriados 71.525ha, e a área objeto das atividades minerárias estaria incluída nos limites dos 200.000ha previstos no Decreto 70.355/1972, contudo até o momento não foi objeto de desapropriação. 249

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V - Argumento do Ministério Público Federal de que o DNPM não poderia ter concedido os títulos minerários e o ICMBio não poderia ter formalizado o TAC, pois o fato de a área em questão ainda não ter sido objeto de desapropriação não autoriza a prática de atividades degradantes ao meio ambiente, pois a criação de unidade de conservação prescinde de qualquer outro requisito, mesmo de desapropriação, ou seja, uma vez editado o decreto criação, não mais é possível a prática de atividades danosas ao meio ambiente, ainda que não tenha ocorrido a desapropriação da área. VI - O eg. STJ concluiu pela aplicabilidade do prazo decadencial de 05 anos previsto no art. 10 do Decreto-lei 3.365/1941. VII - “Passado o prazo de cinco anos sem que o Poder Público tenha efetivado o ato expropriatório ou praticado qualquer esbulho possessório, resulta inequivocamente caduco o ato declaratório de utilidade pública por força do artigo 10 do Decreto-Lei nº 3.365, de 21 de junho de 1941”. VIII - Apesar de o STJ entender cabível a aplicação, por analogia, do art. 19 da Lei 4.717/65 às ações civis públicas (ex. REsp 1.108.542/SC), apenas o faz quando versam sobre proteção ao patrimônio público (a título de exemplo, ACP por ato de improbidade ou ressarcimento ao erário, hipótese diversa da dos autos). Não há que se falar, pois, em remessa oficial tida por interposta. IX - Recurso de apelação a que se nega provimento (TRF-1-AC: 00012015220074013804, Relator: DESEMBARGADOR FEDERAL JIRAIR ARAMMEGUERIAN, Data de Julgamento: 02/05/2016, SEXTA TURMA, Data de Publicação: 11/05/2016). PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. ÁREAS DE UNIDADE DE CONSERVAÇÃO. DESAPROPRIAÇÃO POR UTILIDADE PÚBLICA. A apuração da concretização de atos e medidas preparatórios ao procedimento de desapropriação constitui questão que demanda produção de provas, o que não se coaduna com a via estreita do agravo de instrumento; 4- Demais disso, não colhe o argumento do agravante de que os decretos expropriatórios de áreas inseridas em unidades de conservação não se submeteriam ao prazo de caducidade de 5 anos, porquanto é evidente a obediência devida por 250

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qualquer decreto à previsão normativa do Decreto-Lei nº 3.365/41; 5Agravo de instrumento provido (TRF-5-AG: 08066794520164050000. SE, Relator: Desembargador Federal Rubens de Mendonça Canuto, Data de Julgamento: 31/05/2017, 4ª Turma). PENAL. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. ART. 40 DA LEI 9.605/98. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. UNIDADE DE CONSERVAÇÃO FEDERAL. DECRETO FEDERAL EDITADO EM 1972. DESAPROPRIAÇÃO POR UTILIDADE PÚBLICA NUNCA CONSUMADA. CADUCIDADE DO DECRETO ORIGINAL. PERMANÊNCIA DA ÁREA SOB PROPRIEDADE DO PARTICULAR. IMPOSSIBILIDADE DE SE LIMITAR O DIREITO DE PROPRIEDADE CONFERIDO CONSTITUCIONALMENTE. TIPICIDADE AFASTADA QUANTO AO DELITO DE COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. DECISÃO MANTIDA. AGRAVO REGIMENTAL IMPROVIDO. 1. Discute-se se o dano causado ao Parque Nacional da Serra da Canastra - Unidade de conservação Federal (UCF) instituída pelo Decreto 70.355, de 3/4/72 – narrado na peça acusatória – configura o delito descrito no art. 40 da Lei nº 9.605/98, com competência da Justiça Federal, mesmo em se tratando de propriedade privada, pois não efetivada a desapropriação pelo Poder Público. 2. Firmou este Tribunal compreensão de que, por se tratar de área de preservação permanente de domínio da União, embora em propriedade privada, seria considerado de interesse do ente federal, nos termos do que dispõe o art. 20, III, da CF/88. 3. Na hipótese, no entanto, o Decreto Federal foi editado em 1972 e a desapropriação jamais se consumou, permanecendo a área sob a propriedade do particular, assim como diversas outras no país que, “criadas no papel”, acabam não se transformando em realidade concreta. 4. O art. 10 do Decreto-Lei n.o 3.365, de 21/6/41, o qual dispõe sobre as desapropriações por utilidade pública, estabelece que referida expropriação deverá efetivar-se mediante acordo ou intentar-se judicialmente, dentro de cinco anos, contados da data da expedição do decreto e findos os quais este caducará. 5. Da peça acusatória consta que os acusados teriam suprimido vegetação nativa para plantio de capim napier em área de preservação permanente (margens de curso d’água afluente do ribeirão Babilônia), bem como 251

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construíram um poço, no interior da cognominada “Fazenda Vale Formoso”, Delfinópolis/MG, causando dano direto ao Parque Nacional da Serra da Canastra (unidade de conservação de proteção integral). 6. Ocorre que a constatação da referida supressão, a qual teria dado causa aos danos indicados, deu-se apenas em julho de 2008, quando já operada a caducidade do decreto original (e não se tem nos autos qualquer notícia de sua reedição). 7. Superada a caducidade do Decreto Federal há tempos, não há como limitar-se o direito de propriedade conferido constitucionalmente, sob pena de se atentar contra referida garantia constitucional, bem como contra o direito à justa indenização, previstos nos incisos XXII e XXIV do art. 5º da CF. 8. Tipicidade do fato afastada no que se refere ao delito de competência da Justiça Federal (art. 40 da Lei nº 9.605/98). 9. Agravo regimental improvido (STJ – AgRg no AREsp: 611366 MG 2014/0299347-4, Relator: Ministro NEFI CORDEIRO, Data de Julgamento: 12/09/2017, T6 - SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 19/09/2017).

Jurisprudência que entende pela não caducidade do Decreto de Utilidade Pública: PARQUE NACIONAL DO ITATIAIA/RJ. AÇÃO DECLARATÓRIA DE INEXISTÊNCIA DE RELAÇÃO JURÍDICO-ADMINISTRATIVA, CUMULADA COM AÇÃO CONDENATÓRIA. INEXISTÊNCIA DE CADUCIDADE DO DECRETO Nº 84.568/1982. LIMITAÇÕES ADMINISTRATIVAS. [...] 5. A norma legal que trata de desapropriação é o Decreto nº 3.365/1941, no qual há determinação para que, após a expedição do ato declarando determinada área de utilidade pública, a desapropriação ocorra no prazo de cinco anos, sob pena de caducidade do decreto declaratório. Em se tratando de Unidades de Conservação, o artigo 11, § 1º da Lei nº 9.985/2000, que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), não previu prazo para a desapropriação, porque as unidades de conservação são criadas por ato do Poder Público (lei ou decreto), mas

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apenas extintas, reduzidas ou recategorizadas por lei, nos termos do inciso III, § 1º do artigo 225 d a CF/88. 6. Criada uma unidade de conservação, seja por ato do Poder Executivo ou do Legislador, é inconcebível cogitar-se de prazo de caducidade do ato normativo que a criou. Pelo próprio conceito de caducidade, não há como sustentar o argumento de que, com o decurso do prazo, o ato “caducaria apenas para fins de desapropriação”. Caducidade enseja a perda da validade do ato, e, tratando-se de unidade de conservação, qualquer interpretação neste sentido afronta o artigo 225, § 1º, III da Constituição, que estabelece que qualquer alteração ou supressão em unidades de conservação dependerá de lei [...] (g.n) (TRF2. Vice-Presidência. Apelação nº 0047668-75.2012.4.02.5101. Relator Desembargador Alcides Martins. J. em 21/6/2018).

Posicionamento MPF e ICMBio: Conforme Nota Técnica 4ª CCR nº 1/2017 emitida pelo Ministério Público Federal (“MPF”),4 o entendimento do referido órgão é no sentido de “que não se pode falar em caducidade de ato de criação de Unidades de Conservação por falta de desapropriação das propriedades localizadas em seu interior, uma vez que qualquer alteração de UC deve se dar por lei. E ainda, as restrições à fruição da propriedade emanam não da declaração de utilidade pública, mas da legislação ambiental, perdurando no tempo mesmo com a caducidade do decreto expropriatório. Tal fato não implica confisco do patrimônio particular, pois não obsta a que o particular busque a regularização perante o ICM-Bio, que inclusive mantém procedimento próprio para esse fim. A tese da caducidade dos decretos de criação das UC, caso prevaleça, poderá causar uma grave situação de instabilidade do Sistema Nacional de Unidades de Conservação e, portanto, o MPF considera grave e irresponsável a sua perpetuação.

Na mesma Nota Técnica, o MPF cita posicionamento da Procuradoria Especializada do ICMBio, a qual entende que a caducidade da declaração de utilidade pública não se estende à criação de unidades de conservação: 4

Disponível em: http://www.mpf.mp.br/pgr/documentos/PARNA_Serra_de_Itabaiana_ caducidade.pdf. 253

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(1º) as restrições à fruição da propriedade emanam não da declaração de utilidade pública, mas da legislação ambiental, perdurando no tempo independentemente da caducidade daquela; (2º) a caducidade do decreto expropriatório, no caso de imóveis inseridos em unidades de conservação, afigura-se para o particular não como garantia, como ocorre nas desapropriações em geral, mas como penalidade; (3º) as desapropriações de áreas particulares inseridas em determinadas classes de áreas protegidas fundamentam-se não em um ato administrativo de conveniência e oportunidade, mas em uma imposição legal; (4º) O artigo 225, parágrafo 1º, inciso III, da Constituição Federal estabeleceu o princípio da reserva de lei para a alteração ou supressão de uma unidade de conservação; (5º) não existe amparo legal para a extinção tácita de uma unidade de conservação; (6º) a declaração de utilidade pública é independente e acessória ao escopo do ato de criação da unidade de conservação.

8.2.4 A Fazenda Boa-Fé Caru, que está situada na Reserva Biológica do Gurupi, deveria ter sido desapropriada desde a criação da referida Reserva, com o Decreto de 1988? E após a Lei de 2000, a Fazenda Boa-Fé Caru deveria ter sido desapropriada?

Legislação aplicável Conforme exposto no segundo questionamento, o artigo 4º do Decreto 95.614/1988 dispõe que o administrador está autorizado a desapropriar, e não obrigado. Já o artigo 10, § 1º da Lei 9.985/2000 dispõe que a Reserva Biológica do Gurupi será desapropriada. É necessário, entretanto, levar em conta o já exposto em resposta ao terceiro questionamento acerca da caducidade, e acerca da eventualidade de se tratar de terras devolutas. Existe o posicionamento de que, considerando a caducidade do ato que declarou o imóvel como de utilidade pública para fins de desapropriação, nos moldes do artigo 10 do Decreto 3.365/1941, para que seja possível a desapropriação atualmente, haveria a necessidade de uma nova declaração nesse

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sentido, e que o ato de desapropriação seja intentado pelo administrador dentro do prazo quinquenal. Inclusive, esse mesmo dispositivo legal pontua que, a partir da caducidade do ato, “somente decorrido um ano, poderá ser o mesmo bem objeto de nova declaração”. Também, conforme já destacado anteriormente, existe ainda entendimento apontando para a impossibilidade de desapropriação em UC na eventualidade de estas estarem inseridas em terras devolutas, uma vez que, de acordo com o inciso II do artigo 20 da CF, terras devolutas indispensáveis à preservação ambiental já são bens da União.

Jurisprudência Os julgados das respostas anteriores já exploraram essa temática.

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9. Reparações em função de violência no campo: pensão especial no Acordo de Solução Amistosa do caso nº 12.277 da CIDH/OEA

Neste capítulo, apresentaremos o parecer elaborado ao Centro pela Justiça e Direito Internacional (Cejil) em fevereiro de 2021.1 O Cejil, em parceria com a Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos, representa os familiares de oito pessoas que foram executadas nas adjacências da Fazenda Ubá, no Município de São João do Araguaia, em eventos ocorridos no mês de junho e julho de 1985. O parecer analisou os critérios de atualização monetária da pensão mensal vitalícia aos familiares das vítimas do caso Fazenda Ubá, em Acordo de Solução Amistosa celebrado com a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, cujo pagamento foi assumido pelo Estado do Pará como forma de garantir à família reparação material e moral. O parecer evidencia que questões envolvendo violações a direitos humanos devem ser observadas de forma a garantir a interpretação mais favorável à dignidade da pessoa humana, sendo necessária, no caso discutido, a atualização monetária dos valores devidos de forma a beneficiar os familiares das vítimas da execução.

Introdução O Cejil nos solicitou um parecer sobre os critérios de atualização monetária da pensão mensal vitalícia cujo pagamento foi assumido pelo Estado do Pará, como forma de garantir reparação material e moral aos familiares das vítimas do massacre que ocorreu nas adjacências da Fazenda Ubá, no Município de São João do Araguaia (PA), em junho de 1985. 1

Julia Piazza Leite Monteiro, Laura Guidugli Fillietaz, Marco Aurélio Farias Andrade, Murilo Castineira Brunner e Paulo Pereira da Silva. 257

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Os familiares das vítimas são representados pelo Cejil e pela Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SDDH e, em conjunto, “peticionários”) no Acordo de Solução Amistosa no Caso nº 12.277 da Fazenda Ubá (Acordo de Solução Amistosa), celebrado com a União e o Estado do Pará perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (CIDH/OEA). O Acordo de Solução Amistosa, assinado em 2011, prevê em sua cláusula 13 que o Estado do Pará deve conceder pensão legal, vitalícia e personalíssima, em caráter especial, a um representante de cada uma das famílias das vítimas, nos termos abaixo: 13. O Estado do Pará concederá pensão legal, vitalícia e personalíssima, em caráter especial, no valor mensal de 1,5 (um e meio) salário-mínimo, a um representante de cada uma das famílias das vítimas, conforme projeto de lei de iniciativa do Poder Executivo a ser aprovado pela Assembleia Legislativa do Estado. O reajuste da pensão se dará pelo mesmo índice aplicado ao reajuste salarial dos servidores públicos estaduais de nível fundamental.

Os peticionários relatam que, a partir de 2012, a correção do valor da pensão supracitada deixou de ser feita adequadamente, porque o Estado do Pará teria considerado o valor de 1,5 salário-mínimo vigente em 2011 (R$ 817,50) e, sobre esse valor, passou apenas a aplicar os índices de reajuste salarial dos servidores públicos estaduais de nível fundamental – quando, segundo os peticionários, o Estado do Pará deveria ter atualizado o valor-base de 1,5 salário-mínimo conforme os ajustes periódicos do salário-mínimo, e, quando houvesse reajuste salarial dos servidores estaduais de nível fundamental, a alteração do valor deveria se dar conforme o reajuste do salário-mínimo e o reajuste dos servidores. Por esse motivo, o Cejil requereu ao Procurador-Geral do Estado do Pará, em 5 de junho de 2019, a correta atualização das pensões mensais e o pagamento do valor complementar retroativo, referente às pensões mensais que não teriam sido depositadas corretamente. Não obstante, por meio da Nota Técnica nº 0062/2019, de 17 de junho de 2019, o Estado do Pará entendeu que o pleito formulado pelo CEJIL não poderia ser acolhido, pois: 1. Uma vez fixado o valor monetário da pensão, de 1,5 salário-mínimo, tanto o Acordo de Solução Amistosa quanto a Lei Estadual nº 7.579/2011, que positivou a forma de pagamento da aludida pensão, seriam claros 258

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em estabelecer como fator de atualização monetária os mesmos índices aplicados ao reajuste salarial dos servidores públicos estaduais de nível fundamental, de modo que realizar a correção monetária na forma pretendida pelo Cejil contraria o princípio da legalidade. 2. O Estado do Pará não poderia ter instituído pensão com índices de atualização vinculados ao salário-mínimo, em razão da vedação da Súmula Vinculante nº 42 do Supremo Tribunal Federal (STF). 3. Por se tratar de vantagem pecuniária honrada com recursos públicos, deve-se aplicar às pensões em questão o mesmo tratamento conferido aos regramentos de servidor público, em atendimento ao equilíbrio fiscal do Estado (artigo 169 da Constituição Federal de 1988). 4. Não seria possível aplicar, de forma conjugada, duas formas de atualização monetária (a variação do salário-mínimo e o reajuste salarial dos servidores públicos estaduais de nível fundamental), sob pena de bis in idem. A seguir, será apresentado, no item 9.1, um sumário executivo das nossas conclusões. No item 9.2, exporemos um breve histórico fático do Caso nº 12.277 e, no item 9.3, apresentaremos nossa análise jurídica sobre os termos da Nota Técnica nº 0062/2019, sumarizados anteriormente. Por fim, apresentaremos nossas conclusões.

9.1 Sumário executivo das conclusões A seguir, apresentamos um sumário executivo das nossas conclusões, desenvolvidas ao longo do presente parecer: (i) A interpretação da cláusula 13 do Acordo de Solução Amistosa deve ser realizada com base no princípio pro homine, para que sejam concretizados e resguardados os direitos fundamentais dos familiares das vítimas. (ii) A Súmula Vinculante nº 4 do Supremo Tribunal Federal não nos parece ser aplicável ao caso. Em primeiro lugar, porque ela veda o uso do salário-mínimo como indexador de base de cálculo apenas de vantagem de servidor público ou de empregado, não sendo esse o caso dos familiares das vítimas. Em segundo lugar, porque a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal permite a fixação de pensão de caráter alimentar em 2

Súmula Vinculante n. 4: “Salvo nos casos previstos na Constituição, o salário-mínimo não pode ser usado como indexador de base de cálculo de vantagem de servidor público ou de empregado, nem ser substituído por decisão judicial”. 259

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múltiplos do salário-mínimo, o que é o caso da pensão especial constante na cláusula 13 do Acordo de Solução Amistosa. (iii) O artigo 169 da Constituição Federal trata do regime de despesa com pessoal ativo e inativo da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, não nos parecendo cabível a incidência de suas regras para nortear o pagamento de pensão de caráter alimentar/indenizatório, a quem não compunha os quadros do pessoal desses entes federativos (i.e., os familiares das vítimas). (iv) O cálculo de 1,5 salários-mínimos, a nosso ver, deve ser feito a cada mês de pagamento, conforme o salário-mínimo vigente nesse momento, para obtenção do valor-base da pensão. A atualização monetária, então, deve ser feita conforme o índice de reajuste salarial dos servidores públicos estaduais de nível federal, sobre esse valor-base, por isso não nos parece haver bis in idem, pois não se está aplicando duplamente índices de correção monetária. (v) O Acordo de Solução Amistosa foi livremente pactuado pelo Estado do Pará. Não nos parece cabível, agora, o Estado do Pará afirmar que não poderia tê-lo celebrado nos termos em que foi pactuado, e recusar-se ao seu cumprimento adequado, sob pena de venire contra factum proprium e permitir-se ao Estado do Pará valer-se da própria torpeza. (vi) O princípio da legalidade não nos parece conferir suporte à posição do Estado do Pará. As Leis Estaduais nº 7.528/2011 e nº 7.579/2011, que fixaram um valor fixo para a pensão especial (R$ 817,50) e determinaram sua atualização monetária desde então, alteraram o conteúdo da cláusula 13 do Acordo de Solução Amistosa e o conteúdo do projeto de lei que compôs seu Anexo II, contrariamente, assim, ao que foi pactuado. Nesse cenário, entendemos que o princípio da legalidade deve ceder espaço aos princípios da constitucionalidade, da moralidade, da confiança, da consensualidade e do respeito ao ato jurídico perfeito. (vii) Entendemos cabível o pleito dos peticionários, para que o Estado do Pará realize aos familiares das vítimas o ressarcimento retroativo da pensão especial, consistente na diferença entre os valores que deveriam ter sido pagos e o que foi efetivamente pago aos familiares das vítimas, devidamente atualizados, aplicando as variações do salário-mínimo de 2012 até 2020, sem prejuízo da incidência dos índices de reajuste salarial dos servidores públicos estaduais de nível fundamental, nos períodos em que vigeram. Para as pensões futuras, entendemos que a partir de 2021 260

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o cálculo e pagamento da pensão especial deverá ser efetuado refletindo tanto as variações futuras do salário-mínimo (multiplicando-os por 1,5) quanto o reajuste aplicável aos servidores públicos estaduais de nível fundamental do Estado do Pará.

9.2 Histórico do caso Em junho de 1985, nas adjacências da Fazenda Ubá, localizada no Município de São João do Araguaia, Estado do Pará, os trabalhadores rurais João Evangelista Vilarins, Francisco Ferreira Alves, Januário Ferreira Lima, Luis Carlos Pereira de Souza, Francisca de Tal, José Pereira da Silva, Valdemar Alves de Almeida e Nelson Ribeiro (“vítimas”) foram assassinados em razão de sua luta por terra na região. Diante da falta de solução interna por parte da justiça brasileira sobre o massacre, os peticionários denunciaram, junto à CIDH/OEA, as violações aos direitos humanos dispostos no artigo 4º (direito à vida), artigo 8.1 (garantias judiciais), artigo 25 (proteção judicial) e artigo 1.1 (obrigação de respeitar os direitos) da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH). Em 18 de dezembro de 2002, a denúncia foi admitida pela CIDH/OEA. Assim, após a apresentação de diversos relatórios e negociações no período de 2003 a 2009, em março de 2010 discutiram-se os termos do Acordo de Solução Amistosa, cujo objetivo era garantir a reparação dos danos morais e materiais sofridos pelos familiares das vítimas do massacre da Fazenda Ubá, bem como prevenir ocorrências de outras violações de direitos humanos similares. Nesse contexto, em 19 de julho de 2010, foi assinado o Acordo de Solução Amistosa com os peticionários, em cuja cláusula 12 o Estado do Pará renunciou expressamente à prescrição,3 nos termos do artigo 191 do Código Civil de 20024 (CC/02). No Acordo de Solução Amistosa, além de outras obrigações, o Estado do Pará se comprometeu a fazer o pagamento de pensão especial a um representante de cada uma das famílias das vítimas, nos termos da cláusula 13, mencionada e transcrita alhures. 3

Cláusula 12 do Acordo de Solução Amistosa: “Em cada caso específico e para dar efetividade ao presente Acordo, o Estado do Pará se compromete a renunciar a prescrição em favor dos representantes indicados pelas famílias das vítimas (ANEXO II), nos termos do artigo 191 do Código Civil Brasileiro”.

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Artigo 191 do CC/02: “A renúncia da prescrição pode ser expressa ou tácita, e só valerá, sendo feita, sem prejuízo de terceiro, depois que a prescrição se consumar; tácita é a renúncia quando se presume de fatos do interessado, incompatíveis com a prescrição”. 261

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Dessa forma, para o pagamento da pensão prevista no Acordo de Solução Amistosa, em 15 de junho de 2011 foi publicada a Lei Estadual nº 7.528/2011, do Estado do Pará, que inicialmente fixou o valor da pensão vitalícia em R$ 765,00.5 Como o valor não correspondia à quantia de 1,5 salário-mínimo vigentes em 2011, no dia 21 de dezembro de 2011 foi publicada a Lei Estadual nº 7.579/2011, do Estado do Pará, que corrigiu esse equívoco e fixou em R$ 817,506 o valor da pensão para aquele ano, haja vista que à época o salário-mínimo nacional correspondia a R$ 545,00. Em março de 2012, foi feito o pagamento de R$ 7.793,50 retroativos, referentes às pensões vitalícias mensais devidas pelo período de junho de 2011 a janeiro de 2012, contudo, a partir de fevereiro de 2012, os peticionários apontam que houve uma série de equívocos no cálculo da pensão que resultaram no pagamento de valor inferior ao devido.

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“LEI Nº 7.528, DE 14 DE JUNHO DE 2011. Dispõe sobre a indenização e a Pensão Especial às famílias das vítimas do Caso n.º 12.277, em trâmite perante a CIDH/OEA – Fazenda Ubá, em decorrência dos danos morais e materiais causados. A ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO PARÁ estatui e eu sanciono a seguinte Lei: Art. 1º Fica concedida, a título de indenização por danos morais e materiais, a importância de R$ 38.400,00 (trinta e oito mil e quatrocentos reais), acrescida do pagamento de Pensão Especial, a cada um dos representantes dos familiares das oito vítimas do Caso n.º 12.277, em trâmite perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos/OEA, referente ao homicídio de oito trabalhadores rurais nas adjacências da Fazenda Ubá, Município de São João do Araguaia, Estado do Pará, ocorrido em junho de 1985. Parágrafo único. A Pensão Especial prevista no caput deste artigo terá o valor mensal de R$ 765,00 (setecentos e sessenta e cinco reais), reajustado na mesma data e percentual aplicado à remuneração dos Servidores Públicos Estaduais, ficando garantido o recebimento não inferior ao menor vencimento-base do Funcionário Público Estadual. Art. 2º São beneficiários da indenização e da Pensão de que se refere o art. 1º desta Lei, os seguintes representantes indicados pelas famílias das vítimas: 1) José de Ribamar Lima Almeida (Vítima: VALDEMAR ALVES DE ALMEIDA); 2) Elenici Conceição Alves (Vítima: FRANCISCO FERREIRA ALVES); 3) Carlito Ferreira da Silva (Vítima: JOSÉ PEREIRA ALVES); 4) Antônia Ilza Lacerda Pinto (Vítima: JOÃO EVANGELISTA VILARINS). § 1º Os representantes acima referidos constam no Anexo I do Acordo de Solução Amistosa que trata do Caso n.º 12.277, anteriormente mencionado. § 2º Com o falecimento do beneficiário a pensão será extinta. Art. 3º As despesas decorrentes desta Lei correrão à conta da dotação orçamentária do Estado. Art. 4º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação. PALÁCIO DO GOVERNO, 14 de junho de 2011.”

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“LEI N.º 7.579, DE 20 DE DEZEMBRO DE 2011. Altera dispositivo da Lei n.º 7.528, de 14 de junho de 2011, que dispõe sobre a indenização e a Pensão Especial às famílias das vítimas do Caso n.º 12.277, em trâmite perante a CIDH/OEA — Fazenda Ubá, em decorrência dos danos morais e materiais causados. A ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO PARÁ estatui e eu sanciono a seguinte Lei: Art. 1º O parágrafo único do art. 1º da Lei n.º 7.528, de 14 de junho de 2011, passa a vigorar com a seguinte redação: 1º. Parágrafo único. A Pensão Especial vitalícia e personalíssima prevista no caput deste artigo é fixada no valor de R$ 817,50 (oitocentos e dezessete reais e cinquenta centavos) e será reajustada na mesma data e percentual aplicados à remuneração dos servidores públicos estaduais de nível fundamental. Art. 2º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação, com efeitos retroativos a 14 de junho de 2011. PALÁCIO DO GOVERNO, 20 de dezembro de 2011.”

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Em 5 de junho de 2019, como já exposto, o Cejil requereu ao Estado do Pará a correção do ajuste das pensões e o pagamento retroativo dos valores pagos a menor. Em 17 de junho de 2019, por meio da Nota Técnica nº 0062/2019, a Procuradoria-Geral do Estado do Pará rejeitou o pedido. Nesse contexto, em 22 de junho de 2020, os peticionários reiteraram seu pedido para que fossem pagos não só retroativamente, mas também futuramente, os valores corretos da pensão especial devida pelo Estado do Pará, como forma de evitar a perda do valor real das pensões e sua defasagem ao longo dos anos. Ainda, os peticionários esclareceram que não poderiam reconhecer o cumprimento da cláusula 13 do Acordo de Solução Amistosa até que houvesse consenso entre as partes sobre a atualização dos valores da pensão especial. Em agosto de 2020, o Estado brasileiro apresentou informações à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, relativamente ao cumprimento do Acordo de Solução Amistosa, nas quais informou que considerava ter cumprido com sua obrigação prevista em sua cláusula 13.

9.3 Análise da controvérsia relativa do pagamento de pensão especial

9.3.1 Interpretação da Cláusula 13 do Acordo de Solução Amistosa à luz do princípio pro homine A CADH prevê normas de interpretação em seu artigo 29, apresentando as diretrizes da principal base hermenêutica das normas jurídicas de direitos humanos: o princípio pro homine. Tal princípio, enquanto regra interpretativa, prevê a primazia da aplicação da norma mais favorável à pessoa humana. Sobre o tema, André de Carvalho Ramos explica que “antes mesmo do novo posicionamento do RE 466.343, o próprio Supremo Tribunal Federal manifestara-se a favor da interpretação pro homine por intermédio da utilização das convenções internacionais de Direitos Humanos como marco hermenêutico de todo o ordenamento jurídico”.7

7

RAMOS, André de Carvalho. Supremo Tribunal Federal brasileiro e o controle de convencionalidade: Levando a sério os tratados de direitos humanos. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, v. 104, p. 241-286, jan./dez. 2009. 263

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Nesse sentido, o Ministro Celso de Mello, inclusive, faz referência ao artigo 29 da CADH para fundamentar seu voto na Ação Direta de Constitucionalidade nº 41, sobre a reserva de vagas para negros em concursos públicos, esclarecendo que a hermenêutica da primazia da norma mais favorável à pessoa humana (princípio pro homine) sempre deve ser aplicada: [...] Não custa relembrar que, em matéria de direitos humanos, a interpretação jurídica há de considerar, necessariamente, as regras e cláusulas do direito interno e do direito internacional, cujas prescrições tutelares revelam-se – na interconexão normativa que se estabelece entre tais ordens jurídicas – elementos de proteção vocacionados a reforçar a imperatividade do direito constitucionalmente garantido. Em suma: os magistrados e Tribunais, no exercício de sua atividade interpretativa, especialmente no âmbito dos tratados internacionais de direitos humanos, devem observar um princípio hermenêutico básico (tal como aquele proclamado no art. 29 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos), consistente em atribuir primazia à norma que se revele mais favorável à pessoa humana, em ordem a dispensar-lhe a mais ampla proteção jurídica. O Poder Judiciário, nesse processo hermenêutico que prestigia o critério da norma mais favorável (que tanto pode ser aquela prevista no tratado internacional como a que se acha positivada no próprio direito interno do Estado), deverá extrair a máxima eficácia das declarações internacionais e das proclamações constitucionais de direitos, de modo a viabilizar o acesso dos indivíduos e dos grupos sociais, notadamente os mais vulneráveis, a sistemas institucionalizados de proteção aos direitos fundamentais da pessoa humana, sob pena de a liberdade, a tolerância e o respeito à alteridade humana tornarem-se palavras vãs [...].8 (grifos nossos)

A respeito da aplicação do princípio pro homine, a doutrina internacional sobre direitos humanos observa que as decisões da CIDH também se pautam por esse princípio. A aplicação do princípio pro homine busca garantir o julgamento mais favorável à pessoa humana, que enfrentou situação de violação a direitos fundamentais, em detrimento de uma interpretação simplesmente literal/gramatical das normas envolvidas na controvérsia analisada:

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ADC 41, Min. Rel. Roberto Barroso, voto do min. Celso de Mello, j. 08/06/2017.

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Outro princípio importante da aplicação e interpretação dos tratados pela Corte Interamericana é a ideia de que a Convenção Americana e outros instrumentos devem receber uma interpretação ‘pro homine', ou seja, devem ser interpretados da forma mais protetiva dos direitos humanos. Este declarado ‘viés interpretativo’ da Corte é outro meio de avançar a interpretação de acordo com o objetivo do tratado: ao escolher a via pro homine, a Corte Interamericana rejeita a interpretação do seu instrumento de acordo com o significado literal das suas palavras (a regra básica de interpretação) ou quaisquer outras diretrizes tradicionais de interpretação, servindo diretamente à teleologia do instrumento.9 (grifos nossos)

Ademais, a hermenêutica decorrente da aplicação do princípio pro homine não só é útil à solução dos conflitos entre normas, mas também se presta a possibilitar que prevaleça a interpretação mais favorável à dignidade da pessoa humana, como explica Zlata Drnas de Clément: A maioria dos autores define o PPH [Princípio Pro Homine] como uma orientação que estabelece uma ordem normativa e interpretativa de preferência, vez que deve ser aplicada a norma ou interpretação mais ampla, e, inversamente, a norma mais restrita quando se trata de estabelecer de maneira permanente o exercício dos direitos. Em nossa perspectiva, acreditamos que a essência do PPH pode ser resumida pela afirmação de que se trata de uma regra geral das normas de direitos humanos (subjacente a todas as normas de direitos humanos) pela qual, através da interpretação ou adequação normativa, procura assegurar que toda decisão alcance o resultado que melhor protege a pessoa humana. É uma prescrição de natureza normativa, na medida em que constitui um princípio geral do direito internacional dos direitos humanos, fonte principal na acepção do artigo 38.1.b) do Estatuto do Tribunal Internacional de Justiça (um 9

Tradução livre do original em inglês: “Another important tenet of the application and interpretation of treaties by the Inter-American Court is the idea that the American Convention and other instruments should be given a ‘pro homine’ interpretation, that is, that they should be interpreted in the way which is most protective of human rights. This declared ‘bias’ of the Court is another means of advancing interpretation in accordance with the purpose of the treaty; by choosing the pro homine way, the Inter-American Court dismisses the interpretation of its instrument according to the ordinary meaning of its words (the primary rule of interpretation) or any other traditional cannons of interpretation, instead directly serving the teleology of the instrument”. (LIXINSKI, Lucas. Treaty Interpretation by the Inter-American Court of Human Rights: Expansionism at the Service of the Unity of International Law. The European Journal of International Law, v. 21 n. 3, p. 585-604, 2010, DOI: 10.1093/ejil/chq047) 265

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princípio fundamental, essencial, estrutural, uma formulação de natureza normativa concreta, decorrente da prática internacional como regra consuetudinária das normas dos direitos humanos, distinta dos princípios gerais do direito (artigo 38.1.c), que são máximas gerais e abstratas nascidas em foro doméstico).10 (grifos nossos)

Sobre o tema, Mazzuoli ainda aponta que, “no direito interno, o princípio internacional pro homine compõe-se de dois conhecidos princípios jurídicos de proteção de direitos: o da dignidade da pessoa humana e o da prevalência dos direitos humanos”.11 Dessa forma, sob a óptica do princípio pro homine, a solução da controvérsia relativa aos valores devidos pelo Estado do Pará aos familiares das vítimas a título da pensão especial deve privilegiar a proteção integral da dignidade da pessoa humana e fazer prevalecer os direitos humanos. Para tanto, a proteção da dignidade da pessoa humana e a prevalência dos direitos humanos apenas será concretizada caso seja garantida a adequada atualização do valor da pensão especial, ou seja, caso sejam aplicadas as alterações ulteriores do salário-mínimo estabelecidas por lei, bem como o reajuste dos vencimentos dos servidores públicos estaduais do Estado do Pará de nível fundamental. Isso ocorre porque a garantia da adequada atualização da pensão especial tem como objetivo impedir a perda de seu poder aquisitivo ao longo do tempo – ainda 10

Tradução livre do original em espanhol: “La mayoría de los autores ha definido al PPH como pauta que establece un orden de preferencia normativo e interpretativo, pues se debe acudir a la norma o la interpretación más amplia, e, inversamente, a la norma más restringida cuando se trata de establecer de manera permanente el ejercicio de los derechos. Por nuestra parte, creemos que la esencia del PPH puede resumirse diciendo que se trata de una regla general del derecho de los derechos humanos (subyacente a todo el derecho de los derechos humanos) mediante la cual, vía interpretación o adecuación normativa, se busca asegurar que en toda decisión se alcance el resultado que mejor proteja a la persona humana. Es una prescripción de carácter normativo, en tanto constituye un principio general del derecho internacional (24) de los derechos humanos, fuente principal en el sentido del art. 38.1.b) del Estatuto de la Corte Internacional de Justicia (principio fundamental, esencial, estructural, formulación de carácter normativo concreto, surgida de la práctica internacional con carácter de norma consuetudinaria del derecho de los derechos humanos, distinta de los principios generales del derecho (art. 38.1.c), que son máximas generales, abstractas nacidas en foro doméstico)”. (CLÉMENT, Zlata Drnas de. La complejidad del principio pro homine. Jurisprudencia Argentina, Buenos Aires, n. especial, fascículo 12, p. 98-111, mar. 2015.

11

MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Rumo às novas relações entre o direito internacional dos direitos humanos e o direito interno. Da exclusão à coexistência da intransigência ao diálogo das fontes. 214 f. 2008. Orientadora: Cláudia Lima Marques. Tese (Doutorado em Direito) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre/RS. Disponível em: https:// www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/132783/000680945.pdf?sequence.

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mais considerando seu caráter vitalício. Caso contrário, em futuro próximo, os valores não seriam mais capazes de garantir minimamente a subsistência dos familiares das vítimas devido à inflação, esvaziando por completo a reparação prevista pela cláusula 13 do Acordo de Solução Amistosa e a disposição do inciso IV do artigo 7º da Constituição Federal de 1988.12 Pelo exposto, verifica-se que a interpretação da Cláusula 13 do Acordo de Solução Amistosa deve coadunar-se com o princípio pro homine – principal base hermenêutica das normas jurídicas de direitos humanos –, aplicado tanto pela CIDH quanto pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Dessa maneira, deve-se buscar aquela interpretação que for mais favorável à defesa dos direitos fundamentais dos familiares das vítimas, o que, diga-se, consistiu no principal objetivo do Acordo de Solução Amistosa, conforme sua cláusula 4, em que o Estado brasileiro (representado pela União e pelo Estado do Pará) reconheceu, em relação às vítimas, sua responsabilidade pela violação, pelo respeito e pela garantia dos direitos consagrados não só na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, como também na CADH. Veja-se: 4. O Estado brasileiro reconhece sua responsabilidade internacional pela violação aos direitos à vida, à proteção e às garantias judiciais e da obrigação de garantir e respeitar os direitos, consagrados na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em relação às vítimas do presente caso.

Verifica-se, portanto, que o caso em análise trata diretamente da violação de direitos humanos, conforme tratados internacionais (dentre os quais, destaca-se a CADH), o que equivale a dizer que as normas pactuadas no Acordo de Solução Amistosa devem, também, ser interpretadas em conformidade com o princípio pro homine. E, no caso, a obrigação assumida pelo Estado do Pará teve a finalidade de reparar danos a direitos humanos das vítimas e de seus familiares pelos quais ele próprio se responsabilizou. Assim, a interpretação e a aplicação da cláusula 13 do Acordo de Solução Amistosa devem corresponder ao que foi pactuado e ao objetivo maior de concretizar e tornar efetiva a reparação às violações de direitos humanos que 12

“Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: [...]. IV- salário-mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender às suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim”. 267

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se pretendeu compensar, razão pela qual, a nosso ver, a interpretação proposta pelo Estado do Pará na Nota Técnica nº 0062/2019 não corresponde ao que preconiza o princípio pro homine.

9.3.2 Inaplicabilidade da Súmula Vinculante nº 4 do STF O Estado do Pará afirma que não poderia ter sido instituída pensão com base no salário-mínimo, por vedação do enunciado da Súmula Vinculante nº 4 do STF, que assim dispõe: Súmula Vinculante nº 4: “Salvo nos casos previstos na Constituição, o salário-mínimo não pode ser usado como indexador de base de cálculo de vantagem de servidor público ou de empregado, nem ser substituído por decisão judicial”.

A Súmula Vinculante nº 4 origina-se de litígios na seara trabalhista, referentes ao quanto disposto no inciso IV, do artigo 7º da Constituição Federal de 1988, e que envolviam cálculos de adicional de insalubridade com base no valor do salário-mínimo; cálculos de salário-base de empregado ou vencimento-base de funcionário público; dentre outros assuntos correlatos. Ao julgar os recursos em relação ao tema, o STF entendeu que o objetivo do constituinte foi o de evitar que a vinculação da variação do salário-mínimo para outras finalidades pressionasse seu reajuste a valores menores, contrariando a política salarial, em prejuízo dos trabalhadores: [...] A norma constitucional tem o objetivo de impedir que o aumento do salário-mínimo gere, indiretamente, peso maior do que aquele diretamente relacionado com o acréscimo. Essa circunstância pressionaria o reajuste menor do salário-mínimo, o que significaria obstaculizar a implementação da política salarial prevista no art. 7º, IV, da Constituição da República [...].13

Assim, em 30 de abril de 2008 foi aprovado o enunciado da Súmula Vinculante nº 4, vinculado, como se verifica, a questões de natureza trabalhista. Nesse

13

RE 565.714, Rel. Min. Cármen Lúcia, j. em 30/04/2008, DJE n. 147 de 08/08/2008, republicação no SJE 211 de 07/11/2008.

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sentido, a tabela a seguir apresenta de forma resumida o objeto da maior parte dos recursos julgados pelo STF, em que se nota que a Súmula Vinculante nº 4 tem origem e aplicação a matérias de cunho trabalhista. Jurisprudência do STF – aplicação do enunciado da Súmula Vinculante n. 4 Objeto do Recurso14

Nº de Acórdãos

(i) Indexação do salário-mínimo como base de cálculo de adicional de insalubridade

30

14

(i) Rcl 41284, Min. Rel. Celso De Mello, Segunda Turma, j. 10/10/2020; Rcl 36134 AgR, Relator, Min. Rel. Edson Fachin, Segunda Turma, j. 31/08/2020; Rcl 8559 AgR, Min. Rel. Cármen Lúcia, Tribunal Pleno, j. 10/04/2014; Rcl 37512 AgR, Min. Rel. Rosa Weber, Primeira Turma, j. 14/02/2020; RE 671950 AgR.EDv, Min. Rel. Luiz Fux, Tribunal Pleno, j. 01/08/2018; Rcl 18372 AgR, Min. Rel. Cármen Lúcia, Segunda Turma, j. 09/12/2014; Rcl 38128 AgR, Min. Rel. Cármen Lúcia, Segunda Turma, j. 21/02/2020; AI 715693 AgR, Min. Rel. Dias Toffoli, Primeira Turma, j. 01/02/2011; Rcl 13954 AgR, Min. Rel. Luiz Fux, Primeira Turma, j. 26/08/2014; AI 690634 ED.AgR, Min. Rel. Dias Toffoli, Primeira Turma, j. 20/09/2011; AI 704626 AgR, Min. Rel. Dias Toffoli, Primeira Turma, j. 20/03/2012; AI 702590 AgR, Min. Rel. Cármen Lúcia, Segunda Turma, j. 03/09/2013; RE 637335 AgR, Min. Rel. Cármen Lúcia, Segunda Turma, j. 19/03/2013; AI 607329 AgR, Min. Rel. Menezes Direito, Primeira Turma, j. 05/05/2009; RE 987443 AgR, Min. Rel. Celso De Mello, Segunda Turma, j. 28/10/2016; RE 452445 AgR, Min. Rel. Joaquim Barbosa, Segunda Turma, j. 08/09/2009; RE 687395 AgR, Min. Rel. Dias Toffoli, Primeira Turma, j. 04/02/2014; RE 518711 AgR, Min. Rel. Joaquim Barbosa, Segunda Turma, j. 23/09/2008; RE 671950 AgR.EDv, Min. Rel. Luiz Fux, Tribunal Pleno, j. 01/08/2018; RE 585483 AgR.ED.ED, Min. Rel. Eros Grau, Segunda Turma, j. 23/06/2009; RE 585483 AgR. ED.ED, Min. Rel. Eros Grau, Segunda Turma, j. 23/06/2009; ARE 918007 AgR, Min. Rel. ROSA WEBER, Primeira Turma, j. 03/11/2015; Rcl 13685 AgR, Min. Rel. Luiz Fux, Primeira Turma, j. 28/04/2015; RE 706357 AgR, Min. Rel. Luiz Fux, Primeira Turma, j. 16/10/2012; Rcl 13306 AgR, Min. Rel. Rosa Weber, Primeira Turma, j. 22/02/2019; AI 667430 AgR, Min. Rel. Dias Toffoli, Primeira Turma, j. 01/02/2011; RE 457380 AgR, Min. Rel. Cármen Lúcia, Primeira Turma, j. 02/02/2010; RE 585368 AgR, Min. Rel. Eros Grau,Segunda Turma, j. 19/08/2008; RE 557076 ED, Min. Rel. Dias Toffoli, Primeira Turma, j. 04/10/2011; RE 601626 AgR, Min. Rel. Cármen Lúcia, Primeira Turma, j. 02/02/2010; (ii) Rcl 14075 AgR, Min. Rel. Celso De Mello, Tribunal Pleno, j. 14/05/2014; AI 768938 AgR, Min. Rel. Roberto Barroso, Primeira Turma, j. 15/12/2015; ARE 914780 AgR, Min. Rel. Dias Toffoli, Segunda Turma, j. 15/12/2015; ARE 708018 AgR. Min. Rel. Rosa Weber, Primeira Turma, j. 22/05/2020; Rcl 13954 AgR, Min. Rel. Luiz Fux, Primeira Turma, j. 26/08/2014; AI 839751 AgR, Min. Rel. Cármen Lúcia, Segunda Turma, j. 12/03/2013; Rcl 16831 AgR, Min. Rel. Dias Toffoli, Segunda Turma, j. 07/11/2017; AI 494225 AgR, Min. Rel. Cármen Lúcia, Segunda Turma, j. 11/03/2014; RE 785025 AgR, Min. Rel. Dias Toffoli, Segunda Turma, j. 22/09/2015; ARE 731196 ED, Min. Rel. Gilmar Mendes, Segunda Turma, j. 17/11/2015; Rcl 24863 AgR, Min. Rel. Luiz Fux, Primeira Turma, j. 14/10/2016; Rcl 15024 AgR, Min. Rel. Luiz Fux, Primeira Turma, j. 15/12/2015; Rcl 8573 AgR, Min. Rel. Roberto Barroso, Primeira Turma, j. 15/06/2018; ARE 1078014 AgR, Min. Rel. Rosa Weber, Primeira Turma, j. 07/11/2017; Rcl 19130 AgR, Min. Rel. Luiz Fux, Primeira Turma, j. 03/03/2015; ARE 914246 AgR, Min. Rel. Cármen Lúcia, Tribunal Pleno, j. 24/03/2017; (iii) Rcl 32794 AgR, Min. Rel. Cármen Lúcia, Segunda Turma, j. 13/09/2019; Rcl 32736 AgR, Min. Rel. Cármen Lúcia, Segunda Turma, j. 25/10/2019; AI 700945 AgR, Min. Rel. Cármen Lúcia, Primeira Turma, j. 08/02/2011; RE 422148 AgR.AgR, Min. Rel. Celso De Mello, Segunda Turma, j. 23/06/2009; RE 433249 AgR. ED.EDv, R Min. Rel. Rosa Weber, Tribunal Pleno, j. 23/08/2019; (iv) Rcl 13532 AgR, Min. Rel. Luiz Fux, Primeira Turma, j. 05/08/2014. 269

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(ii) Vinculação do salário-mínimo como fator indexação de salário-base de empregado ou vencimento-base de funcionário público

16

(iii) Indexação de salário-mínimo para o cálculo de vantagem

4

(iv) Indexação do salário-mínimo em reajuste salarial de servidor aposentado

1

Da mesma forma, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), nas oportunidades em que aplicou a Súmula Vinculante nº 4, o fez em conflitos semelhantes, envolvendo discussões ligadas à remuneração de servidores públicos e empregados assalariados, conforme apontado na tabela a seguir. Jurisprudência do STJ – aplicação da Súmula Vinculante nº 4 Objeto do recurso15

Nº de Acórdãos

(i) Indexação do salário-mínimo como base de cálculo de adicional de insalubridade

3

(ii) Gratificação de servidor público vinculada ao salário-mínimo

1

(iii) Salário-mínimo como indexador de vencimento base de servidor público

1

Como é possível verificar, tanto no STF quanto no STJ, a Súmula Vinculante nº 4 tem sido aplicada em matérias referentes à seara trabalhista. E, não por menos, pelo próprio texto de seu enunciado, verifica-se que a Súmula Vinculante nº 4 veda o uso do salário-mínimo como indexador da base de cálculo “de vantagem de servidor público ou de empregado”. A cláusula 13 do Acordo de Solução Amistosa, porém, não trata de nenhuma questão trabalhista. Tampouco se está diante de caso envolvendo vantagem de servidor público ou empregado. O Acordo de Solução Amistosa buscou reparar danos sofridos pelas vítimas e seus familiares, e a cláusula 13 estabeleceu uma

15

(i) REsp 1693956/SP, Min. Rel. Herman Benjamin, Segunda Turma, j. 16/11/2017; AgRg no AREsp 1814/MG, Min. Rel. Castro Meira, Segunda Turma, j. 17/05/2011; REsp 1230738/ SC, Min. Rel. Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, j. 14/04/2011; (ii) AgRg no RMS 21.816/ SC, Min. Rel. Laurita Vaz, Quinta Turma, j. 23/03/2010; (iii) RMS 29.573/AM, Min. Rel. Felix Fischer, Quinta Turma, j. 20/08/2009.

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pensão especial como forma de “reparação pecuniária” – título atribuído ao Capítulo III.2 do Acordo de Solução Amistosa, em que a cláusula 13 está inserida. Logo, não há, no caso em análise, nenhum uso do salário-mínimo como indexador da base de cálculo de vantagem de servidor público ou de empregado, de modo que a Súmula Vinculante nº 4 não tem aplicação ao caso e não pode ser um impeditivo ao pagamento da pensão tal como estabelecida na cláusula 13 do Acordo de Solução Amistosa, isto é, conforme o racional de 1,5 salário-mínimo ao mês, acompanhando os ajustes periódicos aplicados ao salário-mínimo. Em verdade, a pensão estabelecida pela cláusula 13 do Acordo de Solução Amistosa possui caráter indenizatório e alimentar, e, em relação às pensões de caráter alimentar, o STF já reconheceu, em Repercussão Geral no Recurso Extraordinário nº 842.157/DF,16 a possibilidade de sua fixação em múltiplos do salário-mínimo, justamente porque nesses casos a questão discutida guarda íntima relação com a dignidade humana e com os direitos fundamentais. O Ministro Relator da Repercussão Geral no Recurso Extraordinário nº 842.157/DF, Dias Toffoli, esclareceu – citando parecer da Procuradoria-Geral da República – que o STF “construiu sólida jurisprudência no intuito de pacificar a questão, decidindo, após o sopesamento de valores, pela possibilidade de utilização do salário-mínimo como base para fixação do valor da prestação de caráter alimentar”. Como explicou o Ministro Dias Toffoli, o STF é firme em assegurar que a utilização do salário-mínimo como base de cálculo do valor da pensão alimentícia não ofende o inciso IV, do artigo 7º da Constituição Federal de 1988, pois “a prestação tem por objetivo a preservação da subsistência humana e o resguardo do padrão de vida daquele que a percebe, o qual é hipossuficiente e, por isso mesmo, dependente do alimentante”. Nesse sentido, no Recurso Extraordinário nº 389.474/PR, o STF já havia se manifestado da seguinte forma: Assim, a despeito da literalidade da regra do art. 7º, IV, parte final, da Constituição de 1988, dentro dessa literalidade, cabem os alimentos. Porque eles são para o sustento. Por sua natureza, hão igualmente de ser capazes de atender às necessidades vitais básicas dos alimentandos: moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social. Tampouco podem os alimentos como o salário-mínimo perder o poder aquisitivo. Trata-se de tutela à 16

Repercussão Geral no Recurso Extraordinário com Agravo n.o 842.157/DF, Min. Rel. Dias Toffoli, Plenário, j. 26/05/2015. 271

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subsistência humana, à vida humana. De modo que essa ligação íntima (por sua natureza e função) entre o conceito de salário-mínimo e o de alimentos, aponta como correta a igualdade de tratamento de ambos. Portanto, também a vinculação de um ao outro.17

Nesse contexto, há diversos acórdãos e decisões monocráticas do STF em que se deixou de aplicar o enunciado da Súmula Vinculante nº 4, em razão de ter sido consolidado o entendimento de que a fixação de pensão de caráter alimentar em salários-mínimos não viola o inciso IV do artigo 7º da Constituição Federal.18 O salário-mínimo é, inclusive, direito básico constitucionalmente garantido e, conforme dispõe o inciso IV do artigo 7º da Constituição Federal de 1988, deve ser “capaz de atender às suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo”. Por todo o exposto, entendemos que a Súmula Vinculante nº 4 não é aplicável ao caso, considerando (i) que não se está a tratar de uso do salário-mínimo como indexador da base de cálculo de vantagem de servidor público ou de empregado, mas sim de pensão de natureza alimentar; (ii) que a jurisprudência do STF é sólida em reconhecer a possibilidade de fixação de pensão de caráter alimentar em múltiplos do salário-mínimo (matéria essa já decidida em sede de repercussão geral); e (iii) o estado de vulnerabilidade social das famílias das vítimas,19 que demanda interpretação protetiva aos seus direitos e interesses.

17

RE 389474/PR, Min. Rel. Celso de Mello, Primeira Turma, j. 10/05/2004.

18

ARE n.º 692320, Min. Rel. Luiz Fux, j. 11/09/2012; RE n.º 599737, Rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 20/03/2012; AI n.º 803126, Rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 17/09/2010; AI n.º 751934, Rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 26/03/2014; AI n.º 489993, Rel. Min. Celso de Mello, j. 11/06/2010; ARE n.º 776861, Rel. Min. Celso de Mello, j. 23/10/2013; RE n.º 400339, Rel. Min. Ayres Britto, j. 17/12/2004; AI n.º 847682/MG, Rel. Min. Dias Tofolli, j. 04/05/2012; ARE n.º 737824, Rel. Min. Celso de Mello, j. 04/06/2013; RE n.º 389474, Rel. Min. Celso de Mello, j. 10/05/2004; AI n.º 550934, Rel. Min. Cezar Peluso, j. 12/09/2005; RE n.º 629668, Rel. Min. Dias Toffoli, j. 11/06/2012; AI n.º 846613, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 03/11/2014; AI 606151 AgR, Min. Rel. Gilmar Mendes, Segunda Turma, j. 21/11/2008; RE 134.567/PR, Min. Rel. Ilmar Galvão, Primeira Turma, j. 19/11/1991.

19

O Acordo de Solução Amistosa também prevê em sua cláusula 17 que “O Estado do Pará garantirá a efetiva inclusão dos familiares das vítimas em programas e projetos assistenciais e educacionais, uma vez cumpridos os requisitos legais pertinentes. Os valores da indenização objeto deste Acordo não contarão para efeito de restrição ao ingresso ou permanência nesses programas”.

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Da possibilidade de calcular-se a pensão especial conforme o ajuste do salário-mínimo O Estado do Pará, na Nota Técnica nº 0062/2019, manifestou-se no sentido de não ser possível o cálculo da pensão especial estabelecida na Cláusula 13 do Acordo de Solução Amistosa conforme os ajustes periódicos do salário-mínimo, não só pela incidência da Súmula Vinculante nº 4 (o que, como visto no capítulo anterior, não se sustenta), mas também porque, “por se tratar de vantagem pecuniária honrada com recursos públicos, deve-se aplicar às pensões em questão o mesmo tratamento conferido aos regramentos de servidor público, em nome da preservação do equilíbrio fiscal do Estado (artigo 169 da CF)”. O artigo 169 mencionado anteriormente (regulamentado pela Lei Complementar nº 101/2000 – LRF) insere-se no “Capítulo II – Das Finanças Públicas”, “Seção II – Dos Orçamentos”, da Constituição Federal, e tem a seguinte redação: Art. 169. A despesa com pessoal ativo e inativo da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios não poderá exceder os limites estabelecidos em lei complementar. § 1º A concessão de qualquer vantagem ou aumento de remuneração, a criação de cargos, empregos e funções ou alteração de estrutura de carreiras, bem como a admissão ou contratação de pessoal, a qualquer título, pelos órgãos e entidades da administração direta ou indireta, inclusive fundações instituídas e mantidas pelo poder público, só poderão ser feitas: I - se houver prévia dotação orçamentária suficiente para atender às projeções de despesa de pessoal e aos acréscimos dela decorrentes; II - se houver autorização específica na lei de diretrizes orçamentárias, ressalvadas as empresas públicas e as sociedades de economia mista. § 2º Decorrido o prazo estabelecido na lei complementar referida neste artigo para a adaptação aos parâmetros ali previstos, serão imediatamente suspensos todos os repasses de verbas federais ou estaduais aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios que não observarem os referidos limites. § 3º Para o cumprimento dos limites estabelecidos com base neste artigo, durante o prazo fixado na lei complementar referida no caput, 273

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a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios adotarão as seguintes providências: i. redução em pelo menos vinte por cento das despesas com cargos em ii. comissão e funções de confiança; iii. exoneração dos servidores não estáveis. § 4º Se as medidas adotadas com base no parágrafo anterior não forem suficientes para assegurar o cumprimento da determinação da lei complementar referida neste artigo, o servidor estável poderá perder o cargo, desde que ato normativo motivado de cada um dos Poderes especifique a atividade funcional, o órgão ou unidade administrativa objeto da redução de pessoal. § 5º O servidor que perder o cargo na forma do parágrafo anterior fará jus a indenização correspondente a um mês de remuneração por ano de serviço. § 6º O cargo objeto da redução prevista nos parágrafos anteriores será considerado extinto, vedada a criação de cargo, emprego ou função com atribuições iguais ou assemelhadas pelo prazo de quatro anos. § 7º Lei federal disporá sobre as normas gerais a serem obedecidas na efetivação do disposto no § 4º.

A nosso ver, a afirmação do Estado do Pará na Nota Técnica nº 0062/2019 não se sustenta. Em primeiro lugar, porque o fato de as pensões especiais em análise serem pagas com verba pública não atrai a incidência do artigo 169 da Constituição Federal. Isso ocorre porque o artigo 169 da Constituição Federal não traz um regime geral de regulamentação do uso de verbas públicas. O artigo em referência tem escopo limitado e específico e trata dos limites aplicáveis à despesa com pessoal ativo e inativo da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. É sabido, como princípio hermenêutico basilar, que o legislador (inclusive o constituinte) não usa palavras em vão, tampouco silencia inadvertidamente, por isso não compete ao intérprete atribuir ao texto constitucional aquilo que ele não disse. Se o regime estabelecido pelo artigo 169 da Constituição Federal restringe-se às despesas com pessoal ativo e inativo, não cabe estender sua aplicação a situações diversas, como é o caso das vítimas e de seus familiares,

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pelo único fato de que o pagamento da pensão especial lhes é feito com verbas públicas. Em segundo lugar, há incompatibilidade entre o artigo 169 da Constituição Federal, que versa sobre despesa com pessoal, e a natureza da pensão especial de que trata a cláusula 13 do Acordo de Solução Amistosa. Essa pensão possui natureza indenizatória e alimentar e, portanto, não se enquadra no conceito de despesa com pessoal, a que se refere o artigo 169 da Constituição Federal. A doutrina posiciona-se, de fato, no sentido de que parcelas com natureza indenizatória não se computam como despesa com pessoal: Para a LRF, a despesa total com pessoal é considerada pelo somatório dos gastos do ente da Federação com os ativos, os inativos e os pensionistas, relativos a mandatos eletivos, cargos, funções ou empregos, civis, militares e de membros de Poder, com quaisquer espécies remuneratórias, tais como vencimentos e vantagens, fixas e variáveis, subsídios, proventos da aposentadoria, reformas e pensões, inclusive adicionais, gratificações, horas extras e vantagens pessoais de qualquer natureza, bem como encargos sociais e contribuições recolhidas pelo ente às entidades de previdência (art. 18, LRF). Ficam de fora do rol das despesas com pessoal, e não devem ser computadas, além daquelas parcelas de cunho indenizatório, tais como diárias e ajudas de custo, as seguintes despesas (§ 1º do art. 19, LRF): a) de indenização por demissão de servidores ou empregados; b) relativas a incentivos à demissão voluntária; c) derivadas da aplicação do disposto no inciso II do § 6º do art. 57 da Constituição, uma vez que a retribuição pecuniária a que têm direito os membros do Congresso Nacional, quando convocados para atuar na sessão legislativa extraordinária, terá cunho indenizatório.20

A pensão especial em análise, portanto, não se trata de “vantagem pecuniária”, mas sim de pensão de caráter indenizatório/alimentar, cuja finalidade é proporcionar a subsistência dos familiares das vítimas, fixada em múltiplos de salários-mínimos, justamente para assegurar todas as garantias previstas pelo inciso IV do artigo 7º da Constituição Federal de 1988: Pensão especial. Fixação com base no salário-mínimo. CF, art. 7º, IV. A vedação da vinculação do salário-mínimo, constante do inc. IV do art. 20

ABRAHAM, Marcus. Curso de direito financeiro brasileiro. 6ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, grifos nossos. 275

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7º da Carta Federal, visa a impedir a utilização do referido parâmetro como fator de indexação para obrigações sem conteúdo salarial ou alimentar. Entretanto, não pode abranger as hipóteses em que o objeto da prestação expressa em salários-mínimos tem a finalidade de atender as mesmas garantias que a parte inicial do inciso concede ao trabalhador e a sua família, presumivelmente capazes de suprir as necessidades vitais básicas. Recurso extraordinário não conhecido.21

Em terceiro lugar, a interpretação proposta pelo Estado do Pará desconsidera o fato de que se está a lidar, no presente caso, com violação a direitos fundamentais das vítimas e de seus familiares, cuja responsabilidade foi expressamente assumida pelo Estado do Pará no Acordo de Solução Amistosa. Consequentemente, como exposto alhures, a interpretação deve seguir o princípio pro homine e, assim, atender ao adequado resguardo desses direitos e à adequada e mais ampla reparação de sua violação. A interpretação restritiva proposta pelo Estado do Pará, portanto, contraria esse princípio. Por fim, o STF possui precedentes que permitem a fixação de pensão de caráter alimentar em múltiplos do salário-mínimo, ressaltando a importância de que a pensão reflita suas atualizações ulteriores: [...] Cabe destacar, neste ponto, por oportuno, [...] a plena legitimidade jurídico-constitucional da vinculação, ao salário-mínimo, do “quantum” pertinente à pensão alimentícia, em ordem a permitir a atualização de seu valor nominal, preservando-lhe, assim, o respectivo poder aquisitivo [...].22

No mesmo sentido, a Súmula nº 490 do STF também orienta que “a pensão correspondente à indenização oriunda de responsabilidade civil deve ser calculada com base no salário-mínimo vigente ao tempo da sentença e ajustar-se-á às variações ulteriores”. No caso em análise, a pensão especial estabelecida no Acordo de Solução Amistosa decorre, justamente, da responsabilidade civil do Estado do Pará pelas violações aos direitos das vítimas, sendo plenamente aplicável o mesmo racional do enunciado da Súmula nº 490 do STF supracitada. Por todo o exposto, e considerando a natureza alimentar e reparatória da pensão especial em discussão, entendemos que não subsiste o argumento do 21

RTJ 151/652-653, Min. Rel. Ilmar Galvão, citado no ARE n.º 776861, Rel. Min. Celso de Mello, j. 23/10/2013 , grifos nossos.

22

RE 389474/PR, Min. Rel. Celso de Mello, Primeira Turma, j. 10/05/2004.

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Estado do Pará de que, por se tratar de “vantagem pecuniária” honrada com recursos públicos, deveria ser atribuído às pensões especiais o mesmo tratamento conferido aos regramentos de servidor público estabelecido no artigo 169 da Constituição Federal.

9.3.3 Inocorrência de bis in idem A Nota Técnica nº 0062/2019 afirma ser inviável calcular a pensão especial tratada na cláusula 13 do Acordo de Solução Amistosa simultaneamente pelo ajuste periódico do salário-mínimo e pela aplicação do mesmo índice de reajuste aplicável aos vencimentos dos servidores públicos estaduais de nível fundamental do Estado do Pará, sob pena de bis in idem. Convém, novamente, reproduzir o teor da cláusula 13 do Acordo de Solução Amistosa: 13. O Estado do Pará concederá pensão legal, vitalícia e personalíssima, em caráter especial, no valor mensal de 1,5 (um e meio) salário-mínimo, a um representante de cada uma das famílias das vítimas, conforme projeto de lei de iniciativa do Poder Executivo a ser aprovado pela Assembleia Legislativa do Estado. O reajuste da pensão se dará pelo mesmo índice aplicado ao reajuste salarial dos servidores públicos estaduais de nível fundamental.

O uso da palavra “mensal” na primeira parte da cláusula 13 anteriormente reproduzida tem duas consequências: em primeiro lugar, a nosso ver, ele afasta o entendimento do Estado do Pará, constante na Nota Técnica nº 0062/2019, de que a forma correta de cálculo da pensão especial consistia em, primeiro, fixar o valor certo e determinado correspondente a 1,5 salário-mínimo à época da Lei Estadual nº 7.579/2011 (R$ 815,50) e, depois, corrigi-lo monetariamente, desde então, pelos índices aplicados ao reajuste salarial dos servidores públicos estaduais de nível fundamental. Com efeito, não é isso que a cláusula 13 supra estabelece. Pelo uso da palavra “mensal” na referida cláusula, o Estado do Pará se comprometeu a assegurar aos familiares das vítimas o pagamento, todo mês, de 1,5 salário-mínimo, ou seja, é preciso considerar o valor do salário-mínimo vigente no mês de pagamento e multiplicá-lo por 1,5, para ter-se o valor-base da pensão especial devida.

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A segunda consequência da redação adotada pela cláusula 13 do Acordo de Solução Amistosa é que não se pactuou o reajuste monetário do valor da pensão pela variação do salário-mínimo. O que se estabeleceu nessa cláusula foi o valor-base da pensão devida, e não um critério de atualização monetária. Com efeito, poder-se-ia falar em atualização monetária pelo salário-mínimo se tivesse sido pactuada a aplicação da variação percentual do salário-mínimo a cada período como índice de reajuste. Ilustrativamente: se o salário-mínimo em um determinado ano foi de R$ 100,00, e no ano seguinte passou a R$ 150,00, tem-se um acréscimo de 50%. Consequentemente, haveria atualização monetária pelo salário-mínimo se tivesse sido estabelecido que o valor da pensão seria corrigido conforme esse índice percentual, que, no exemplo, corresponderia a 50%. A cláusula 13 do Acordo de Solução Amistosa não traz, no entanto, esse racional. Como dito, ela estabeleceu o valor-base da pensão especial, e não um critério de atualização monetária, por isso não se vislumbra bis in idem, pois as naturezas entre o que é tratado na primeira parte da cláusula 13 e o que é tratado na segunda parte da cláusula 13 são distintas: a base de cálculo da pensão será o valor de 1,5 salário-mínimo vigente no mês de pagamento e a atualização monetária se dará sobre esse valor conforme o índice de reajuste salarial dos servidores públicos estaduais de nível fundamental. Nessa linha, não nos parece que o ARE nº 842.157/DF, mencionado na Nota Técnica nº 0062/2019, aproveite ao Estado do Pará. Na Nota Técnica nº 0062/2019, sustentou-se que, por esse julgado, o STF teria vedado a utilização de mais de um fator de correção monetária concomitantemente. Em primeiro lugar, como visto, não se trata, no caso em análise, de concomitância de índices de correção monetária. Em segundo lugar, não há nenhuma manifestação, no supracitado julgado, no sentido de vedar o uso concomitante de diferentes fatores de atualização monetária. Na realidade, o voto do Ministro Relator Dias Toffoli apenas afirmou não haver obrigatoriedade de fixação de pensão conforme o valor do salário-mínimo e exemplificou outras formas de ajuste da pensão que são possíveis mediante acordo. Veja-se: É evidente que a simples reafirmação da jurisprudência não tornará obrigatória a utilização do salário-mínimo na fixação e na correção das pensões alimentícias. Nada obsta que, como tem ocorrido corriqueiramente, a pensão fixada judicialmente, ou por meio de acordo entre as partes, também seja fixada em porcentagem sobre os rendimentos do

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devedor ou, ainda, mediante a fixação de um valor certo com o estabelecimento de índice de correção monetária.

Vale dizer, ainda, que a dinâmica de cálculo estabelecida na cláusula 13 do Acordo de Solução Amistosa não foi imposta ao Estado do Pará. Ela foi objeto de um acordo livremente assinado pelo Estado do Pará, que, evidentemente, não pode ser considerado parte hipossuficiente. Assim, não cabe falar, a nosso ver, em impossibilidade de cálculo da pensão especial por suposto bis in idem, quando se está diante de um critério de cálculo voluntariamente aceito pelo Estado do Pará, como forma de reparar os danos causados a direitos humanos das vítimas. Nesse sentido, o cálculo da pensão especial, de acordo com o reajuste a que fazem jus os servidores públicos estaduais de nível fundamental do Estado do Pará, deve ser entendido como uma liberalidade adicional de finalidade reparatória, acordada entre as partes pela cláusula 13 do Acordo de Solução Amistosa, que deve ser adicionada ao cálculo da pensão fixada em 1,5 salário-mínimo considerando suas variações ulteriores, conforme constitucionalmente garantido pelo inciso IV do artigo 7º da Constituição Federal de 1988. Do contrário, admitir-se que o Estado do Pará assuma uma obrigação em acordo para, em momento seguinte, arguir não ser possível cumpri-la por suposta contrariedade à lei implicaria consagrar o comportamento contraditório (malgrado seja vedado o venire contra factum proprium) e autorizar a Administração Pública a valer-se da própria torpeza. Nessa perspectiva, não havendo disposição no Acordo de Solução Amistosa afirmando que a pensão especial seria estabelecida em somente 1,5 salário-mínimo congelado ao valor vigente à época, a melhor interpretação da Cláusula 13 do Acordo de Solução Amistosa, à luz do princípio pro homine e do ordenamento jurídico brasileiro, é a de que a pensão especial deve ser calculada com base no salário-mínimo nacional, considerando suas variações ulteriores, aplicando-se o índice de reajuste salarial dos servidores públicos estaduais de nível fundamental do Estado do Pará sobre o valor apurado mês a mês mediante a multiplicação do valor do salário-mínimo vigente pelo múltiplo de 1,5.

9.3.4 Do princípio da legalidade Na Nota Técnica nº 0062/2019, o Estado do Pará afirmou que a solicitação dos peticionários, de correção dos cálculos da pensão especial, não poderia 279

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ser acolhida sob pena de violação ao princípio da legalidade, uma vez que a Lei Estadual nº 7.528/2011 (com a ressalva de que houve alteração de sua redação pela Lei nº 7.579/2011) teria estabelecido o valor fixo da pensão e os critérios de atualização monetária, de modo que a Administração estaria vinculada a esses ditames legais. Ocorre que, malgrado se afirme, na Nota Técnica nº 0062/2019, que não haveria nenhuma contradição entre o Acordo de Solução Amistosa e a Lei Estadual nº 7.528/2011, não é o que se verifica na prática. Na realidade, as Leis Estaduais nº 7.528/2011 e 7.579/2011 alteraram fundamentalmente aquilo que foi acordado com os peticionários e com os familiares das vítimas, contrariando, inclusive, a redação que constou na minuta de projeto de lei inserida no Anexo II do Acordo de Solução Amistosa. De fato, tanto a Cláusula 13 do Acordo de Solução Amistosa quanto o projeto de lei que constou em seu Anexo II estabeleciam o seguinte: Cláusula 13

Projeto de Lei (Anexo II)

“13. O Estado do Pará concederá pensão legal, vitalícia e personalíssima, em caráter especial, no valor mensal de 1,5 (um e meio) salário-mínimo, a um representante de cada uma das famílias das vítimas, conforme projeto de lei de iniciativa do Poder Executivo a ser aprovado pela Assembleia Legislativa do Estado. O reajuste da pensão se dará pelo mesmo índice aplicado ao reajuste salarial dos servidores públicos estaduais de nível fundamental.”

“Art. 1º. Fica o Estado autorizado a pagar, a título de indenização por danos morais e materiais, a importância de R$ 38.400,00 (trinta e oito mil e quatrocentos reais), acrescida do pagamento de pensão, a um representante dos familiares das oito vítimas do Caso nº 12277 em trâmite perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos/ OEA, referente ao homicídio de oito trabalhadores rurais nas adjacências da Fazenda Ubá, Município de São João do Araguaia, Estado do Pará, em junho de 1985. Parágrafo único. A pensão legal, vitalícia e personalíssima, a que se refere o caput corresponde ao valor mensal de 1,5 (um e meio) salário-mínimo e será paga a um único representante indicado pelas famílias das vítimas. O reajuste da pensão se dará pelo índice aplicado ao reajuste salarial dos servidores públicos estaduais de nível fundamental.”

Veja-se que nem na cláusula 13 do Acordo de Solução Amistosa nem no projeto de lei que compunha seu Anexo II previu-se que a pensão seria calculada conforme o valor do salário-mínimo vigente à época da lei estadual que seria

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elaborada, para subsequente reajuste monetário conforme os índices de reajuste salarial aplicados aos servidores públicos estaduais de nível fundamental. Contrariamente ao que foi acordado com os familiares das vítimas e com os peticionários, as Leis Estaduais nº 7.528/2011 e 7.579/2011 trouxeram previsões diferentes. Por meio delas, fixou-se um valor preestabelecido, consistente em 1,5 salário-mínimo então vigente, e previu-se a atualização monetária desde então. Confira-se: Lei Estadual nº 7.528/2011

Lei Estadual nº 7.579/2011

“Art. 1º. Fica concedida, a título de indenização por danos morais e materiais, a importância de R$ 38.400,00 (trinta e oito mil e quatrocentos reais), acrescida do pagamento de Pensão Especial, a cada um dos representantes dos familiares das oito vítimas do Caso nº 12.277, em trâmite perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos/ OEA, referente ao homicídio de oito trabalhadores rurais nas adjacências da Fazenda Ubá, Município de São João do Araguaia, Estado do Pará, ocorrido em junho de 1985. Parágrafo único. A Pensão Especial prevista no caput deste artigo terá o valor mensal de R$ 765,00 (setecentos e sessenta e cinco reais), reajustado na mesma data e percentual aplicado à remuneração dos Servidores Públicos Estaduais, ficando garantido o recebimento não inferior ao menor vencimento-base do Funcionário Público Estadual.”

“Art. 1º. O parágrafo único do art. 1º da Lei nº 7.528, de 14 de junho de 2011, passa a vigorar com a seguinte redação: “Art. 1º.......................................... Parágrafo único. A Pensão Especial vitalícia e personalíssima prevista no caput deste artigo é fixada no valor de R$ 817,50 (oitocentos e dezessete reais e cinquenta centavos) e será reajustada na mesma data e percentual aplicados à remuneração dos servidores públicos estaduais de nível fundamental.”

Veja-se que as Leis Estaduais nº 7.528/2011 e 7.579/2011 não seguiram aquilo que foi objeto do Acordo de Solução Amistosa, contrariando a vontade das partes e aquilo a que tinham anuído os familiares das vítimas e peticionários, ou seja, ao argumento de suposta legalidade, o Estado do Pará, na verdade, acabou por modificar o conteúdo do Acordo de Solução Amistosa, em prejuízo dos familiares das vítimas. Ademais, embora, sob uma perspectiva clássica, o princípio da legalidade seja entendido, no âmbito administrativo, como um limite de atuação ao Poder Público, por estabelecer que à Administração Pública só é permitido fazer aquilo que está previsto em lei, tem-se observado uma transmutação do conteúdo do aludido princípio. 281

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Conforme ensina a doutrina, a legalidade tem sido substituída pela constitucionalidade, com maior valorização dos princípios e valores constitucionais e diminuição do âmbito da lei. Veja-se: Carlos de Cabo Martín (2000:79 ss.) resume o que vem ocorrendo com o princípio da legalidade e, de outro lado, com o controle judicial. Suas observações aplicam-se, em grande medida, ao direito brasileiro. Quanto à legalidade, o autor espanhol fala em substituição da legalidade por constitucionalidade, com a ampliação do âmbito da Constituição e diminuição do âmbito da lei; extensão do âmbito dos direitos e liberdades até entender-se que praticamente todas as questões estão impregnadas dos mesmos, levando a uma contaminação do individualismo; tendência a colocar na Constituição a regulação de todas as matérias, sem deixar muito campo ao legislador; tendência à formação de um direito constitucional de princípios e valores, o que muda a forma de interpretação da Constituição, tornando-a mais complexa e difusa, com prejuízo para a certeza do direito.23

No caso em análise, suscitar o princípio da legalidade, com base em legislação que alterou aquilo que havia sido objeto do Acordo de Solução Amistosa, para justificar o descumprimento deste último, não nos parece coadunar com a moralidade administrativa e, relativamente ao princípio da legalidade em si, contraria os direitos constitucionais que se buscou resguardar e compensar com o aludido acordo, em especial o direito ao salário-mínimo, previsto no artigo 7º, inciso IV, da Constituição Federal. Parece-nos que o princípio da legalidade não está sendo aplicado de forma adequada pelo Estado do Pará e, na prática, importa afronta a direitos fundamentais dos familiares das vítimas, consagrados pelo texto constitucional e que, por isso, com fulcro na constitucionalidade e na ponderação, devem prevalecer. Há que se considerar, ainda, a incidência do princípio da consensualidade, que também tem ganhado força e relevância no direito administrativo moderno, e que preconiza ser o consenso de um novo instrumento de atuação da Administração Pública, visando à eficiência e à redução ou mitigação

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DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 33ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.

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de conflitos, estando inclusive embasado pelo artigo 2624 do Decreto-Lei nº 4.657/1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro). Confira-se o que ensina a doutrina: 7. Consensualidade: tanto a doutrina europeia como a brasileira ressaltam a procura da consensualidade como novo instrumento de atuação da Administração Pública. [...] Por sua vez, a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-lei nº 4.657, de 4-9-42, com as alterações introduzidas pela Lei nº 13.655, de 25-4-18), contempla, no artigo 26, permissão genérica de celebração de compromisso para “eliminar irregularidades, incerteza jurídica ou situação contenciosa na aplicação do direito público, inclusive no caso de expedição de licença”. Tal compromisso deverá ser precedido de manifestação do órgão jurídico e, “quando for o caso”, de realização de consulta pública, devendo estar presentes razões de “relevante interesse geral”. Tais exigências contribuem para a adequada motivação da celebração do compromisso. [...] Na realidade, o consenso tem o mérito de reduzir o lado autoritário da administração pública, contribuindo para a sua democratização. Aliás, pode-se dizer que a tendência para a consensualidade se insere como uma das formas de expressão da democratização da Administração Pública.25

O princípio da consensualidade, pois, justifica reconhecer no Acordo de Solução Amistosa verdadeira norma jurídica, voluntariamente assumida pelo Estado do Pará, e que, por isso, deve igualmente ser respeitada, como se lei fosse. Esse posicionamento se coaduna, inclusive, com o princípio da confiança, que também rege a atividade da Administração Pública e que, como ensina a doutrina, busca justamente sanar conflitos que podem surgir entre os princípios da legalidade e da estabilidade das relações jurídicas. Confira-se:

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“Art. 26. Para eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa na aplicação do direito público, inclusive no caso de expedição de licença, a autoridade administrativa poderá, após oitiva do órgão jurídico e, quando for o caso, após realização de consulta pública, e presentes razões de relevante interesse geral, celebrar compromisso com os interessados, observada a legislação aplicável, o qual só produzirá efeitos a partir de sua publicação oficial.”

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DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Op. cit. 283

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As teorias jurídicas modernas sempre procuraram realçar a crise conflituosa entre os princípios da legalidade e da estabilidade das relações jurídicas. Se, de um lado, não se pode relegar o postulado de observância dos atos e condutas aos parâmetros estabelecidos na lei, de outro é preciso evitar que situações jurídicas permaneçam por todo o tempo em nível de instabilidade, o que, evidentemente, provoca incertezas e receios entre os indivíduos. [...] Como já foi sublinhado em estudos modernos sobre o tema, o princípio em tela comporta dois vetores básicos quanto às perspectivas do cidadão. De um lado, a perspectiva de certeza, que indica o conhecimento seguro das normas e atividades jurídicas, e, de outro, a perspectiva de estabilidade, mediante a qual se difunde a ideia de consolidação das ações administrativas e se oferece a criação de novos mecanismos de defesa por parte do administrado, inclusive alguns deles, como o direito adquirido e o ato jurídico perfeito, de uso mais constante no direito privado. [...] Em diversos outros aspectos se tem desenvolvido o princípio da segurança jurídica e de seu corolário – o princípio da proteção à confiança. No campo da responsabilidade civil do Estado, por exemplo, decidiu-se que o governo federal deveria indenizar os prejuízos causados a empresários do setor sucroalcooleiro em virtude de sua intervenção no domínio econômico, fixando preços inferiores aos propostos por autarquia vinculada ao próprio governo. Reconheceu-se que, embora lícita a intervenção, a hipótese estaria a configurar a responsabilidade objetiva do Poder Público – tudo por afronta à confiança depositada pelos prejudicados em pessoa da mesma administração federal [...].26

Vê-se que o princípio da confiança busca resguardar o administrado de situações inesperadas, contrárias a atos administrativos pretéritos, resguardando o necessário grau de estabilidade das relações jurídicas estabelecidas com o Poder Público e afastando o risco de arbitrariedades perante os particulares. A nosso ver, alterar por lei o objeto do que fora acordado no Acordo de Solução Amistosa contraria a confiança dos familiares das vítimas quanto aos valores que receberiam a título de pensão especial, resultante de violações a direitos

26 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 34ª ed. São Paulo: Atlas, 2020, grifos nossos. 284

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fundamentais das vítimas, cuja responsabilidade foi expressamente assumida pelo Estado do Pará. Há que se considerar, também, que as Leis Estaduais nº 7.528/2011 e nº 7.579/2011, ao modificarem o conteúdo do Acordo de Solução Amistosa, contrariaram a proteção ao ato jurídico perfeito em que referido acordo havia se consubstanciado. Com efeito, diz o artigo 6º, caput, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, que “a Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada”, e seu §1º reputa ato jurídico perfeito aquele já consumado segundo a lei vigente à época. Parece-nos que o Acordo de Solução Amistosa, uma vez assinado, tornou-se ato jurídico perfeito e, portanto, as Leis Estaduais que pretendiam autorizar o pagamento da pensão especial tal como havia sido acordado não poderiam ter modificado o conteúdo do pacto. Entendemos, portanto, que o princípio da legalidade, no caso em comento, conflita com outros princípios de mesma hierarquia, que também regem a atuação da Administração Pública, em especial os princípios da constitucionalidade, da moralidade, da consensualidade, da confiança e a proteção ao ato jurídico perfeito. Tornar lei algo que não foi objeto do Acordo de Solução Amistosa, para depois fiar-se na necessidade de cumprir a lei para justificar o descumprimento do que foi acordado, parece-nos não se sustentar com um sopesamento dos demais princípios já mencionados, tampouco com a natureza dos direitos das vítimas e de seus familiares e com a natureza constitucional desses direitos. Dessa forma, entendemos que o princípio da legalidade não pode servir de escusa para a prática de atos contrários aos compromissos assumidos pelo Estado do Pará, em prejuízo dos direitos dos familiares das vítimas, mormente diante da gravidade das violações a direitos humanos no caso em questão e da hipossuficiência desses familiares, não sendo justificativa para o não acolhimento do pleito de ajuste dos cálculos da pensão especial feito pelos peticionários.

9.3.5 Os equívocos interpretativos que levaram ao pagamento da pensão especial em valor menor do que o devido Os peticionários informaram, em manifestação datada de 5 de junho de 2019, que, nos termos da cláusula 13 do Acordo de Solução Amistosa, o Estado do Pará se comprometeu a conceder pensão especial vitalícia a um representante de cada uma das famílias das vítimas, no valor de 1,5 salário-mínimo. Adicionalmente, 285

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esse valor também deve ser atualizado conforme o reajuste aplicável aos servidores públicos estaduais de nível fundamental do Estado do Pará. Nesse sentido, os peticionários afirmaram que a partir de fevereiro de 2012, houve uma série de equívocos no cálculo das pensões especiais que resultaram no pagamento de valores abaixo do devido. Isso ocorreu porque os valores não foram adequadamente atualizados pelas alterações do aumento do salário-mínimo nacional. A tabela abaixo ilustra o histórico dos ajustes aos valores da pensão especial: Histórico de ajustes do salário-mínimo Período

Fundamento Legal

2012

Ajuste do salário-mínimo de R$ 545,00 para R$ 622,00, pelo Decreto nº 7.655/2011, publicado em 26/12/2011.

2013

Ajuste do salário-mínimo de R$ 622,00 para R$ 678,00, pelo Decreto nº 7.872/2012, publicado em 30/12/2012.

2014

Ajuste do salário-mínimo de R$ 678,00 para R$ 724,00, pelo Decreto nº 8.166/2013, publicado em 24/12/2013.

2015

Ajuste do salário-mínimo de R$ 724,00 para R$ 788,00, pelo Decreto nº 8.381/2014, publicado em 30/12/2014.

2016

Ajuste do salário-mínimo de R$ 788,00 para R$ 880,00, pelo Decreto nº 8.618/2015, publicado em 30/12/2015.

2017

Ajuste do salário-mínimo de R$ 880,00 para R$ 937,00, pelo Decreto nº 8.948/2016, publicado em 30/12/2016.

2018

Ajuste do salário-mínimo de R$ 937,00 para R$ 954,00, pelo Decreto nº 9.255/2017, publicado em 29/12/2017.

2019

Ajuste do salário-mínimo de R$ 954,00 para R$ 998,00, pelo Decreto nº 9.661/2019, publicado em 01/01/2019.

2020

Ajuste do salário-mínimo de R$ 998,00 para R$ 1.039,00 no mês de janeiro de 2020, e R$ 1.045,00 a partir de fevereiro de 2020, pela Lei nº 14.012020, publicada em 12/06/2020.

2021

Ajuste do salário-mínimo de R$ 1.045,00 para R$ 1.100,00, pela Medida Provisória nº 1.021/2021, publicada em 31/12/2020.

Nesse contexto, como forma de garantir a primazia da dignidade da pessoa humana e a prevalência dos direitos fundamentais, entendemos que o Estado do 286

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Pará deveria, de fato, efetuar o pagamento retroativo da pensão especial, considerando a diferença entre o que deveria ter sido pago e o que foi efetivamente pago, aplicando para esse cálculo: (i) as variações ulteriores do salário-mínimo de 2012 até 2021, bem como (ii) os reajustes aplicáveis aos servidores públicos estaduais de nível fundamental do Estado do Pará, desde 2012 até 2021. Consequentemente, a partir de 2021, os valores da pensão especial aos familiares das vítimas deverão ser calculados refletindo tanto as variações futuras do salário-mínimo quanto o reajuste salarial aplicável aos servidores públicos estaduais de nível fundamental do Estado do Pará, pois essa é a medida que melhor protege as garantias e os direitos fundamentais dos familiares das vítimas, em observância ao princípio pro homine, base hermenêutica para aplicação e salvaguarda dos direitos humanos.

Conclusão À luz do princípio pro homine, que deve orientar a interpretação de quaisquer questões envolvendo violações a direitos humanos, de forma a garantir a interpretação mais favorável à dignidade da pessoa humana e à prevalência dos direitos humanos, entendemos que os peticionários têm razão em seu pleito de revisão, pelo Estado do Pará, dos cálculos da pensão mensal especial tratada na cláusula 13 do Acordo de Solução Amistosa. Não nos parece haver fundamento para que o Estado do Pará não use a variação do valor do salário-mínimo ao longo do tempo para cálculo da aludida pensão, devendo-se obter o seu valor-base mediante a multiplicação do valor do salário-mínimo vigente no mês de pagamento pelo fator de 1,5. Por um lado, a Súmula Vinculante nº 4 não nos parece ser aplicável, haja vista que o pagamento da pensão especial, assegurado pela cláusula 13 do Acordo de Solução Amistosa, tem como objetivo garantir a subsistência dos familiares das vítimas, possuindo natureza indenizatória e alimentar, e a jurisprudência do STF é sólida em reconhecer a possibilidade de fixação de pensão de caráter alimentar em múltiplos do salário-mínimo. Além disso, a Súmula Vinculante nº 4 veda o uso do salário-mínimo como indexador de base de cálculo apenas de vantagem de servidor público ou de empregado, não sendo esse o caso dos familiares das vítimas. Por outro lado, a cláusula 13 do Acordo de Solução Amistosa não veda o cálculo da pensão conforme os ajustes do salário-mínimo ao longo do tempo. Pelo contrário, por meio dela previu-se o pagamento de pensão mensal de 1,5 287

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salário-mínimo, do que se pode concluir que o objeto do acordo foi o pagamento, todo mês, do valor de 1,5 salário-mínimo vigente no momento do pagamento. Adicionalmente, previu-se na cláusula 13 do Acordo de Solução Amistosa o reajuste da pensão especial pelos mesmos índices de reajuste salarial dos servidores públicos estaduais de nível fundamental. O Estado do Pará argumenta que a aplicação desse reajuste não seria possível, se adotar o cálculo da pensão conforme o valor do salário-mínimo vigente na data do pagamento, sob pena de bis in idem. Entendemos não haver, porém, risco de bis in idem, pois o Acordo de Solução Amistosa não adotou o salário-mínimo como critério de atualização monetária. Ele previu, apenas, que o valor-base de pensão especial a cada mês deve corresponder a 1,5 salário-mínimo, sendo possível, sobre esse valor, aplicar-se o índice de reajuste também aplicado aos servidores públicos estaduais de nível fundamental, pois a aplicação desse índice, sim, visa à atualização monetária. As naturezas do método de cálculo do valor-base da pensão e do método de cálculo da correção monetária são distintas, pelo que não haveria que se falar em bis in idem. Ademais, há que se considerar que essa metodologia foi livremente pactuada pelo Estado do Pará, não nos parecendo cabível, agora, sua intenção de furtar-se ao cumprimento da obrigação assumida sob o argumento de que a metodologia de cálculo da pensão especial não encontraria suporte legal, por vedação ao comportamento contraditório e porque a ninguém é dado valer-se da própria torpeza. Adicionalmente, não nos parece cabível ao Estado do Pará sustentar que, pelo princípio da legalidade, está vinculado ao cumprimento das Leis Estaduais nº 7.528/2011 e nº 7.579/2011, que fixaram um valor fixo para a pensão especial (R$ 817,50) e determinaram sua atualização monetária desde então, pelo índice de correção salarial dos servidores públicos estaduais de nível fundamental. As supracitadas Leis Estaduais alteraram o objeto da cláusula 13 do Acordo de Solução Amistosa, contrariando os termos do projeto de lei que constou em seu Anexo II, de modo que acabaram por alterar aquilo que foi pactuado com o Estado do Pará. Dessa forma, o princípio da legalidade nesse cenário, a nosso ver, perde espaço diante dos princípios da moralidade, da confiança, da constitucionalidade, da consensualidade e do respeito ao ato jurídico perfeito. Por todo o exposto, entendemos cabível o pleito dos peticionários, para que o Estado do Pará realize o ressarcimento retroativo da pensão especial, consistente na diferença entre os valores que deveriam ter sido pagos e o que foi efetivamente pago aos familiares das vítimas, devidamente atualizados, aplicando as variações do salário-mínimo de 2012 até 2020, sem prejuízo da 288

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incidência dos índices de reajuste salarial dos servidores públicos estaduais de nível fundamental, nos períodos em que vigeram. Para as pensões futuras, entendemos que a partir de 2021 o cálculo e pagamento da pensão especial deverá ser efetuado refletindo tanto as variações futuras do salário-mínimo (multiplicando-os por 1,5) quanto o reajuste aplicável aos servidores públicos estaduais de nível fundamental do Estado do Pará.

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10. Memorando sobre Ação Civil Pública da Maré

Neste capítulo, apresentaremos o memorando elaborado em fevereiro de 2020 para a Redes de Desenvolvimento da Maré.1 Com o intuito de contribuir com estratégias de incidência da organização, o documento tece considerações acerca da Ação Civil Pública nº 0215700-68.2016.8.19.0001 (denominada ACP da Maré), proposta pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, no contexto das violações de direitos dos moradores do conjunto de favelas da Maré durante operações policiais. O texto também discorre sobre os marcos normativos da atual política de segurança pública do Estado do Rio de Janeiro e suas consequências para a situação enfrentada pelos habitantes do Complexo da Maré e indica potenciais estratégias judiciais e legislativas. O memorando evidencia a necessidade de participação popular na construção de uma política de segurança pública que efetivamente proteja direitos da população.

Introdução e escopo O presente memorando tem como ponto focal a Ação Civil Pública nº 021570068.2016.8.19.0001 (ACP da Maré), na qual a Redes de Desenvolvimento da Maré (Redes da Maré) atuou na figura de amicus curiae. A Redes da Maré requereu ao Mattos Filho análise jurídica referente: (i) às possibilidades de atuação da entidade no âmbito da ACP da Maré; (ii) aos marcos normativos pertinentes à situação fática enfrentada pelos habitantes do 1

Isabela Campos Vidigal Takahashi de Siqueira, Lucas Sousa Guedes, Marcela Melo Perez Pittigliani, Maria Eduarda Caramez Vieira, Mariana Papelbaum Gouvea, Marina Guerra Villela e Thales Dominguez Barbosa da Costa. 293

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Complexo da Maré, ou seja, aqueles relacionados à atual política de segurança pública do Estado do Rio de Janeiro; e, por fim, (iii) a eventuais estratégias judiciais ou legislativas relacionadas ao tema da segurança pública. O texto está, assim, dividido em cinco seções principais. Na primeira, serão examinados o conceito de Ação Civil Pública (ACP) e a especificidade da ACP da Maré; na segunda, são analisados uma série de processos em trâmite perante o Judiciário nacional com objetos similares; e, a partir desse exame, na terceira parte serão apresentadas estratégias alternativas de atuação judicial para assegurar os direitos que se pretendem ver garantidos no âmbito da ACP da Maré; na quarta parte, serão expostos os principais marcos normativos relativos ao uso de equipamentos de segurança e à atuação policial, bem como os mecanismos regionais de controle da atuação das polícias; e, por fim, na quinta parte, serão analisados os questionamentos específicos elaborados pela Redes da Maré ao Mattos Filho.

10.1 Ação Civil Pública da Maré

10.1.1 Ação Civil Pública: Conceitos, Abrangência e Legitimidade A ACP é o instrumento processual brasileiro de proteção dos interesses difusos e coletivos em sentido estrito e individuais homogêneos, que encontra previsão no artigo 129, inciso III, da Constituição Federal. A Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985 (Lei da ACP), define a ACP como uma ação que busca proteger o meio ambiente, o consumidor e qualquer outro interesse difuso e coletivo, inclusive a honra e a dignidade de grupos raciais, étnicos e religiosos. Além do objeto específico, vale destacar que há um rol de agentes que possuem legitimidade para ajuizar uma ACP. Segundo o artigo 5º da Lei da ACP, têm legitimidade o Ministério Público, a Defensoria Pública, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, a autarquia, empresa pública, fundação, sociedade de economia mista, e a associação (esta última, apenas se estiver constituída há pelo menos um ano e se possuir como uma de suas finalidades institucionais a proteção aos direitos coletivos).

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10.1.2 Análise da ACP da Maré A ACP da Maré foi proposta pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, em parceria com a Redes da Maré, contra o Estado do Rio de Janeiro, com o principal objetivo de proteção dos moradores do Complexo da Maré, na cidade do Rio de Janeiro, durante as operações policiais realizadas em 2016. A ação foi autuada sob o número 0215700-68.2016.8.19.0001 e distribuída para a 6ª Vara de Fazenda Pública da Capital. Inicialmente, a Defensoria propôs a ação em razão de uma operação policial de grande porte, realizada em 29 de junho de 2016 pelo Batalhão de Operações Especiais (Bope) e pelo Batalhão de Policiamento de Choque (BPCHQ), deixando ao menos sete pessoas baleadas, com uma vítima fatal, além de cerca de 150 pessoas sitiadas dentro da sede da entidade. Em 30 de junho de 2016, a Justiça deferiu uma liminar com base no artigo 5º, XI, da Constituição Federal, para que fossem cessadas quaisquer buscas domiciliares no período noturno, bem como para que o Estado do Rio de Janeiro adotasse imediatamente todas as medidas cabíveis para manter a ordem e a tranquilidade pública no Complexo da Maré durante as operações policiais, a fim de que fosse assegurado o direito de ir e vir da população local. Posteriormente, a Defensoria aditou a petição inicial para ampliar o escopo da ação e buscar que o Estado do Rio de Janeiro adotasse uma série de medidas para resguardar a proteção da população residente no Complexo da Maré, durante quaisquer operações policiais vindouras no território. Os principais pedidos foram: (i) a elaboração de um plano de redução de danos para o enfrentamento das violações de direitos humanos decorrentes de intervenções dos agentes policiais; (ii) a presença obrigatória de ambulâncias em todas as operações policiais realizadas; (iii) a instalação de câmeras de vídeo e áudio e de sistema de localização por satélite (GPS) nas viaturas blindadas (“caveirões”) das Polícias Militar e Civil; (iv) que denúncias anônimas não sejam admitidas como justificativa para invasões domiciliares; dentre outros. Em 2018, a Redes da Maré solicitou o seu ingresso na ação na qualidade de amicus curiae, mas até o presente momento não houve decisão expressa do juízo deferindo a intervenção da Redes da Maré ou fixando os limites de sua atuação. A audiência designada para 27 de junho de 2019 foi cancelada pela juíza que assumiu o processo e, ato contínuo, sobreveio abrupta sentença de improcedência integral dos pedidos formulados na inicial, pois seriam genéricos e abstratos e, por isso, inadequados para um pedido condenatório, “posto que [versam sobre] comportamentos aplicáveis a uma coletividade e, se acolhidos, 295

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constituiriam uma verdadeira modificação do plano de gestão traçado pelo Governo do Estado”. A Defensoria interpôs recurso de apelação contra referida sentença, sustentando a procedência dos seus pedidos. Para que a sentença não passasse a produzir efeitos imediatos e, consequentemente, cessassem os efeitos da decisão liminar anteriormente concedida, foi apresentado pedido de efeito suspensivo ativo autônomo à apelação, diretamente para o Tribunal de Justiça, que entendeu por bem reestabelecer os efeitos da decisão liminar. Já no Tribunal, ao tempo de elaboração deste memorando, havia sido determinada a realização de audiência para tentativa de conciliação entre as partes, agendada para o dia 30 de março de 2020. O processo foi, então, suspenso, inicialmente em virtude da pandemia de Covid-19 e, em um segundo momento, em virtude da propositura da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635 perante o Supremo Tribunal Federal – a “ADPF das Favelas”, que pretendia discutir operações policiais e violência praticada por agentes do Estado de maneira mais ampla.2

10.2 Análise de processos no Brasil com objetos similares à ACP da Maré A partir da análise de precedentes do Supremo Tribunal Federal (STF), Superior Tribunal de Justiça (STJ), Tribunais Regionais Federais (especialmente no Tribunal Regional Federal da 1ª Região – TRF1), Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ) e Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP), foi possível identificar casos análogos à ACP da Maré. A similaridade ocorre tanto em relação à existência de ACP visando à implementação de políticas públicas por meio da atuação do Judiciário, no intuito de garantir direitos fundamentais, como o direito à saúde e o direito à educação, quanto em relação à existência de ACP visando à regulação de políticas de segurança pública. A maioria dos precedentes indicados neste memorando representa o posicionamento que os tribunais superiores e estaduais têm adotado com relação à implementação de políticas públicas, pelo Poder Judiciário, por meio do ajuizamento de uma ACP.

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Até 22 de junho de 2022, o trâmite processual ainda se encontrava sobrestado.

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Não obstante, analisamos também um habeas corpus coletivo – impetrado com o objetivo de obter, por meio de ordem judicial, a efetivação de direitos e garantias fundamentais, o que demonstra que o Poder Judiciário vem aceitando instrumentos jurídicos diversos para implementação de políticas públicas essenciais à tutela de direitos constitucionais.

ACP sobre implementação de políticas públicas STF • Agravo Regimental na Suspensão de Tutela Antecipada nº 818 AGR/MG 11804607/MS, Min. Cármen Lúcia, julgado em 30 de junho de 2017. Trata-se de Ação Civil Pública ajuizada pelo Ministério Público Federal (MPF) contra a União Federal, o Estado de Minas Gerais e o Município de Uberlândia/ MG, visando à inclusão “de portadores de necessidades especiais” dentre os beneficiários do Programa Farmácia Popular do Brasil. Em sua defesa, o estado de Minas Gerais alegou (i) ilegitimidade passiva; (ii) ausência de previsão legal à pretensão do demandante; (iii) impossibilidade de o Estado suprir todas as necessidades de todos os cidadãos; e (iv) que foge da alçada do Judiciário determinar ao Estado a implementação de todo e qualquer pleito, desconsiderando as políticas públicas existentes. A União, por sua vez, alegou (i) carência de ação; e (ii) ilegitimidade passiva. A sentença acolheu a preliminar de carência de ação por impossibilidade jurídica do pedido e declarou extinto o processo, sem resolução do mérito. Acatou, portanto, o argumento de que o acolhimento da pretensão implicaria violação ao princípio da separação dos Poderes, na medida em que inexistiria qualquer omissão da Administração Pública quanto à implementação de políticas públicas relacionadas a direitos constitucionais essenciais, de modo a autorizar a atuação extraordinária do Poder Judiciário. Ato contínuo, o MPF interpôs recurso de apelação, suscitando as seguintes teses: a. O pedido seria juridicamente possível, seja pela ausência de vedação legal explícita para se alcançar o provimento jurisdicional almejado, seja em face do princípio da inafastabilidade da tutela jurisdicional, assegurado pela Constituição Federal; e b. A atuação do Poder Judiciário não se restringe ao exame de aspectos meramente extrínsecos do ato administrativo, na medida em que as razões de conveniência e oportunidade também se sujeitam aos princípios 297

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constitucionais vetores da administração pública, mormente em face da flagrante violação dos princípios da isonomia, da razoabilidade e da dignidade da pessoa humana. Diante disso, o TRF1 deferiu a tutela antecipada requerida pelo MPF para [...] determinar à União Federal que, no prazo de 10 (dez) dias, contados a partir da ciência desta decisão, proceda à inclusão das pessoas portadoras de necessidades especiais como beneficiárias do Programa Farmácia Popular do Brasil, [...] devendo, ainda, juntamente com o Estado de Minas Gerais e o Município de Uberlândia/MG, disponibilizar, em igual prazo, às pessoas com deficiência, usuárias do Sistema Único de Saúde, fraldas em todos os tamanhos existentes no mercado.

A União Federal, então, requereu ao STF a suspensão da tutela antecipada (STA nº 818) que foi indeferida pelo Ministro Ricardo Lewandowski. Na sequência, a União interpôs agravo interno contra a referida decisão, ao qual foi negado provimento, nos seguintes termos: Este Supremo Tribunal tem entendido que, em hipóteses excepcionais, o Poder Judiciário pode determinar a implementação de políticas públicas sem que isso configure ofensa ao princípio da separação dos Poderes. A Agravante não trouxe argumentos suficientes a alterar a decisão agravada, a qual se fundamentou na ausência de lesão à ordem e à economia públicas.

Assim, no julgamento definitivo da apelação do MPF, o TRF1 deu provimento ao recurso para anular a sentença e determinar o retorno dos autos ao juízo de origem, para fins de regular instrução e julgamento do feito. Em julho de 2020, a ação foi enfim julgada procedente.

STJ • Recurso Especial 1733412/SP, Segunda Turma, Relator Ministro Og Fernandes, julgado em 17 de setembro de 2019. Trata-se de ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP) contra o Município de São Paulo, visando à implementação de melhorias nos serviços prestados em hospital do Município de São Paulo, como (i) adequação de salas de atendimento, por meio de obras, troca de móveis 298

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e equipamentos; (ii) construção de entradas independentes para salas de atendimento de emergência; (iii) conserto de elevadores; e (iv) preenchimento do quadro de médicos. A sentença julgou a ação improcedente, ao fundamento de que seria inviável ao Poder Judiciário impor ao Poder Executivo a concretização de políticas públicas, por ferir a separação de poderes e o princípio da autonomia do administrador público. O MPSP interpôs recurso de apelação, ao qual foi negado provimento pelo TJSP, nos seguintes termos: “É em discussão sobre definição de política pública que se acaba aqui por adentrar, com expectativa de que o Judiciário diga e imponha ao administrador, substituindo-o na seleção de suas prioridades, o que deve fazer. Mas esse não é o papel do Judiciário”. Ato contínuo, o MPSP interpôs recurso especial contra o acórdão do TJSP, o qual foi provido, ao entendimento de que: 1. O controle judicial de políticas públicas é plenamente admitido em nosso sistema, ainda que em caráter extraordinário, em especial quando as opções administrativas são antecipadas, limitadas e vinculadas pelo legislador; 2. O TJSP, ao se limitar a afirmar, de forma genérica, a mera intervenção do Judiciário na discricionariedade do administrador, sem a análise dos pedidos do MPSP, incorreu em omissão. Em razão da referida omissão, os autos retornaram ao TJSP, para que os pedidos formulados pelo MPSP na ACP fossem devidamente apreciados.3 • Recurso especial nº 1804607/MS, Segunda Turma, Relator Ministro Herman Benjamin, julgado em 10 de setembro de 2019 Trata-se de ACP ajuizada pelo Ministério Público do Mato Grosso do Sul (MPMS) contra o Município de Dourados e a empresa Engepar Engenharia e Participações LTDA. (Engepar), visando à proteção do patrimônio público e do meio ambiente, por meio de obras de drenagem pluvial. Em síntese, o MPMS fundamentou seu pedido “na falta tanto de estrutura física como de manutenção ou improficiência dos sistemas de drenagem de águas implantados nos rios locais, o que vem acarretando inúmeros prejuízos locais, tais como inundações, alagamento de residências e devastação de florestas”. A ação foi julgada improcedente, o que foi confirmado pelo Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul (TJMS), com base nos seguintes argumentos: 3

Até junho de 2022, o TJSP não havia proferido novo julgamento acerca da matéria. 299

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(i) Não obstante detenha o MPMS pertinência subjetiva para a demanda, a intrusão do Poder Judiciário na tomada de decisões de políticas públicas é restrita, porque a correção jurisdicional de atos do governo é excepcional e deve obedecer a rígidos critérios objetivos; (ii) Para atuação do Poder Judiciário, é necessário que ocorra absoluta inércia da Administração Pública na consecução de suas obrigações constitucionais, como no caso de deixar de oferecer, de forma deliberada, um serviço que constitua direito básico da população; e (iii) No caso em questão, não estaria verificada omissão do Poder Público municipal que pudesse caracterizar injustificável inércia estatal e, assim, permitir a ingerência direta do Poder Judiciário, sem risco de comprometer o princípio constitucional da separação dos Poderes. Contra o acórdão do TJMS que confirmou a sentença de improcedência da ação, o MPMS interpôs recurso especial, que foi provido sob os seguintes argumentos: (i) A atuação do Poder Judiciário no controle das políticas públicas não pode se dar de forma indiscriminada, pois isso violaria o princípio da separação dos Poderes. No entanto, quando a Administração Pública, de maneira clara e indubitável, viola direitos fundamentais por meio da execução ou falta injustificada de programas de governo, a interferência do Poder Judiciário é perfeitamente legítima e serve como instrumento para restabelecer a integridade da ordem jurídica ultrajada; (ii) Configurada, no caso em análise, a violação à lei pelo Poder Público, o Poder Judiciário deve determinar a realização prática da promessa constitucional; e (iii) Comprovado tecnicamente ser imprescindível para o meio ambiente a realização de obras de drenagem, tem o Poder Judiciário legitimidade para exigir o cumprimento da norma, razão pela qual deve ser determinado ao Município de Dourados que promova a adequação e manutenção do sistema de drenagem de águas pluviais, com vistas a garantir a efetivação do direito à saúde, ao saneamento básico, bem como ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. A Engepar interpôs recurso extraordinário e, posteriormente, recurso extraordinário com agravo contra o acórdão do STJ, ao qual foi negado seguimento pelo STF.

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ACP sobre regulamentação de segurança pública STF • Recurso Extraordinário nº 367432/SP, Segunda Turma, Relator Ministro Eros Grau, julgado em 17 de setembro de 2009. Trata-se de ACP ajuizada pelo Ministério Público do Paraná (MPPR) contra o Estado do Paraná visando (i) à nomeação de delegado de polícia concursado para o Município de Brasilândia do Sul, e que fosse mantido delegado de polícia do Município de Alto Piquiri; (ii) à designação de funcionários para as respectivas delegacias; (iii) que fossem alocadas viaturas em perfeitas condições de uso com o fornecimento de combustível; e (iv) que fossem mantidos aparelhos de rádio que possibilitem comunicação com viatura. Os pedidos do MPPR foram julgados procedentes e o Estado do Paraná e o Banco Estadual do Paraná (litisconsorte passivo) foram condenados a executar as obrigações elencadas anteriormente, sob pena de multa diária. O Estado do Paraná, então, interpôs recurso de apelação, cujos principais argumentos foram: (i) ilegitimidade ativa do MPPR, carência de ação e inadequação da via eleita; e (ii) a ACP não seria o instrumento adequado para suprir a inconstitucionalidade por omissão legislativa ou administrativa, mas sim Ação Direita de Inconstitucionalidade (ADI) por omissão (artigo 103, § 2º da Constituição Federal); o uso indiscriminado da ACP gera insegurança e é nocivo para o desenvolvimento do país; e o Poder Judiciário não pode deliberar a respeito do mérito de atos discricionários do Administrador Público. Em suas contrarrazões, o MPPR defendeu a adequação da via eleita e sustentou que “não se pode retirar do Poder Judiciário o pedido para que o Estado seja compelido a fornecer segurança de forma adequada”. A 4ª Câmara Cível do Tribunal de Alçada do Estado do Paraná, por unanimidade, deu provimento ao recurso de apelação do Estado do Paraná, reformando a sentença para extinguir o feito, por carência de ação, ante a impossibilidade jurídica do pedido. Em seguida, o MPPR interpôs recurso especial, no qual defendeu a possibilidade jurídica do pedido, bem como recurso extraordinário, no qual alegou que a ACP proposta não se destinava a interferir na análise de conveniência e oportunidade prática de atos de administração do Estado do Paraná, mas sim afastar a inércia no tocante ao seu dever constitucional de exercer a segurança 301

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pública, que é um direito fundamental previsto no artigo 144 da Constituição Federal. Apenas o recurso extraordinário foi admitido. Uma vez recebido no STF, o recurso extraordinário do MPPR foi provido por decisão do Ministro Eros Grau, que cassou o acórdão da apelação para determinar que outro fosse proferido em seu lugar, dessa vez com a análise do mérito. O Estado do Paraná interpôs agravo interno contra a decisão, ao qual foi negado provimento sob o argumento de que “o provimento postulado mediante ação civil pública não configura invasão das funções atribuídas ao Executivo”. Os autos retornaram ao TJPR e foi realizada nova distribuição do recurso de apelação. No novo julgamento, o recurso do Estado do Paraná foi desprovido e a sentença condenatória proferida na origem mantida. Os principais argumentos do julgado foram os seguintes: a. O princípio da separação dos poderes não constitui princípio de natureza absoluta e ilimitada, na medida em que as funções estatais se complementam, limitando-se umas às outras, com observância dos freios e contrapesos das regras constitucionais, visando à realização do bem comum; b. O Poder Judiciário é autorizado a corrigir distorções com o intuito de restaurar a ordem jurídica violada. Embora inquestionável que resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, a possibilidade de proteção judicial dos direitos fundamentais sociais quando o Estado se abstém reiteradamente em cumprir com seus deveres constitucionais é plenamente aceita pela jurisprudência pátria; c. A conveniência e a discricionariedade do Estado na escolha de políticas públicas têm limites, não podendo ser utilizadas como justificativa para o completo abandono da segurança da população por tanto tempo; e d. Na hipótese de omissão do Estado no cumprimento de direito fundamental, compete ao Poder Judiciário implementar as medidas cabíveis para a efetivação de tais direitos. Não há que se falar, portanto, em violação ao princípio da independência dos poderes. O acórdão do TJPR transitou em julgado sem que tenha sido interposto qualquer recurso por parte do Estado do Paraná, que foi condenado às obrigações de fazer relacionadas a medidas de segurança pública.

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• Habeas Corpus nº 143.641/SP, Tribunal Pleno, Relator Ministro Ricardo Lewandowski, julgado em 20 de fevereiro de 2018. Trata-se de habeas corpus coletivo com pedido de medida liminar, impetrado por membros do Coletivo de Advogados em Direitos Humanos contra os juízes e juízas das varas criminais estaduais, os tribunais dos estados e do Distrito Federal e Territórios, os juízes e juízas federais com competência criminal, os tribunais regionais federais e o STJ, com vista à revogação da prisão preventiva decretada contra todas as mulheres gestantes, puérperas e mães de criança, ou sua substituição pela prisão domiciliar. Os impetrantes alegaram que o confinamento de mães e gestantes nos estabelecimentos prisionais, precariamente equipados, atenta contra seus direitos de saúde e contra o direito à proteção integral da criança, violando os artigos 5º, 134 e 227 da Constituição Federal. Foram habilitadas como amicus curiae a Defensoria Pública da União, bem como as Defensorias Públicas de todos os estados brasileiros, além do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), do Instituto Alana, do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), do Instituto Terra Trabalho e Cidadania (ITTC), da Pastoral Carcerária, da Associação Brasileira de Saúde Coletiva. O STF, em decisão unânime, deferiu a ordem coletiva pleiteada para determinar a substituição da prisão preventiva pela domiciliar, de todas as mulheres presas, gestantes, puérperas ou mães de crianças e deficientes sob sua guarda, enquanto perdurar tal condição, incluindo as adolescentes sujeitas a medidas socioeducativas que estejam na mesma condição. Quanto à tutela de interesses coletivos, a decisão assentou que o STF deve assumir a responsabilidade que tem perante os mais de 100 milhões de processos que tramitam no poder judiciário para fortalecer remédios de natureza abrangente e permitir que lesões a direitos potenciais ou atuais sejam sanadas mais celeremente. Após a decisão, foram juntados aos autos (i) ofícios comunicando decisões relativas à manutenção da prisão provisória de mulheres que poderiam enquadrar-se na decisão concessiva do habeas corpus coletivo; e (ii) pedidos de extensão formulados por advogados, requerendo a análise individual de casos concretos pelo STF. Ato contínuo, o Ministro Relator Ricardo Lewandowski, em decisão monocrática, decidiu que: (i) Apesar da impossibilidade de um único Ministro apreciar a prisão de todas as mulheres presas que possam se enquadrar nas diretivas do habeas corpus coletivo, iria flexibilizar a diretriz inicial de que nenhum 303

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caso concreto seria analisado individualmente, sem, contudo, converter o feito em um veículo processual para a análise da situação de todas as presas provisórias do país; (ii) Fossem os juízos dos casos notificados para que providenciassem a imediata análise dos casos listados, no prazo de 48 horas, deferindo a prisão domiciliar ou justificando concretamente a excepcionalidade que justificaria a manutenção da prisão; e (iii) Os pleitos apresentados tinham legitimidade, pois a documentação demonstra uma prática institucional contrária à ordem jurídica e que requer um plano de ação para a resolução coletiva do conflito. Além disso, o Ministro Relator determinou a manifestação de todas as instituições interessadas, além de parecer da Procuradoria-Geral da República.

TRF1 • Apelação nº 0000431-86.2007.4.01.3310, Quinta Turma, Relator Juiz Federal Convocado Gláucio Maciel, julgado em 7 de novembro de 2018. Trata-se de ACP movida pelo MPF contra a União Federal, que tem por objeto a melhora do quadro de pessoal da polícia federal no Município de Porto Seguro, na Bahia. O MPF requer determinação judicial de incremento do número de efetivos, incluindo agente, delegado e escrivão, em razão de incidentes envolvendo áreas destinadas a povos indígenas, que evidenciam a falta de aparato policial capaz de monitorar a região, seja pelo contingente estadual, seja pelo federal. A ACP foi julgada parcialmente procedente para condenar a União a recompor, em seis meses, o quadro de servidores da Polícia Federal em Porto Seguro e indeferindo o pedido de multa no valor de R$ 10.000,00 por dia de descumprimento das condenações. A União interpôs recurso de apelação, cujo principal argumento foi a impossibilidade de o Poder Judiciário compelir a Administração Pública ao cumprimento de um de seus atos concretos, desconsiderando suas razões de oportunidade e conveniência próprias do Executivo. O MPF, por sua vez, interpôs recurso de apelação requerendo a estipulação de multa por descumprimento da obrigação. A Quinta Turma do TRF1 decidiu, por unanimidade, negar provimento à apelação da União e dar provimento à apelação do MPF, fixando multa diária no valor de R$ 10.000,00 em caso de descumprimento da ordem de obrigação de fazer contra a União. Os principais fundamentos do acórdão do TRF1 foram os seguintes:

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(i) A ACP é a via adequada para a tutela de interesses que sejam de toda a comunidade abrangida pelo serviço deficiente; (ii) É possível a atuação do Judiciário em prol da implantação de políticas públicas que atendam aos interesses da coletividade, sem que isso implique, necessariamente, violação ao princípio da separação dos poderes; (iii) A interferência do Poder Judiciário em decisões da Administração Pública sobre a realocação de pessoal especializado na área de segurança pública não viola os princípios de conveniência e oportunidade dos atos administrativos nem representa ingerência indevida em matéria própria do Executivo, uma vez que os referidos princípios não podem justificar a inércia da Administração Pública diante da violação ou ausência de promoção de direitos fundamentais; (iv) A ingerência do Poder Judiciário para corrigir desvios do planejamento de aparato policial para consecução do direito à segurança pública é justificável pela necessidade de se fazer valer o princípio da eficiência administrativa, previsto no artigo 37 da Constituição Federal; e (v) A multa diária por descumprimento da obrigação de fazer, imposta contra a União, seria um instrumento eficaz de coerção indireta para a efetividade da ordem judicial. A União interpôs recursos especial e extraordinário, ambos com agravo, contra o acórdão do TRF1. O primeiro não foi conhecido pelo STJ, enquanto o segundo teve o seguimento negado, com a consequente devolução dos autos ao Juízo de origem.

TJRJ • Apelação nº 0059535-27.2011.8.19.0014, 27ª Câmara de Direito Cível, Relator Desembargador Marcos Alcino de Azevedo Torres, julgado em 12 de dezembro de 2018. Trata-se de ACP proposta pelo Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ), que tem por objeto a observância da capacidade prisional da Casa de Custódia Dalton Crespo de Castro, em Campos dos Goytacazes, diante das violações aos direitos fundamentais ocasionados pela superlotação. A ação foi julgada procedente para condenar o Estado do Rio de Janeiro a remover os presos que excedam a lotação máxima de 500 pessoas na Casa de

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Custódia Dalton Crespo de Castro, abstendo-se de encarcerar presos naquela unidade em número que exceda sua capacidade máxima. O Estado do Rio de Janeiro interpôs recurso de apelação, no qual alegou que a falta de vagas no sistema penitenciário é um problema generalizado no estado, e que, por isso, deve ser enfrentado pelo juízo discricionário da Administração Pública, e não de forma individualizada e por determinação do Poder Judiciário. O TJRJ deu provimento ao recurso, para julgar improcedentes os pedidos do MPRJ. A decisão teve por fundamento o entendimento de que nenhuma das medidas possíveis para viabilizar o cumprimento da tutela requerida na ACP seria viável, porque: (i) A transferência dos detentos e reclusos para outras casas de custódia não seria efetiva, pois o cenário de superlotação é generalizado no Estado do Rio de Janeiro, além de acarretar o afastamento do preso de localidade em que tenha vínculos familiares e sociais; (ii) A tutela pretendida pelo MPRJ somente seria possível mediante a construção de novos estabelecimentos prisionais, o que depende de decisão do Chefe do Executivo; e (iii) A acumulação de multas diárias como meio de coerção processual contra o Estado seria inadequada, mesmo no âmbito de direitos consagradores do mínimo existencial, uma vez que esse tipo de intervenção pelo Poder Judiciário resultaria na desorganização das políticas públicas. O Desembargador Marcos Alcino de Azevedo Torres destacou, ainda, que o TJRJ adota uma perspectiva restritiva acerca da catalisação de políticas públicas por meio de ações judiciais, de forma que a intervenção do Poder Judiciário deve ser equilibrada e razoável, atendo-se a medidas que não interfiram no juízo de conveniência e oportunidade da Administração Pública.4 Confira-se um trecho da decisão: Neste, como em muitos casos, a resposta virtuosa está no meio-termo aristotélico; no difícil e prudente equilíbrio, e não na adoção simplista de uma ou outra posição extremada. Ora, esse prudente equilíbrio é o que a jurisprudência deste Tribunal já vem fazendo, ainda que de modo não sistemático. Uma consulta aos julgados em ações individuais que pleiteiam a realização de obras públicas de saneamento básico e asfaltamento de ruas, por exemplo, demonstra que esta Corte 4

Exemplos de medidas consideradas pelo juízo como ponderadas e razoáveis seriam a execução de obras emergenciais e a entrega de medicamentos à população hipossuficiente.

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adota, nessa temática, posição mais restritiva, por compreender que a matéria se insere no âmbito do juízo de conveniência e oportunidade administrativa.

O MPF interpôs recurso extraordinário e especial contra o acórdão do TJRJ, que foram admitidos.5

TJSP • Apelação nº 1001417-81.2018.8.26.0408, 1ª Câmara de Direito Público, Relator Desembargador Danilo Panizza, julgado em 30 de outubro de 2019. Trata-se de ACP ajuizada pelo MPSP contra o Estado de São Paulo, com vista à manutenção de quadro mínimo de servidores da polícia civil e militar na área de segurança para a circunscrição de Ourinhos. A ação foi julgada improcedente sob o argumento de que a interferência do Poder Judiciário no caso em questão viola o princípio da separação de poderes. O MPSP interpôs recurso de apelação, ao qual foi negado provimento com base nos seguintes argumentos: (i) A pretensão do MPSP envolve formulação de políticas públicas na área de segurança, o que é matéria de competência do Executivo, sujeita à avaliação técnica da alocação de recursos. Além disso, tal pretensão impõe à Administração Pública gastos cuja obrigatoriedade deve ser apreciada com base em avaliações técnicas de ordem estrutural (o que acontece no âmbito de ações governamentais), e nunca de forma casuística; (ii) A jurisprudência do TJSP tem rejeitado pretensões similares às da ACP em discussão, estabelecendo que a intervenção do Judiciário na formulação de políticas públicas atribuídas ao Executivo não só viola o equilíbrio entre os poderes estatais, como também compromete a própria efetividade da atuação administrativa; e (iii) A prestação deficiente dos serviços de segurança pública alegada pelo MPSP não se aproxima de uma total ineficiência ou inexistência, por isso, uma vez que existe, no caso em tela, uma política pública para a área de segurança no Estado, não há que se falar em omissão por parte da Administração Pública. O MPSP interpôs recurso extraordinário contra o acórdão do TJSP que negou provimento ao recurso de apelação, o qual teve o trâmite sobrestado em razão 5

Até junho de 2022, aguardava-se decisão do STJ a respeito do recurso especial. 307

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do reconhecimento da existência da repercussão geral da questão constitucional referente à matéria (Tema 698/STF). • Decisão proferida pela Juíza Celina Kiyomi Toyoshima, da 4ª Vara da Fazenda Pública, nos autos ACP nº 1025361-76.2019.8.26.0053. Trata-se de ACP proposta pelo MPSP contra o Estado de São Paulo visando implementar mudanças na atuação da polícia civil e militar, para o combate ao racismo institucional e às violações a direitos fundamentais previstos em tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário e na Constituição Federal, em seus artigos 5º, caput e incisos XXXV, LV, LVI e LVII. Em síntese, o MPSP pleiteia: (i) O reconhecimento de que a alta letalidade da atuação da polícia no estado afronta dispositivos legais e constitucionais; (ii) A imposição de obrigação de fazer relativa aos crimes cometidos pela polícia, propondo medidas como o fornecimento de atendimento às vítimas e familiares de atuações que resultarem em óbitos, além da divulgação da relação das vítimas de atuação estatal em sítio eletrônico; (iii) A imposição de obrigação de fazer visando à redução de ilegalidades na atuação policial, incluindo medidas de monitoramento das viaturas por meio de gravação de som e imagem, além de acompanhamento em tempo real de sua localização, formação e capacitação das academias de polícia e autorização para que os policiais utilizem colete à prova de balas fora do horário de serviço. Em decisão que recebeu a inicial, o juízo de primeira instância determinou que o MPSP apresentasse esclarecimentos, indicando (i) se o Estado de São Paulo tem respeitado a previsão orçamentária destinada à segurança pública; (ii) como o Estado de São Paulo pode majorar os recursos destinados à segurança pública, visando à implantação das alterações requeridas pelo MPSP na inicial. A decisão teve por fundamento o entendimento de que os pedidos apresentados na ACP, no que diz respeito à segurança pública, envolvem um enorme aporte financeiro e a mudança de toda a estrutura de funcionamento de outras áreas fundamentais, cujos aportes teriam que ser cortados ou redirecionados caso sejam julgados procedentes. Ainda não foi prolatada sentença nos autos.

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10.2.1 Conclusões a partir dos precedentes analisados Na maioria dos casos analisados, o debate jurídico central diz respeito à existência ou não de violação ao princípio da separação de poderes nos casos de implementação de políticas públicas pelo Poder Judiciário. No TJRJ, prevalece o entendimento de que a intervenção do Poder Judiciário nas políticas de segurança pública violaria a separação dos poderes, pois essa matéria está a cargo do Poder Executivo. Além disso, o entendimento que prevalece é de que as tentativas de implementação de políticas públicas pelo Poder Judiciário, visando à correção de problemas estruturais, seria ineficaz, pois tais problemas demandam mudanças na estrutura e no funcionamento dos órgãos de segurança pública, o que depende da atuação dos demais poderes. A jurisprudência majoritária dos tribunais superiores (STF e STJ), por sua vez, tem admitido o cabimento de ACP como instrumento hábil ao controle judicial de políticas públicas. Entende-se que tal controle não viola o princípio da separação dos poderes, uma vez que referido princípio não é absoluto e que, portanto, o Poder Judiciário pode exigir a formulação e execução de políticas públicas no caso de violação da ordem jurídica ou de direitos fundamentais, portanto uma estratégia a se adotar é a interposição de recursos aos tribunais superiores, no caso de julgamento de improcedência também em segunda instância. A maior parte das ACP foi ajuizada pelo Ministério Público, com a participação da Defensoria como amicus curiae ou como assistente litisconsorcial. A justificativa para a participação da Defensoria como assistente advém do fato de que: a) ela é legitimada à propositura de ACP, consoante o artigo 5º, II, da Lei nº 7.347/85, do artigo 4º e o inciso VII da Lei Complementar nº 80/94; b) a Defensoria possui uma missão institucional de promoção de direitos humanos, sendo o órgão por meio do qual se concretizam objetivos fundamentais da República na construção de uma sociedade mais justa, nos termos do artigo 3º, incisos I e III, e do artigo 134º, da Constituição Federal; c) o STF já consolidou entendimento no sentido de que a propositura de ações coletivas não é uma atribuição exclusiva do Ministério Público. Em todos os casos houve participação ativa de organizações da sociedade civil como amicus curiae. Nos casos em que as ACP análogas foram julgadas improcedentes, um argumento comum utilizado pelos tribunais estaduais foi o de que os pedidos dos autores eram muito genéricos, o que tornava sua consecução inviável caso julgados procedentes.

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Uma recomendação estratégica para futuras ações judiciais, portanto, seria delimitar os pedidos da forma mais objetiva e pormenorizada possível, porque, nos precedentes analisados, os casos com os pedidos mais concretos e delimitados foram os que mais obtiveram decisões favoráveis.

10.3 Estratégias judiciais alternativas para a garantia dos direitos pleiteados na ACP da Maré Diante do panorama apresentado e com base nos precedentes analisados, podemos indicar uma série de estratégias alternativas na esfera judicial para a garantia dos direitos pleiteados na Ação Civil Pública da Maré. À luz da jurisprudência selecionada, este capítulo se dedica, assim, às sugestões de incidência possíveis.

10.3.1 Êxito da ACP nos Tribunais Superiores (STF e STJ) pela Via Recursal A discussão jurídica central nos casos analisados diz respeito ao princípio da separação dos poderes. Os tribunais estaduais que julgaram ACP análogas improcedentes fundamentaram suas decisões, dentre outros argumentos, no entendimento de que a interferência do Poder Judiciário na implementação de políticas públicas viola o princípio da separação dos poderes, já que caracteriza indevida interferência em matéria de competência exclusiva da Administração Pública. Os tribunais superiores (STF e STJ), no entanto, têm adotado entendimento contrário, no sentido de que o Poder Judiciário pode formular e determinar a execução de políticas públicas (sem que seja caracterizada violação ao princípio da separação de poderes) na hipótese de violação à ordem jurídica ou a direitos fundamentais – que é, justamente, o que se defende na ACP da Maré. Uma possível estratégia judicial para a ACP da Maré, portanto, é a interposição de recursos às instâncias superiores – recurso especial para o STJ e recurso extraordinário no STF – caso o julgamento pelo TJRJ seja desfavorável.

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10.3.2 Possibilidades de atuação da Redes da Maré na ACP como amicus curiae Sobre o papel do amicus curiae nos processos judiciais, a doutrina de Direito Processual Civil, a partir da interpretação do artigo 138 do CPC, entende que se trata de uma figura processual que tem o papel de auxiliar o juiz e democratizar o debate: [...] o amicus curiae é um colaborador do juiz, a quem compete, com exclusividade, admitir seu ingresso no processo (art. 138, § 2º). Esta conclusão é respaldada pelo fato de ser irrecorrível a decisão que admite ou não o amicus curiae, assim como pelo motivo de que cabe ao magistrado a delimitação de sua atuação, pois será quem estabelecerá os poderes que o amicus curiae irá exercitar, na medida em que entender necessários para auxiliá-lo. Nada impede, porém, que o relator do futuro recurso, interposto contra decisão inerente à própria discussão da demanda em análise, tenha entendimento diverso do juiz de primeiro grau e admita o amicus curiae. Tal fato só corrobora a natureza de sua atuação: cooperar e colaborar com o juiz, a quem compete solicitar ou admitir a presença, fixando-lhes os poderes. [...] A propósito, a lei estabelece que, para justificar o ingresso do amicus curiae, deve haver a relevância da matéria, a especificidade do tema objeto da demanda ou a repercussão social da controvérsia – parte inicial do caput do art. 138. Em todas essas situações, o alcance da decisão repercute na esfera de outras pessoas que não fazem parte do processo.6

Nos autos da ACP da Maré, a Defensoria Pública requereu o ingresso da Redes da Maré e de outras entidades/pessoas físicas na lide como amicus curiae. Após a manifestação da Redes da Maré indicando o seu interesse de intervir no feito, mas antes que o juiz pudesse efetivamente decidir sobre o seu ingresso, foi proferida a sentença de improcedência da ACP. No agravo de instrumento, por outro lado, a Redes da Maré pleiteou o seu ingresso e tal intervenção foi deferida de modo genérico, entretanto vislumbramos que ainda é possível que haja discussões sobre o efetivo ingresso da Redes da Maré como amicus curiae

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CABRAL, Antonio do Passo; CRAMER, Ronaldo (Coord.). Comentários ao novo Código de Processo Civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 243-244. 311

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na ação, tendo em vista que essa seria uma decisão que deveria ter sido tomada de forma definitiva pelo juiz de primeira instância. Caso haja interesse em pleitear uma confirmação definitiva sobre o ingresso da Redes da Maré como amicus curiae, para evitar quaisquer arguições de nulidade no futuro, essa decisão caberia ao Desembargador Relator da apelação, já que os autos foram remetidos para o Tribunal de Justiça para julgamento do recurso. A jurisprudência do TJRJ tem, na maioria das vezes, rejeitado os pleitos de ingresso de amicus curiae nas ações, entretanto as justificativas para as negativas não parecem se aplicar ao caso da Redes da Maré, no qual se verifica a presença de requisitos necessários: relevância da matéria, especificidade do tema objeto da demanda ou repercussão social da controvérsia (artigo 138 do CPC). Por essa razão, entendemos que são grandes as chances de êxito de eventual pleito buscando confirmar definitivamente o ingresso e a atuação da Redes da Maré como amicus curiae da ACP da Maré, o que evitaria eventual arguição de nulidade de manifestações.7 A esse respeito, normalmente as entidades que atuam como amicus curiae podem – e devem – participar ativamente nas audiências e nas sessões de julgamento, não lhes sendo permitido, no entanto, interpor recursos contra decisões que entendam desfavoráveis (com exceção dos embargos de declaração e de recurso contra decisão que julgar IRDR – artigo 138, §§ 1º e 3º, do CPC).

10.3.3 Possibilidade de acionar o STF de forma autônoma e independentemente da ACP Além da possibilidade de acionar o STF pela via recursal, a Suprema Corte já foi diretamente acionada por meio de ADPF propostas com vistas à implementação de medidas de segurança pública no Estado do Rio de Janeiro. Referidas ADPF possuem objeto similar ao da ACP da Maré (violações de direitos fundamentais causadas pelo Poder Público do Estado do Rio de Janeiro) de forma que, se proposta pelos legitimados indicados no artigo 103 da

7

Independentemente da decisão que a Redes tomar sobre pedir expressamente o ingresso na lide ou não, recomendou-se, à época de elaboração deste memorando, que a Redes estivesse presente e participasse ativamente de eventual audiência especial, ressaltando-se a importância de requerer sustentação oral na sessão de julgamento que seria realizada caso não fosse firmado acordo.

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Constituição Federal8 a ADPF pode ser uma estratégia judicial autônoma, para a Redes da Maré, de acionar o STF. É importante considerar, no entanto, o entendimento do STF sobre o princípio da subsidiariedade – pelo qual a ADPF só pode ser admitida se demonstrado que os demais instrumentos jurídicos disponíveis no ordenamento brasileiro não foram capazes de sanar ou evitar a violação de preceito fundamental.9

ADPF nº 594/RJ Trata-se da ADPF proposta pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), na qual se requer o reconhecimento de que ocorreram violações a preceitos constitucionais em razão da mudança na política pública de segurança no Estado do Rio de Janeiro, a partir de ações adotadas pelo Governador do Estado, Sr. Wilson José Witzel. O PSOL defendeu o cabimento da ADPF com base nos seguintes argumentos: (i) A ADPF tem por finalidade questionar atos dos Poderes Públicos que importem em lesão ou ameaça a preceitos fundamentais da Constituição Federal; (ii) De acordo com o artigo 1º da Lei nº 9.882/99, os atos que podem ser objeto de ADPF autônoma são os emanados do Poder Público, aí incluídos os de natureza normativa ou administrativa ou judicial, ou seja, incluídos, também, os atos que não têm natureza normativa; (iii) Diante dos efeitos concretos e danosos a toda uma coletividade e em flagrante descumprimento de preceitos, a ADPF deve ser aceita sob pena de prejudicial menosprezo à interpretação e à aplicação da lei ao caso concreto, em flagrante recusa ao exercício do poder-dever de julgar com a liberdade atribuída pelos artigos 4º e 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro e utilizando-se do desapego à forma e pela interpretação adequadamente e, sempre que possível, buscando-se um bem

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Art. 103 da Constituição Federal: “Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade: I - o Presidente da República; II - a Mesa do Senado Federal; III - a Mesa da Câmara dos Deputados; IV - a Mesa de Assembleia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal; V - o Governador de Estado ou do Distrito Federal; VI - o Procurador-Geral da República; VII - o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; VIII - partido político com representação no Congresso Nacional; IX - confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional”.

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Fundamentam esse entendimento os seguintes julgados: ADPF 390- AgR, Rel. Min. Alexandre de Moraes, j. 08/08/2017; ADPF 266-AgR, Rel. Min. Edson Fachin, j. 23/05/2017; ADPF 237-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, j. 30/10/2014. 313

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maior: a apreciação do mérito da demanda com a ordem de cumprimento do preceito fundamental desobedecido; (iv) A lesão a preceitos fundamentais se originaria dos atos comissivos e omissivos, cuja natureza não é normativa, de uma mudança na política pública de segurança, perpetrada pelo Chefe do Executivo do Estado do Rio de Janeiro que violam direitos fundamentais passíveis de controle por ação como a dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III), princípio fundamental da República; o princípio de relação internacional da prevalência dos direitos humanos (artigo 4º, II); e o direito à vida e à segurança (artigo 5º). O objeto da ADPF, portanto, é o ato do Poder Público, as manifestações públicas do Exmo. Governador do Rio de Janeiro, que violam preceitos fundamentais. O reconhecimento da inconstitucionalidade e a possibilidade de responsabilização por tais atos são os objetos da ação de controle. Em decisão inicial, o Ministro Edson Fachin requereu informações acerca das alegações do PSOL, com fundamento em precedente do STF que assentou que nenhuma pessoa pode ser arbitrariamente privada de sua vida, sendo a arbitrariedade aferida de forma objetiva, por meio de padrões mínimos de razoabilidade e proporcionalidade.10 A Procuradoria-Geral da República (PGR) apresentou parecer em que reconheceu que a ADPF é mecanismo de controle de qualquer ato ou omissão do poder público, normativo ou não normativo, abstrato ou concreto, anterior ou posterior à Constituição Federal, estadual ou municipal, de qualquer órgão ou entidade, e de qualquer um dos poderes do Estado. Enfatizou que, à luz do artigo 1º da Lei nº 9.882/1999, a ADPF também é cabível para impugnar atos não normativos, como atos administrativos e concretos, desde que emanados pelo Poder Público. A PGR, no entanto, ressaltou que a propositura de ADPF está condicionada à ausência de outro meio apto a resolver a controvérsia constitucional de forma ampla, geral e imediata, consoante o princípio da subsidiariedade (artigo 4º, § 1º da Lei nº 9.882/1999). Assim, opinou pelo não conhecimento da ADPF, por entender que: (i) o microssistema de direitos coletivos coloca à disposição dos cidadãos e entidades outros meios aptos a impedir e reparar danos, como a

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Em sua decisão, o ministro mencionou o seguinte precedente: ADI 5.243, Rel. Min. Alexandre de Moraes, Red. para o Acórdão Min. Edson Fachi, j. 05/08/2019.

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ação civil pública com pedido de condenação por danos morais coletivos;11 e (ii) a inicial é inepta, pois o PSOL não apresentou pedido certo e determinado, limitando-se a descrever episódios relacionados aos pronunciamentos de Witzel sem delimitar os atos impugnados de forma precisa. Ainda não há decisão do STF quanto ao cabimento da ADPF. Os autos estão conclusos desde 3 de fevereiro de 2020.

ADPF nº 635/RJ Trata-se de ADPF proposta pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), com o intuito de que sejam reconhecidas e sanadas graves lesões a preceitos fundamentais da Constituição Federal praticadas pelo Estado do Rio de Janeiro na elaboração e implementação de sua política de segurança pública, notadamente no que tange à excessiva e crescente letalidade da atuação policial, voltada, sobretudo, contra a população pobre e negra de comunidades. O PSB defendeu o cabimento da ADPF com base nos seguintes argumentos: (i) Conforme o art. 1º da Lei nº 9.882/1999, podem ser objeto de ADPF todos os atos emanados do Poder Público, de qualquer natureza; (ii) Identifica-se um déficit na atuação do órgão de controle externo das forças policiais fluminenses, e na atuação do MPRJ no cumprimento da sua função de investigar e exigir a punição dos responsáveis por violações a direitos no campo da segurança pública; (iii) Diante das lesões a preceitos fundamentais decorrentes de atos comissivos e omissivos de instituições do Estado do Rio de Janeiro, que incentivam a letalidade da atuação dos órgãos policiais e promovem operações policiais sem planejamento ou treinamento adequado aos agentes de segurança, os requisitos para o cabimento da ADPF estão presentes; (iv) Quanto ao princípio da subsidiariedade, não há qualquer remédio processual no âmbito da jurisdição constitucional concentrada que permita o questionamento das numerosas práticas institucionais impugnadas. Nesse sentido, não se discute apenas a validade de ato normativo primário específico superveniente à Constituição Federal, nem omissões legislativas 11

Nesse ponto, o Procurador-Geral da República mencionou justamente a ACP da Maré, nos seguintes termos: “A própria Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro manejou ACP visando à reformulação da política de segurança pública adotada no Complexo da Maré (autos n.º 0215700-68.2016.8.19.0001, 6ª Vara de Fazenda Pública da Comarca da Capital). Apesar do intenso debate jurídico, a efetiva utilização de ACP para tratar de tema correlato ao versado nos presentes autos denota a existência de outros meios eficazes a reparar situações incompatíveis com o ordenamento jurídico”. 315

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inconstitucionais, mas as diversas violações à Constituição no contexto da segurança pública do Estado do Rio de Janeiro. Em 2020, no contexto da pandemia de Covid-19, o Ministro Edson Fachin determinou a suspensão liminar de todas as operações policiais, salvo em casos excepcionais. Posteriormente, no âmbito da mesma ADPF, foi determinada a criação de um plano de redução da letalidade policial pelo Rio de Janeiro. A ação ainda está em trâmite, em virtude da superveniência de novos – e graves – episódios de violência policial no país, que ensejaram pedidos inéditos por parte do autor e das entidades habilitadas como amicus curiae.

10.4 Marcos normativos sobre uso de equipamentos de segurança e atuação policial Com o intuito de responder aos questionamentos específicos da Redes da Maré acerca da utilização de helicópteros, blindados e aeronaves como instrumentos de segurança pública, bem como sobre os marcos normativos internacionais em matéria de segurança pública, este capítulo se dedicou a um levantamento exaustivo de normas nacionais sobre a matéria e de mecanismos regionais de controle.

10.4.1 Normas Nacionais Para facilitar a análise da legislação pertinente, trazemos os marcos normativos nacionais relacionados ao uso de equipamentos de segurança e à atuação policial, que devem ser pautados pelos parâmetros constitucionais de proporcionalidade, excepcionalidade e necessidade do uso da força.

Uso de carros blindados da Política Militar do Rio de Janeiro (PMERJ) Implantação de GPS A Lei Estadual nº 5.443, de 12 de maio de 2009, em seu art. 1º, determina ao Poder Executivo a implantação do sistema GPS (Global Position System) nas viaturas blindadas (conhecidos como “caveirões”), adquiridas para servir as áreas de Segurança, Saúde e Defesa Civil. O art. 2º permite a implantação gradual do equipamento nas viaturas já existentes. 316

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Monitoramento por câmeras de áudio e vídeo A Lei Estadual nº 5.588/09 estabelece a obrigatoriedade de implantação de monitoramento de câmera de áudio e vídeo em todas as viaturas utilizadas nas áreas de Segurança Pública e Defesa Civil do Rio de Janeiro. Nas viaturas já existentes, a instalação desse sistema deveria ser progressiva, e nas viaturas a serem adquiridas, a presença das câmeras seria item obrigatório, desde dezembro de 2009. Conforme informado pela Defensoria Pública em sua Emenda à Inicial na ACP da Maré, “não se obteve resposta quanto ao cumprimento efetivo e integral da referida legislação no que concerne às viaturas bélicas blindadas (popularmente conhecidas como ‘caveirões’) – os ofícios expedidos pela Defensoria Pública indagando sobre a presença não foram respondidos”.12

Helicópteros Em relação à utilização de helicóptero como plataforma de tiro, destaque-se que a pena de morte é vedada pela Constituição Federal. O agente de segurança pública não tem autorização ou licença para matar, podendo ser feitas ressalvas apenas nas hipóteses de legítima defesa ou amparado por outra excludente de ilicitude ou de culpabilidade. Um dos princípios que rege as operações policiais é justamente a preservação da vida (artigo 3º, I da Constituição Federal).

Uso de helicópteros em operações policiais O Decreto Estadual nº 20.557/1994, parcialmente em vigor, prevê que o emprego de aeronaves em operações de segurança só poderá ocorrer em missões de salvamento e de apoio policial (artigo 1º). Originalmente, o decreto também estabelecia, em seu artigo 4º, que o helicóptero não poderia ser utilizado em conflito direto, podendo transportar armas somente em auxílio ao deslocamento de policiais a áreas de difícil acesso.13 Por sua vez, o Decreto Estadual nº 27.795/2001, no entanto, excepciona a proibição do uso de helicópteros em seu artigo 4º, permitindo o seu emprego em missões de apoio a operações policiais.14 12

ACP nº 0215700-68.2016.8.19.0001, ajuizada perante a 6ª Vara da Fazenda Pública.

13

Art. 4º: “Em nenhuma hipótese o helicóptero poderá ser usado em confronto armado direto, e somente no caso do inciso III do artigo anterior a aeronave transportará armas, as quais só poderão ser utilizadas após o desembarque”.

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Art. 2º: “O disposto no art. 4º do Decreto n.º 20.557, de 26/09/94, não se aplica às operações previstas no art. 3º do mesmo diploma legal”. 317

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Sobre o tema, a Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro editou recentemente o Manual operacional de aeronaves, assinado pelo secretário de Polícia Civil Marcus Vinícius Braga em 6 de agosto de 2019. A resolução publicada no Diário Oficial do Estado de 8 de agosto de 2019, contudo, atribuiu ao Manual o grau de “secreto” pelo período de 15 anos. Frente a isso, a Seccional do Rio de Janeiro da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) ajuizou a ACP 5057974-71.2019.4.02.5101, em 26 de agosto de 2019, em face do Estado do Rio de Janeiro para pleitear tutela de urgência nos termos abaixo: Em sede de tutela de urgência, que este juízo determine que o Estado do Rio de Janeiro publique em seu Diário Oficial a integralidade do Manual Operacional das Aeronaves pertencentes à frota da Secretaria de Estado de Polícia Civil ou, caso o pedido anterior não seja acolhido, suspenda o sigilo que recai sobre tal documento até o julgamento de mérito da presente, em ambos os casos no prazo máximo de 72 (setenta e duas) horas, isso sob pena de multa diária a ser arbitrada por Vossa Excelência.

Ainda sobre o emprego de helicópteros na segurança pública no Estado do Rio de Janeiro, o Grupamento Aeromóvel da PMERJ (GAM) divulgou o artigo “Problematização do Tiro de Contenção Embarcado em Aeronaves da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro”, no qual defende a necessidade do “tiro de contenção”, isto é, o uso de helicópteros como plataforma de tiro. Segundo o GAM: Foi observado que nenhuma força policial no Brasil utiliza a aeronave em áreas conflagradas semelhantes às do Rio de Janeiro, tampouco do mesmo modo, apesar de a maioria delas prever o uso de armas de emprego coletivo pelos TTOO.15 Internacionalmente, foi verificado que o Departamento de Polícia de Los Angeles (LAPD) (Fotos 01 e 02), o Departamento de Polícia de New York (NYPD) e a Gendarmerie francesa lançam mão do uso de tiro embarcado, porém não houve tempo hábil para verificar o modo de operação dessas forças quanto ao disparo em situação real. Mundialmente, as Unidades Militares, e principalmente as de Operações Especiais, utilizam-se do Tiro de Contenção com designações diversas, porém com o mesmo princípio da vantagem tática para as aeronaves e tropas terrestres, podendo citar o US Army 160th SOAR e o US Air Force 305th RSqd (Rescue Squadron), ambos em operação

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Tripulantes operacionais.

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no Afeganistão e Iraque, e ainda a Guarda Costeira Estadunidense (USCG), através do Esquadrão Hitron (Helicopter Interdiction Tactical Squadron) que executa interceptação de “go-fast boats” na costa da Flórida – EUA (Foto 03).16

Uso de helicóptero como plataforma de tiro O artigo 7º da Instrução Normativa nº 03 de 201817 estipula que o uso de helicóptero como plataforma de tiro somente será legítimo quando empregado em legítima defesa dos tripulantes, equipes terrestres ou população civil.18

Política de utilização de drones Mais recentemente, entrou em pauta a utilização de drones pelos órgãos de segurança pública. O Estado de São Paulo lançou em 2019 uma iniciativa denominada “Dronepol”, que prevê a implantação de aeronaves não tripuladas – chamadas de “superdrones” por suas funções técnicas: Até o final deste ano, cinco superdrones capazes de localizar pessoas no escuro pelo calor do corpo humano e preparados para fazer registros 16

PERLINGEIRO, Rogério; MENDONÇA, Fernando; BRASIL, André. Problematização do tiro de contenção embarcado em aeronaves da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. 30 dez. 2012. Disponível em: https://www.pilotopolicial.com.br/wp-content/uploads/2013/05/Problemati za%C3%A7%C3%A3o-do-Tiro-de-Conten%C3%A7%C3%A3o-Embarcado-em-Aeronavesda-Pol%C3%ADcia-Militar-do-Estado-do-Rio-de-Janeiro.pdf. Acesso em: 19 nov. 2019.

17

Disponível em: http://www.adepolrj.com.br/adepol/noticia_dinamica.asp?id=21053.

18

Art. 7º - Para o emprego de aeronaves tripuladas em operações em áreas sensíveis recomenda-se, salvo necessidade tecnicamente justificada: I - a confecção de relatório descritivo de toda operação aeronáutica, contendo: a) A identificação dos pilotos, copilotos, tripulantes operacionais e passageiros; b) A identificação do armamento utilizado, bem como o tipo e a quantidade de munição empregada; c) Em caso de disparos de arma de fogo, a identificação do responsável pela ação e a quantidade de munição utilizada, observando sempre as condicionantes técnicas necessárias para o emprego do armamento. II - que o emprego de arma de fogo embarcado em aeronave somente seja utilizado quando estritamente necessário para legítima defesa dos tripulantes, equipes terrestres e população civil; III - somente tripulante habilitado com treinamento específico para ação poderá efetuar disparos de arma de fogo do interior de aeronave; IV - em caso de emprego de arma de fogo embarcado, seja utilizada apenas arma de fogo longa e calibre que respeite as normas técnicas dos órgãos reguladores; V - no disparo de arma de fogo efetuado pela tripulação do interior de aeronave, sejam efetuados no modo intermitente, observando o número mínimo de disparos para o atingimento do objetivo almejado.







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de imagens de suspeitos a longas distâncias devem estar cruzando os céus de São Paulo. A compra desses drones avançados pela Polícia Militar paulista está na reta final, em fase de testes. Cada um deles deve custar cerca de R$ 240 mil, ou R$ 1,2 milhão no total. A aquisição ocorre dentro de um pacote do governo paulista para implantação de aeronaves não tripuladas. A PM deverá contar ainda com outros cem equipamentos mais simples, de valor unitário estimado em R$ 30 mil. Os superdrones operarão a grandes alturas e de modo silencioso, o que os torna imperceptíveis.19

No Estado do Rio de Janeiro, o Projeto de Lei nº 1.355/2016 prevê a criação da “Política Estadual de Monitoramento por DRONE, Veículo Aéreo Não Tripulado (VANT)” e está em discussão na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro(Alerj), tendo seus objetivos previstos no art. 3º.20

Protocolos para atuação policial do Brasil A atuação da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ) é regulamentada por instrumentos legislativos e administrativos esparsos. No âmbito administrativo, têm destaque a Instrução Normativa nº 033,21 que apresenta diretrizes específicas para o uso da força policial, e o Boletim de Instrução Policial nº 02/08,22 que, por sua vez, regula o chamado “tiro de defesa”, cujo objetivo é aplicar de forma mais rápida os fundamentos de tiro de precisão treinados.

19

PAGNAN, Rodrigo. Programa da PM de São Paulo prevê o uso de frota de “superdrones invisíveis”. Folha de S. Paulo, 23 ago. 2019. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ cotidiano/2019/08/programa-da-pm-de-sao-paulo-preve-uso-de-frota-de-superdronesinvisiveis.shtml. Acesso em: 19 nov. 2019.

20

I - estimular a utilização de Veículos Aéreos não Tripulados, conhecidos como Drones, no âmbito da Secretaria de Segurança Pública do Estado; II - fortalecer e otimizar as ações de investigação, monitoramento e policiamento ostensivo realizado pelas Polícias Civil e Militar do Estado do Rio de Janeiro; III - modernizar as Polícias Civil e Militar do Estado através da utilização de inovações tecnológicas; IV - diminuir o risco à integridade física dos policiais civis e militares no exercício de suas atribuições; V - promover a capacitação dos agentes públicos para que estejam aptos a manusear os aparelhos citados nesta Lei; VI - proporcionar à população maior sensação de segurança. Disponível em: http://alerjln1. alerj.rj.gov.br/scpro1519.nsf/0c5bf5cde95601f903256caa0023131b/06653cd01fa7a14783257f4d004b31c5?OpenDocument&Highlight=0,AERONAVE.



21

Instrução normativa/PMERJ/EMG-PM/3 n.º 33, 3 jul. 2015.

22

Boletim da PM, nº 198, 19 nov. 2008, p. 58.

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Tais instruções regulam tão somente o treinamento e a atuação de policiais individuais, sem nada abordar sobre a utilização de equipamentos mais complexos. Contudo, no contexto de grandes operações policiais, os seguintes diplomas ganham destaque:

Portaria Interministerial nº 4.266 de 201023 A Portaria Interministerial nº 4.266 prevê diretrizes para a atuação dos agentes de segurança pública no âmbito federal, abrangendo o Departamento de Polícia Federal, o Departamento de Polícia Rodoviária Federal, o Departamento Penitenciário Nacional e a Força Nacional de Segurança Pública. Referido diploma estabelece que a atuação dos agentes de segurança deverá pautar-se pelos instrumentos internacionais de regulação do uso da força, tais como: 1. o Código de Conduta para os Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei, adotado pela Assembleia Geral das Nações Unidas na sua Resolução 34/169, de 17 de dezembro de 1979; 2. os Princípios Orientadores para a Aplicação Efetiva do Código de Conduta para os Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei, adotados pelo Conselho Econômico e Social das Nações Unidas na sua Resolução 1989/61, de 24 de maio de 1989; 3. os Princípios Básicos sobre o Uso da Força e Armas de Fogo pelos Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei, adotados pelo Oitavo Congresso das Nações Unidas para a Prevenção do Crime e o Tratamento dos Delinquentes, realizado em Havana, Cuba, de 27 de agosto a 7 de setembro de 1999; e 4. a Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em sua XL Sessão, realizada em Nova York em 10 de dezembro de 1984 e promulgada pelo Decreto nº 40, de 15 de fevereiro de 1991. A portaria também prevê que o uso da força deverá obedecer aos princípios da legalidade, necessidade, proporcionalidade, moderação e conveniência, de modo que os agentes de segurança pública não deverão disparar armas de fogo contra pessoas, exceto em casos de legítima defesa própria ou de terceiro contra perigo iminente de morte ou lesão grave.

23

Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/integra-portaria-ministerial.pdf. 321

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Presença obrigatória de ambulâncias em operações policiais A Lei Estadual nº 7.385/2016 prevê a possibilidade de que o Executivo determine a presença obrigatória de ambulâncias em operações policiais previamente planejadas, com possíveis confrontos armados.

Proteção de áreas próximas a escolas, creches e hospitais Em 2018, a extinta Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro editou a Instrução Normativa nº 03 de 2018,24 a qual prevê, em seu art. 4º, uma série de regras que deverão ser observadas para atuação em “áreas sensíveis” – aquelas que apresentam grande circulação de civis, como escolas, creches, hospitais e postos de saúde.25 Desde 2011, o sistema de metas para os indicadores de criminalidade no Estado do Rio de Janeiro, criado pelo Decreto Estadual nº 41.931/2009,26 premiava com gratificações os integrantes de batalhões e delegacias que atingissem a meta de redução de homicídios decorrentes de oposição à intervenção policial. Com o Decreto Estadual nº 46.775/2019,27 contudo, a melhoria desses indicadores deixou de integrar os objetivos da polícia militar.

10.4.2 Normas Internacionais A regulamentação internacional em matéria de segurança pública é centrada em quatro marcos normativos. 24

Disponível em: http://www.adepolrj.com.br/adepol/noticia_dinamica.asp?id=21053.

25 Art. 4º - As operações policiais em áreas sensíveis deverão obedecer às seguintes regras gerais: I - o desencadeamento de operações policiais de qualquer natureza, em áreas sensíveis, próximas a unidades de ensino, creches, postos de saúde e hospitais, em funcionamento, será realizado, observando sempre que possível: Evitar preferencialmente os horários de maior fluxo de entradas e saídas de pessoas de tais estabelecimentos, principalmente, entrada e saída de alunos nos estabelecimentos de ensino; e O não baseamento de recursos operacionais nas entradas e interior de tais estabelecimentos, de maneira a evitar que os mesmos tornem-se alvos em potencial de infratores armados. 26

Disponível em: http://silep.fazenda.rj.gov.br/index.html?decreto_41_931___250609.htm.

27 Disponível em: http://www.fazenda.rj.gov.br/sefaz/content/conn/UCMServer/path/ C o n t r i b u t i o n %20 F o l d e r s /s i t e _ f a z e n d a / S u b p o r t a i s / P o r t a l G e s t a o P e s s o a s / Legisla%C3%A7%C3%B5es%20SILEP/Legisla%C3%A7%C3%B5es/2019/Decretos/ DECRETO%20N%C2%BA%2046.775%20DE%2023%20DE%20SETEMBRO%20DE%20 2019_Altera%20o%20Decreto%20n%C2%BA%2041.931%20de%2025%20de%20junho%20 de%202009.pdf?lve. 322

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Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos Em seu preâmbulo, o Pacto28 manifesta o propósito de aprofundamento de direitos civis e políticos já fixados por outras normas internacionais. Entre os direitos tutelados pelo Pacto, exsurgem o direito à proteção da vida mediante a lei e o direito à fixação de critérios à eventual privação do direito à vida de outrem.29 O Pacto concretiza o dever estatal de criação de estruturas de amparo ao direito à vida.

Convenção Interamericana de Direitos Humanos Em jurisdição regional, a Convenção Interamericana de Direitos Humanos (CADH) também contempla o direito à vida e à integridade pessoal. Com base em suas previsões, no caso Favela Nova Brasília vs. Brasil,30 a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte-IDH) condenou o Estado brasileiro por violações a tais direitos e determinou a adoção de medidas legislativas de redução da letalidade policial. À época, contudo, não foi determinada explicitamente a fixação de critérios às incursões policiais, mas simplesmente a estipulação de metas e objetivos de redução de letalidade. No ano 2000, o Estado brasileiro foi condenado pelo homicídio de 111 detentos em incursão policial no centro prisional Carandiru. Naquela oportunidade, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) responsabilizou o Estado por violações aos arts. 4 e 5 da CADH, porém deixou de tecer recomendações legislativas de contenção à violência policial.31

28

Adotado pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1996 e, subsequentemente, regulamentado em nível nacional pelo Decreto nº 592 de 1992.

29 Pacto, art. 6 (1). O direito à vida é inerente à pessoa humana. Esse direito deverá ser protegido pela lei. Ninguém poderá ser arbitrariamente privado de sua vida. 30

Em outubro de 1994 e maio de 1995, duas incursões policiais na Favela Nova Brasília, Rio de Janeiro, vitimaram fatalmente 26 pessoas. Em decorrência da omissão investigativa de órgãos públicos e da impunidade dos agentes responsáveis, o caso foi submetido à Corte em 2015 e sentenciado em 2017. A sentença reconheceu a responsabilidade do Estado brasileiro pela violação do direito à vida e integridade pessoal de vítimas e familiares. Dentre outras medidas, foi determinada a adoção de políticas públicas tendentes à redução da letalidade policial e à otimização da investigação de atos violentos perpetrados por agentes de segurança pública.

31

Em outubro de 1992, 111 mortes foram ocasionadas pela invasão do Carandiru pela polícia militar do Estado de São Paulo. Diante da letargia investigativa diante do ocorrido, o caso foi levado à CIDH em 1994. As investigações e audiências conduziram à responsabilização do Estado brasileiro e à recomendação de implementação de medidas investigativas e de contenção à desumanização do cárcere. 323

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Código de Conduta para os Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei O Código de Conduta para os Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei foi adotado como resolução pela Assembleia Geral das Nações Unidas32 e impõe importantes limitações ao uso de força e, em específico, de armas de fogo por agentes de segurança pública. O documento determina que o uso de força é ato excepcional, justificado quando estritamente necessário e em intensidade correspondente ao cumprimento de dever policial.33 Paralelamente, impõe aos Estados a obrigação de prever, por meio de lei, critério de proporcionalidade que balize a utilização de força naquelas condições e proíbe a derrogação de tal critério em favor do uso de força.34 O uso de armas de fogo, por sua vez, é caracterizado pelo Código de Conduta como medida extrema e justificada exclusivamente quando um ofensor oponha resistência armada ou arrisque a vida de terceiros, desde que medidas menos extremadas sejam (a) insuficientes à apreensão de ofensor ou (b) inexistentes. Além disso, é explícita a vedação de violência armada contra crianças.35 Além das restrições já citadas, o Código de Conduta atribui às forças de segurança pública o dever de assegurar atendimento médico, quer solicitado pela vítima ou não, conduzido por profissional médico habilitado cujas decisões e recomendações deverão ser levadas em consideração pelo agente de segurança pública.36

32

Resolução 34/169, datada de 17 de dezembro de 1979.

33

Código de Conduta, art. 3º: "Law enforcement officials may use force only when strictly necessary and to the extent required for the performance of their duty".

34

Código de Conduta, comentários ao art. 3: "National law ordinarily restricts the use of force by law enforcement officials in accordance with a principle of proportionality. It is to be understood that such national principles of proportionality are to be respected in the interpretation of this provision. In no case should this provision be interpreted to authorize the use of force which is disproportionate to the legitimate objective to be achieved".

35

Código de Conduta, comentários ao art. 3: "The use of firearms is considered an extreme measure. Every effort should be made to exclude the use of firearms, especially against children. In general, firearms should not be used except when a suspected offender offers armed resistance or otherwise jeopardizes the lives of others and less extreme measures are not sufficient to restrain or apprehend the suspected offender. In every instance in which a firearm is discharged, a report should be made promptly to the competent authorities".

36

Código de Conduta, art. 6 e comentários: "Law enforcement officials shall ensure the full protection of the health of persons in their custody and, in particular, shall take immediate action to secure medical attention whenever required".

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Princípios Básicos sobre o Uso da Força e Armas de Fogo por Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei Adotados em 1992 pelo 8º Congresso das Nações Unidas sobre Prevenção ao Crime e Justiça Criminal. Em suma, exigem que o manejo de arma de fogo, quando inevitável, deverá ser: (i) proporcional à ofensa e medida de ultima ratio (e, mesmo em tal condição, deverá priorizar resultados não letais), sempre antecedido de identificação do agente de segurança pública e de alerta quanto ao seu uso e sucedido por prestação de assistência médica aos feridos, notificação de amigos próximos ou parentes e relato aos imediatos superiores do agente público;37 e (ii) condicionado às seguintes hipóteses: (i) servir à autodefesa ou defesa de terceiro contra iminente ameaça de morte ou lesão grave; (ii) prevenção a crime grave envolvendo ameaça à vida; ou (iii) prisão de pessoa que ameace o direito à vida de terceiro, quer oferecendo resistência à autoridade ou para evitar sua fuga.38 Adicionalmente, os princípios ainda preveem que o regulador deverá fixar regras que (i) restrinjam o porte de arma de fogo e as circunstâncias que permitem seu uso, em valorização de modos de uso que mitiguem riscos desnecessários39 e (ii) possibilitem que agentes públicos reportem quaisquer usos de arma de fogo na execução de seus deveres. 37

Princípios, art. 5 (a), (b), (c) e (d): "Whenever the lawful use of force and firearms is unavoidable, law enforcement officials shall: (a) exercise restraint in such use and act in proportion to the seriousness of the offence and the legitimate objective to be achieved; (b) minimize damage and injury, and respect and preserve human life; (c) ensure that assistance and medical aid are rendered to any injured or affected persons at the earliest possible moment; (c) ensure that relatives or close friends of the injured or affected person are notified at the earliest possible moment".

38

Princípios, art. 9: "Law enforcement officials shall not use firearms against persons except in self-defence or defence of others against the imminent threat of death or serious injury, to prevent the perpetration of a particularly serious crime involving grave threat to life, to arrest a person presenting such a danger and resisting their authority, or to prevent his or her escape, and only when less extreme means are insufficient to achieve these objectives. In any event, intentional lethal use of firearms may only be made when strictly unavoidable in order to protect life".

39

As limitações devem incidir sobre (i) as justificativas ao manejo de arma de fogo e (ii) os tipos de armas de fogo e munições autorizados. Nesse sentido, cf. princípios, art. 11 (a), (b) e (c): "Rules and regulations on the use of firearms by law enforcement officials should include guidelines that: (a) specify the circumstances under which law enforcement officials are authorized to carry firearms and prescribe the types of firearms and ammunition permitted; (b) ensure that firearms are used only in appropriate circumstances and in a manner likely to decrease the risk of unnecessary harm; (c) prohibit the use of those 325

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Procedimentos para acionamento dos mecanismos internacionais e regionais de defesa dos direitos humanos Mecanismos Regionais: Comissão Interamericana de Direitos Humanos e Corte Interamericana de Direitos Humanos Em âmbito regional, a CIDH e a Corte-IDH, que, em conjunto, formam o Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos, são os principais mecanismos voltados para salvaguarda e proteção dos direitos humanos, funcionando com o intuito de promover, observar e garantir a efetivação dos direitos inerentes à pessoa humana, com foco na região. Enquanto a CIDH é um órgão autônomo interno da Organização dos Estados Americanos (OEA), a Corte-IDH é uma instituição jurídica autônoma que tem como objetivo a aplicação e interpretação da CADH. Esses dois mecanismos podem ser utilizados para o recebimento de denúncias em casos específicos, porém, seus procedimentos internos funcionam de maneira diversa. Ao passo que qualquer pessoa, grupo de pessoas ou entidade não governamental legalmente reconhecida em um ou mais Estados-membro da OEA pode oferecer denúncias à Comissão,40 a Corte só aceita petições diretamente submetidas pelos Estados signatários da CADH ou pela própria Comissão.41 A denúncia à comissão deve ser submetida com base nas supostas violações de direitos alegadas pela parte peticionária, desde que tais violações estejam previstas nos instrumentos internacionais englobados pelo regulamento da CIDH.42 Em regra, para julgamento da demanda, a admissibilidade da petição está sujeita ao esgotamento das instâncias jurisdicionais internas. No entanto, o regulamento da Comissão prevê que, em caso de atraso injustificado no firearms and ammunition that cause unwarranted injury or present an unwarranted risk; […] (f) Provide for a system of reporting whenever law enforcement officials use firearms in the performance of their duty". 40

Regulamento da CIDH, art. 23.

41

CADH, art. 61.

42

São englobados os seguintes instrumentos: Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, na Convenção Americana sobre Direitos Humanos “Pacto de San José da Costa Rica”, no Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais “Protocolo de San Salvador”, no Protocolo à Convenção Americana sobre Direitos Humanos Referente à Abolição da Pena de Morte, na Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, na Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas, e na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher. Listados no Regulamento da CIDH, art. 45.

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julgamento de recursos no bojo da ação, a denúncia poderá ser aceita, mesmo que o processo ainda esteja tramitando internamente.43 Mediante a admissão da denúncia, um caso é instaurado com o objetivo de avaliar e julgar o mérito da demanda proposta. A análise de mérito dará origem a um relatório preliminar com a análise dos fatos apurados, que poderá (i) constatar que não houve violação, comunicar as partes e encerrar o caso ou (ii) constatar a violação e indicar medidas, proposições e recomendações para que o Estado possa reverter ou solucionar as transgressões verificadas no caso concreto. Dessa maneira, verificando a Comissão que as medidas propostas no relatório preliminar não foram atendidas pelo Estado, após três meses, publicará relatório definitivo com as constatações e recomendações finais, bem como parecer do caso, podendo o caso ser encaminhado para a Corte-IDH, se restarem verificados quesitos44 como o nível de gravidade da violação. A Corte, por sua vez, tem função jurisdicional45 e somente pode ser acessada por meio de requerimento por parte do Estado-membro ou de submissão do caso analisado pela Comissão. Exercendo sua função jurisdicional, a Corte realiza o julgamento do caso. Caso decida que houve violação de um direito ou liberdade resguardado pela CADH, é determinado, a depender do caso, que: (i) seja assegurado ao prejudicado o gozo de seu direito ou liberdade violado, (ii) reparação das consequências da medida ou situação que configurou a violação dos direitos e (iii) pagamento de eventuais indenizações às partes lesadas.46 Além disso, enquanto a Comissão emite como resultado do procedimento um relatório, a Corte emite uma sentença. Enquanto o relatório não tem força vinculante, a sentença é definitiva e irrecorrível, a qual o Estado-membro, ao aceitar sua jurisdição, está sujeito a cumprir. Embora a análise jurisprudencial indique que existe um grau razoável de implementação no direito interno de medidas propostas pela Comissão ou pela Corte, esse não é um procedimento simples, e pode levar um tempo elevado47 para que se obtenha uma decisão definitiva sobre o caso em voga.

43

CADH, art. 31.

44 Listados no Regulamento da CIDH, art. 45. 45

Desde que o país tenha se submetido à jurisdição da Corte, como no caso do Brasil.

46

CADH, art. 63.

47

Caso Gomes Lund e Outros vs. Brasil – Petição apresentada à comissão em 1995, admitida em 2001, relatório emitido em 2008, submetida à Corte em 2009, com decisão final proferida em 2010; Caso Favela Nova Brasília – Petição apresentada em 1995, admitida em 327

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Mecanismos Internacionais: Organização das Nações Unidas e Conselho de Direitos Humanos No âmbito internacional, a Organização das Nações Unidas (ONU) oferece, por meio do Conselho de Direitos Humanos (CDH), mecanismos que possibilitam a denúncia de casos de violação aos direitos humanos. As denúncias podem ser realizadas por qualquer pessoa que entenda ter sofrido uma violação em seus direitos fundamentais. Para que sejam aceitas as denúncias, é necessário que tenham sido esgotadas as vias jurídicas internas, porém, assim como ocorre no sistema interamericano, em casos de ineficácia ou prolongamento excessivo dos procedimentos internos para julgamento, os mecanismos da ONU podem ser acessados. O sistema de denúncias se subdivide em duas vertentes: (i) os procedimentos especiais, por meio dos EETD, e (ii) a denúncia a um dos OCTIDH. O primeiro mecanismo de denúncias é comumente utilizado em casos de urgência, que são analisados por especialistas na matéria específica,48 baseando-se geralmente, na necessidade de atuação rápida e visando à proteção das vítimas. Quanto ao segundo procedimento, destaca-se, dentre os órgãos do OCTIDH, o Comitê de Direitos Humanos da ONU (Comitê). Ao Comitê devem ser submetidas denúncias que se enquadrem em violações de direitos ou garantias previstas no Pacto. A conclusão dos procedimentos leva à emissão de um relatório, no qual, caso constatadas as alegadas violações, o órgão determinará ao Estado medidas para reparação dos direitos e garantias violados. Importa notar que tais medidas não têm caráter vinculante do ponto de vista do direito interno.

10.5 Análise dos questionamentos A partir do conceito e da jurisprudência sobre ACP no Brasil (seção 10.1 e 10.2), bem como da apresentação de estratégias alternativas de atuação judicial para a garantia dos direitos pretendidos com a propositura da ACP da Maré (seção 10.3) e, por fim, do levantamento de normas nacionais e mecanismos regionais de controle (seção 10.4), esta última seção analisará, de forma sintética, os questionamentos elaborados pela Redes da Maré ao Mattos Filho. 1998, relatório emitido em 2011, submetida à Corte em 2015, com decisão final proferida em 2017; Caso Fazendo Nova Brasil – Petição apresentada à comissão em 1998, relatório emitido em 2011, submetida à Corte em 2015, com decisão final proferida em 2016. 48

Existem diversos escritórios que tratam das mais variadas temáticas; para o caso da ACP, destaca-se o “Special Rapporteur on Extrajudicial, Summary or Arbitrary Executions”.

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(i)

Há experiências de ACP similares no Brasil? Quais as estratégias utilizadas e

os resultados dessas outras experiências? Sim. Como demonstrado na seção 10.1 , há experiências de ACP similares no Brasil. A partir dos casos analisados, foi possível verificar que, nos tribunais superiores (STF e STJ), prevalece o entendimento de que (i) a ACP é instrumento hábil ao controle judicial de políticas públicas; e (ii) o Poder Judiciário pode intervir na execução de políticas públicas no caso de violação da ordem jurídica, especialmente em se tratando de direitos fundamentais. Embora o entendimento dos tribunais superiores seja favorável à implementação de políticas públicas pelo Poder Judiciário (inclusive por meio de ACP), destaca-se que o entendimento majoritário no TJRJ é adverso: entende-se que a intervenção do Poder Judiciário nas políticas de segurança pública violaria o princípio da separação dos poderes. (ii) Quais são os cenários para o prosseguimento da ACP da Maré e os mecanismos regionais e internacionais de denúncia caso haja demora da justiça brasileira? Em tese, caso seja demonstrado (i) o esgotamento das vias internas ou (ii) atraso demorado na prestação jurisdicional, é possível denunciar o Brasil tanto na OEA quanto na própria ONU por violação às respectivas convenções de direitos humanos. O atraso a que se refere é uma quase paralisação ou recusa do sistema judicial do Brasil em lidar com o tema, pois, enquanto o Estado Brasileiro estiver atuando, organismos internacionais não teriam, via de regra, jurisdição. (iii) Quais são os marcos normativos internacionais envolvendo segurança pública? São inúmeros os instrumentos internacionais que tratam do tema, e os mais pertinentes são: (i) Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos; (ii) Convenção Interamericana de Direitos Humanos; (iii) Código de Conduta para os Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei e (iv) Princípios Básicos sobre o Uso da Força e Armas de Fogo por Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei. (iv) Quais estratégias jurídicas podem ser adotadas pela Redes da Maré no âmbito da ACP que deem suporte à Defensoria Pública? Como mencionado , o TJRJ e os demais Tribunais de Justiça do país adotam uma perspectiva restritiva com relação à implementação de políticas de segurança pública por meio de decisão judicial, portanto, no caso ACP da Maré, a interposição de recursos aos Tribunais Superiores (STJ e STF), caso necessária, poderá ser o meio mais eficaz para garantir que os pedidos da ACP da Maré sejam julgados procedentes. 329

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(v) É possível acionar outras instâncias do Judiciário? Sim. Desde que em conjunto com a Defensoria Pública, o Ministério Público ou algum partido político com representação no Congresso Nacional (nos termos do art. 103 da Constituição Federal), a Redes da Maré pode acionar diretamente o STF, por meio de ADPF, conforme os exemplos citados da ADPF 594/RJ e ADPF 635/RJ. (vi) A utilização de helicóptero como instrumento de segurança pública em favelas e comunidades já foi proibida em outros estados? Não. A princípio, os helicópteros deveriam servir apenas como instrumento de apoio, não plataforma de tiro, logo essa utilização já é contra a lei, não havendo nenhuma outra legislação específica além daquelas constantes da seção 10.4. (vii) Qual a regulamentação atual do uso de blindados, aeronaves e outros aparatos de segurança pública no Rio de Janeiro e em outros estados? Qual o histórico dessa regulamentação no Rio de Janeiro? A regulamentação atual é aquela enumerada na seção 10.4. Não há nenhuma organização legislativa a respeito da utilização desses aparatos de segurança pública. Todos são pulverizados, alguns constando apenas de boletins internos das polícias militares. O tipo de atuação policial descrita na ACP da Maré não tem qualquer amparo legal. Não foi encontrada nenhuma legislação pertinente nos demais estados da federação. (viii) Quais os planos e protocolos para atuação policial, sobretudo no que concerne ao uso de helicóptero e carros blindados, em especial nos anos 1990, período pós-ditadura militar? Como informado, os protocolos e leis são pulverizados; toda a legislação vigente é posterior ao período da ditadura militar. (ix) Há exemplos de planos e protocolos elaborados no plano internacional que poderiam ajudar tanto no processo judicial quanto nas nossas ações de incidência local? A situação descrita na ACP da Maré se assemelha àquelas descritas em casos de genocídio ou guerra civil, não havendo qualquer plano ou protocolo para o tipo de situação enfrentada sem que haja conflito declarado. A atuação da força policial contra a população, como se vê descrita na ACP da Maré, é marcadamente sui generis.

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Prerrogativas da Advocacia

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11. Princípios básicos das Organizações das Nações Unidas sobre o papel da advocacia: jurisprudência nacional e internacional

Neste capítulo, apresentaremos o memorando elaborado à Law Society of England and Wales em novembro de 2020.1 O documento reúne jurisprudência relevante sobre casos relativos à proteção das garantias relacionadas ao exercício da advocacia e descreve decisões proferidas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça entre janeiro de 1990 e outubro de 2020, traçando paralelos com os Princípios Básicos sobre o Papel dos Advogados da ONU. O memorando evidencia que, mesmo sem terem sido formalmente internalizados pelo ordenamento jurídico brasileiro, os direitos e as garantias previstos no documento da ONU estão, em sua maioria, presentes em dispositivos legais já existentes no país.

Introdução Este relatório foi elaborado originalmente em inglês, a pedido da Law Society of England and Wales (Law Society), a fim de apresentar a jurisprudência relacionada ao exercício da advocacia e aos Princípios Básicos da ONU sobre o Papel dos Advogados. O relatório resume as decisões proferidas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte-IDH), pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) nos últimos trinta anos

1

Ana Clara Mendonça do Nascimento, Beatriz Ripoll Tosta, Bianca dos Santos Waks, Fernando Rafael Saraiva Issa, Francisca Guerreiro Andrade, Júlia Piazza Leite Monteiro, Leonardo de Faria Caminhoto Pedrotti, Leonardo Kozlowski Miguez e Scylla de Moraes Barros Fucs.

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Direitos humanos em evidência

(janeiro de 1990 a outubro de 2020) relacionadas ao papel de advogados, especialmente aquelas em conformidade aos Princípios Básicos da Organização das Nações Unidas (ONU). Considerando que nenhum dos resultados mencionou expressamente os Princípios Básicos da ONU, a jurisprudência apresenta 35 decisões de algum modo relacionadas aos direitos dos advogados, mencionando o correspondente normativo dos princípios da Convenção Americana sobre Direitos Humanos,2 da Constituição Federal e do Estatuto da Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).3 No âmbito internacional, a pesquisa se limitou aos resultados nos quais o Brasil era parte. Casos semelhantes decididos da mesma forma pelo mesmo tribunal foram agrupados em uma única tabela, de modo que cada tabela diz respeito a um entendimento sobre uma prerrogativa da advocacia. Embora nenhuma das decisões se refira especificamente aos Princípios Básicos da ONU, os resultados dos julgamentos são baseados: 1. Quando no Sistema Interamericano de Direitos Humanos, nos artigos 7 e 8 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. As decisões mencionadas concederam o direito de acesso a uma defesa digna e reconheceram os defensores de direitos humanos como um grupo que, devido à sua função social, sofre de vulnerabilidade específica. 2. Quando em Tribunais superiores brasileiros, no Estatuto da Advocacia da OAB, embora muitas decisões não tenham especificado o conteúdo exato da legislação relativa aos direitos dos advogados, mas mencionado normativas amplas e genéricas, a exemplo da Constituição Federal. Das 35 decisões analisadas, 18 foram consideradas referência para a decisão de casos envolvendo matérias idênticas ou semelhantes e, portanto, refletidas na forma das tabelas a seguir. Em 18 dessas 35 decisões, o autor agia por intermédio de representante legal; em oito, o próprio advogado era o autor; e em nove, o autor era uma instituição, tal como a OAB ou outras entidades de classe. Nenhuma das decisões mencionou nominalmente os Princípios Básicos da ONU, mas 71% das decisões reconheceram a violação dos direitos e prerrogativas da advocacia – a maioria mencionou o direito a uma cela especial (cinco casos) e o direito de comparecer em juízo ou perante a autoridade administrativa (quatro casos). 2

Artigos 7 e 8 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.

3

Constituição Federal (direitos fundamentais no processo) e sobre Estatuto da Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil (direitos dos advogados).

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11.1 Jurisprudência A pesquisa de jurisprudência considerou a ferramenta de busca disponível nos sites do STF, STJ e Corte-IDH. A pesquisa abrange o período de 1º de janeiro de 1990 (ano de publicação dos Princípios Básicos da ONU sobre o Papel dos Advogados) até 31 de outubro de 2020, e usou as seguintes palavras-chave: “papel do advogado”; “prerrogativa do advogado”; “função do advogado”; “Lei 8.906/94” e “artigo 7º”; “confidencialidade do advogado”; “confidencialidade” e “profissão” e “advocacia”; “comunicação com advogado” ou “comunicação com seu advogado”; “restrição” e “prerrogativa” e “advogado” ou “advogada”; “direito de defesa” e “advogado” ou “advogada”; “direito de comunicação com o cliente”; “inviolabilidade do escritório” e “inviolabilidade de opiniões do advogado”; “cerceamento do direito de defesa” e “comunicação com advogado”; “ameaça ao advogado”; “ameaça à advogada”; “segurança do advogado”; “segurança da advogada”; “independência e autonomia do advogado”; “independência e autonomia da advogada”; “liberdade do advogado”; “liberdade da advogada”; “busca e apreensão” e “escritório de advocacia”. As 18 tabelas relacionadas seguir reúnem informações sobre decisões judiciais proferidas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça que são consideradas representativas em determinado assunto em referência aos Princípios Básicos da ONU. Cada tabela, ao final, também menciona outros processos sobre o mesmo tema, se aplicável (“jurisprudência similar”).

11.1.1 Corte Interamericana de Direitos Humanos

Direito à Liberdade Nome do caso

Gomes Lund e outros vs. Brasil (“Guerrilha do Araguaia”)

Número do processo

Série C No. 219

Link para a fonte

https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/ seriec_219_esp.pdf

Data da sentença

24 de novembro de 2010

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Direitos humanos em evidência

O autor é um advogado ou está atuando como representante legal?

O autor é representante legal de um cliente.

Breve resumo dos fatos

O Centro pela Justiça e o Direito Internacional – Cejil e a Human Rights Watch/Américas apresentaram uma petição perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos em nome das pessoas desaparecidas no contexto da Guerrilha do Araguaia buscando a condenação do Brasil.

Breve resumo das questões relacionadas com o exercício da advocacia

A Corte reconheceu que o Brasil foi culpado pelo desaparecimento e pela violação de direitos de 62 pessoas durante a ditadura militar, o que constitui uma violação à liberdade pessoal (prevista no artigo 7º da Convenção Americana de Direitos Humanos, dentre outros normativos) e dispõe serem direitos de detentos (i) serem informados das razões de sua detenção, bem como sua pronta notificação da acusação ou acusações contra eles (artigo 7.4); (ii) serem imediatamente apresentados a um juiz ou outro oficial autorizado por lei para exercer poder judicial e terem direito a julgamento dentro de um prazo razoável ou serem postos em liberdade sem prejuízo da continuação do processo (artigo 7.5) e (iii) terem o direito de recorrer a um tribunal competente, para que o tribunal possa decidir sem demora sobre a legalidade de sua prisão ou detenção e ordenar sua liberdade provisória, se a prisão for considerada ilegal (artigo 7.6).

O caso faz referência aos Princípios Básicos da ONU? Em caso afirmativo, quais são os princípios nomeados?

Não, no entanto o caso está relacionado ao Princípio Básico 2 da ONU.

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Princípios básicos das Organizações das Nações Unidas sobre o papel da advocacia

Este julgamento, ou os parágrafos relevantes relativos ao exercício da advocacia, é vinculativo em sua jurisdição? Se sim, vincula todos ou apenas as partes envolvidas?

Sim, o caso é vinculativo apenas para o Brasil.

Parágrafos relevantes da sentença

“Da mesma forma, a Corte reitera que causar o desaparecimento de pessoas constitui uma violação multiofensiva que começa com uma privação de liberdade contrária ao artigo 7 da Convenção Americana.”

Legislação

Convenção Americana sobre Direitos Humanos, 1969. "Artigo 7. Direito à liberdade pessoal [...] Qualquer pessoa detida será informada das razões de sua detenção e será prontamente notificada da acusação ou acusações contra ela. Qualquer pessoa detida deve ser apresentada imediatamente a um juiz ou outro oficial autorizado por lei a exercer o poder judicial e terá o direito a julgamento dentro de um prazo razoável ou a ser libertada sem prejuízo da continuação do processo. Sua libertação pode estar sujeita a garantias para assegurar seu comparecimento ao julgamento. Qualquer pessoa privada de liberdade tem direito a recorrer ao tribunal competente, a fim de que este tribunal decida sem demora sobre a legalidade da sua prisão ou detenção e ordene a sua libertação, se a prisão ou detenção for ilegal. Nos Estados Partes cujas leis preveem que qualquer pessoa que se considere ameaçada de privação de liberdade tem o direito de recorrer a um tribunal competente para que este decida sobre a legalidade de tal ameaça, este recurso não pode ser restringido ou abolido. O interessado ou outra pessoa em seu nome tem o direito de buscar esses recursos."

Comentários adicionais (se houver)

A Corte Interamericana de Direitos Humanos reconheceu que o Brasil violou o direito à liberdade pessoal de 62 pessoas desaparecidas na Guerrilha do Araguaia, durante a ditadura militar brasileira.

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Direitos humanos em evidência

Direito a um Julgamento Justo Nome do caso

Nogueira de Carvalho vs. Brasil

Número do processo

Série C No. 161

Link para a fonte

https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/ seriec_161_ing.pdf

Data da sentença

28 de novembro de 2006

O autor é um advogado ou está atuando como representante legal?

O autor é representante legal de um cliente.

Breve resumo dos fatos

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos entrou com um pedido junto ao IACtHR para determinar se o Brasil foi responsável por violar o direito estabelecido no artigo 8 da Convenção Americana (direito a um julgamento justo) e outros direitos relacionados ao dano sofrido por Jaurídice Nogueira de Carvalho e Geraldo Cruz de Carvalho em razão da falta de diligência no processo de apuração de fatos e de aplicação de sanções aos responsáveis pela morte do advogado Francisco Gilson Nogueira de Carvalho, bem como pelo não provimento do recurso efetivo no caso. Francisco Gilson Nogueira de Carvalho foi um advogado e defensor dos direitos humanos que passou parte de sua vida denunciando crimes cometidos pelos “homens de ouro”, um suposto esquadrão da morte formado por policiais civis e outros funcionários públicos. O advogado foi assassinado em 20 de outubro de 1996.

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Princípios básicos das Organizações das Nações Unidas sobre o papel da advocacia

Breve resumo das questões relacionadas com o exercício da advocacia

A Corte IDH analisou uma possível violação do artigo 8 da Convenção Americana de Direitos Humanos, uma vez que o Brasil não investigou, perseguiu, apreendeu, processou e condenou os responsáveis pela morte do advogado brasileiro Francisco Gilson Nogueira de Carvalho. Considerando o acesso limitado aos fatos que o Tribunal dispunha, não foi possível demonstrar ter o Brasil violado o direito a um julgamento justo, de modo que o Tribunal decidiu arquivar o caso. A Corte, no entanto, destacou que “os Estados têm o dever de fornecer os recursos necessários para que os defensores dos direitos humanos possam exercer suas atividades com liberdade”.

O caso faz referência aos Princípios Básicos da ONU? Em caso afirmativo, quais são os princípios nomeados?

Não, no entanto o caso está relacionado ao Princípio Básico 16 da ONU.

Este julgamento, ou os parágrafos relevantes relativos ao exercício da advocacia, é vinculativo em sua jurisdição? Se sim, vincula todos ou apenas as partes envolvidas?

A sentença não é vinculativa, tendo em vista que o Brasil não foi considerado responsável por quaisquer violações à Convenção Americana sobre Direitos Humanos.

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Direitos humanos em evidência

Parágrafos relevantes da sentença

“Para que os direitos humanos de todas as pessoas sob sua jurisdição sejam efetivamente respeitados e garantidos está intrinsecamente ligado à proteção e ao reconhecimento do importante papel desempenhado pelos defensores dos direitos humanos, conforme tem sido estabelecido na contínua jurisprudência da Corte. […]” “77. Os Estados têm o dever de fornecer os recursos necessários para que os defensores de direitos humanos exerçam suas atividades com liberdade; protegê-los quando estiverem sujeitos a ameaças e, assim, evitar qualquer atentado contra sua vida e segurança; abster-se de criar obstáculos que possam dificultar o seu trabalho e conduzir investigações conscienciosas e eficazes das violações contra eles, evitando, assim, a impunidade.”

Legislação

Artigo 8 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos: "1. Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.”

11.1.2 Supremo Tribunal Federal

Direito de Negar o Testemunho

Nome do caso

Habeas Corpus 84.548 | São Paulo Partes: Sérgio Gomes da Silva vs Roberto Podval e outros; Superior Tribunal de Justiça

Número do processo

HC 84.548/SP

Link para a fonte

https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/ sjur299970/false

Data da sentença

4 de março de 2015

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Princípios básicos das Organizações das Nações Unidas sobre o papel da advocacia

O autor é um advogado ou está atuando como representante legal?

O autor é representante legal de um cliente.

Breve resumo dos fatos

O caso diz respeito a um HC apresentado para reverter uma decisão de julgamento que negou a revogação de uma prisão preventiva, solicitando a revisão por um tribunal superior.

Breve resumo das questões relacionadas com o exercício da advocacia

Durante a análise do caso, o Tribunal discutiu os limites das atribuições do Ministério Público Federal nas investigações. O Tribunal destacou que, nos termos do art. 7º, XIX, do Estatuto de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil, os poderes de investigação do MPF devem respeitar o direito dos advogados de negar o depoimento, dada a relação de sigilo entre advogado e cliente e o privilégio advogado-cliente. O HC discutiu outros tópicos relacionados à prisão preventiva que não serão apresentados aqui.

O caso faz referência aos Princípios Básicos da ONU? Em caso afirmativo, quais são os princípios nomeados?

Não, no entanto o caso está relacionado ao Princípio Básico 22.

Este julgamento, ou os parágrafos relevantes relativos ao exercício da advocacia, é vinculativo em sua jurisdição? Se sim, vincula todos ou apenas as partes envolvidas?

O resultado do julgamento deste HC é vinculante apenas às partes do processo. De todo modo, como foi julgado pelo STF, pode ser frequentemente utilizado como jurisprudência.

Parágrafos relevantes da sentença

“[...], apesar de a relevância do Ministério Público ser indiscutível, não se pode intimar advogados a depor, como testemunhas, a respeito de fatos relacionados ao seu cliente, sob pena de grave violação do privilégio advogado-cliente, visto que, como não se pode ignorar, o advogado tem o direito de se negar a prestar depoimento em tais casos, conforme disposto no art. 7º, XIX, da Lei Federal nº 8.906/1994.” (p. 76)

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Direitos humanos em evidência

Legislação

Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), artigo 7, XIX: "Art. 7: São direitos do advogado: XIX - recusar-se a depor como testemunha em processo no qual funcionou ou deva funcionar, ou sobre fato relacionado com pessoa de quem seja ou foi advogado, mesmo quando autorizado ou solicitado pelo constituinte, bem como sobre fato que constitua sigilo profissional."

Direito à Sala de Estado Maior

Nome do caso

Reclamação Constitucional 14.267 | São Paulo/ SP Partes: Dionizio dos Santos Menino Neto vs. Juiz de Direito da 5ª Vara Criminal da Comarca de São José do Rio Preto

Número do processo

Reclamação 14.267/SP

Link para a fonte

https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/ sjur282153/false

Data da sentença

5 de agosto de 2014

O autor é um advogado ou está atuando como representante legal?

O reclamante é um advogado, devidamente representado por advogado que atua como seu representante legal.

Breve resumo dos fatos

O caso diz respeito a uma queixa constitucional apresentada para reverter uma decisão da sentença que negou o pedido do requerente a uma cela especial chamada sala de Estado Maior.

Breve resumo das questões relacionadas com o exercício da advocacia

Durante a análise do processo, o Tribunal indeferiu o pedido do autor a uma cela especial denominada sala de Estado Maior. O Ministro relator Gilmar Mendes mencionou a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 127, que reconheceu a constitucionalidade do art. 7º, V do Estatuto de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil, que prevê o direito de o advogado não ser recolhido preso antes de sentença transitada em julgado senão em sala de Estado Maior.

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Princípios básicos das Organizações das Nações Unidas sobre o papel da advocacia

O caso faz referência aos Princípios Básicos da ONU? Em caso afirmativo, quais são os princípios nomeados?

O caso não faz referência aos Princípios Básicos da ONU.

Este julgamento, ou os parágrafos relevantes relativos ao exercício da advocacia, é vinculativo em sua jurisdição? Se sim, vincula todos ou apenas as partes envolvidas?

O resultado do julgamento desta Reclamação Constitucional é vinculante apenas às partes do processo. De todo modo, como foi julgado pelo STF, pode ser frequentemente utilizado como jurisprudência.

Parágrafos relevantes da sentença

O Tribunal também entendeu que o direito a uma cela especial equivale a qualquer espaço em uma unidade estadual de segregação provisória que reúna os atributos de instalações e acomodações dignas (p. 6).

Legislação

Estatuto de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil, artigo 7, V: "Artigo 7: Direitos do advogado V - Não ser recolhido preso, antes de sentença transitada em julgado, senão em sala de Estado Maior, com instalações e comodidades condignas e, na sua falta, em prisão domiciliar."

Comentários adicionais

Jurisprudência semelhante: HC 12.8352/SP; HC 116.384/SP; HC 119.477/SP; HC 119.487/ PB; Rcl 6.810/AL; Rcl 14.934-MC/SP; e Rcl 15.815/ PB. Ainda, a ADI 127 reconheceu a constitucionalidade do art. 7º, V do Estatuto de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil. Durante as argumentações, foi ressaltado que o artigo 295, 1º parágrafo do Código de Processo Penal Brasileiro, promulgado após o Estatuto de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil, estabelecia todas as possibilidades de celas especiais, por isso o STF entendeu que os advogados têm direito a uma cela especial, mas não exclusivamente à sala de Estado Maior.

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Direitos humanos em evidência

Direito de Consultar com o Cliente

Nome do caso

Habeas Corpus 112.558 | Rio de Janeiro Partes: Rafael Fernandes Campos Lima; Alessandro Fernandes Campos Lima; Alexandre Lemos Frossard vs Superior Tribunal de Justiça

Número do processo

HC 112.558/RJ

Link para a fonte

https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/ sjur25094/false

Data da sentença

11 de junho de 2013

O autor é um advogado ou está atuando como representante legal?

O autor foi representado por advogados.

Breve resumo dos fatos

O caso diz respeito a um HC apresentado contra decisão de um ministro do Superior Tribunal de Justiça, em que o STJ havia negado os argumentos de violação do direito à ampla defesa pelo fato de os advogados não poderem discutir adequadamente com seus clientes, já que a conversa era feita por interfones e separada por uma parede de vidro.

Breve resumo das questões relacionadas com o exercício da advocacia

Durante a análise do caso, o Tribunal reconheceu o direito de advogados discutirem questões privativamente com seus clientes, nos termos do artigo 7º, III, do Estatuto de Advocacia da OAB. No entanto, o Tribunal decidiu que esse direito deve ser interpretado em conjunto com os direitos de segurança dos advogados, das pessoas presas e dos funcionários da prisão. Assim o Tribunal decidiu que não há prejuízo ao direito do advogado ou ao princípio da plena defesa, tal como defendido pelos demandantes, referindo, ainda, que no direito penal devem prevalecer os princípios pas de nullité sans grief. Em suma, o Tribunal decidiu que as conversas realizadas por interfones e separadas por uma parede de vidro não violam os direitos do advogado.

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Princípios básicos das Organizações das Nações Unidas sobre o papel da advocacia

O caso faz referência aos Princípios Básicos da ONU? Em caso afirmativo, quais são os princípios nomeados?

Não, no entanto o caso está relacionado ao Princípio Básico 16 (b).

Este julgamento, ou os parágrafos relevantes relativos ao exercício da advocacia, é vinculativo em sua jurisdição? Se sim, vincula todos ou apenas as partes envolvidas?

O resultado do julgamento deste HC é vinculante apenas às partes do processo. De todo modo, como foi julgado pelo STF, pode ser frequentemente utilizado como jurisprudência.

Parágrafos relevantes da sentença

“A presença de vidro e interfone para comunicação entre advogado e cliente preso preventivamente, não ofende a garantia prevista no art. 7º, III, da Lei Federal 8.906/1994 (Estatuto de Advocacia da Ordem dos Advogados).” (p. 1)

Legislação

Estatuto de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil, artigo 7, III: "Artigo 7: Direitos do advogado: III - comunicar-se com seus clientes, pessoal e reservadamente, mesmo sem procuração, quando estes se acharem presos, detidos ou recolhidos em estabelecimentos civis ou militares, ainda que considerados incomunicáveis [...]."

Comentários adicionais

Jurisprudência semelhante: HC 107.769/PR; e HC 120.393 AgR/ SP.

Direito de Acessar os Autos

Nome do caso

Mandado de Segurança 26.772 | Distrito Federal Partes: João José Machado de Carvalho vs Relator do TC No 017.562/2006-5; Tribunal de Contas da União

Número do processo

MS 26.772/DF

Link para a fonte

https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/ sjur188293/false

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Direitos humanos em evidência

Data da sentença

3 de fevereiro de 2011

O autor é um advogado ou está atuando como representante legal?

O próprio requerente atua como advogado.

Breve resumo dos fatos

Trata-se de Mandando de Segurança interposto contra decisão do Tribunal de Contas da União que não permitiu o acesso aos autos a advogado que não representava nenhuma das partes no processo.

Breve resumo das questões relacionadas com o exercício da advocacia

Durante a análise do processo, o Tribunal decidiu que, nos termos do artigo 7º, XIII do Estatuto de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil, os advogados têm o direito de examinar os autos em curso, mesmo que o processo esteja arquivado ou o advogado não represente nenhuma das partes, desde que os arquivos não sejam mantidos em sigilo. Com isso, o Tribunal determinou que o advogado em questão pudesse ter acesso aos autos.

O caso faz referência aos Princípios Básicos da ONU? Em caso afirmativo, quais são os princípios nomeados?

Não, no entanto o caso está relacionado ao Princípio Básico 21 da ONU.

Este julgamento, ou os parágrafos relevantes relativos ao exercício da advocacia, é vinculativo em sua jurisdição? Se sim, vincula todos ou apenas as partes envolvidas?

O resultado do julgamento deste Mandado de Segurança é vinculante apenas às partes do processo. De todo modo, como foi julgado pelo STF, pode ser frequentemente utilizado como jurisprudência.

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Legislação

Estatuto de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil: "Artigo 7 - Direitos do advogado: XII - examinar, em qualquer órgão do Poder Judiciário e Legislativo, ou da administração pública em geral, autos de processos concluídos ou em andamento, mesmo sem procuração, quando não estiverem sujeitos a sigilo, podendo copiar documentos e fazer anotações; XIII - examinar, em qualquer órgão dos Poderes Judiciário e Legislativo, ou da Administração Pública em geral, autos de processos findos ou em andamento, mesmo sem procuração, quando não estiverem sujeitos a sigilo ou segredo de justiça, assegurada a obtenção de cópias, com possibilidade de tomar apontamentos."

Comentários adicionais (se houver)

Jurisprudência semelhante: RE MS 24.725; SS 3902-Agr-Segundo; MS 26.772/DF; AgR; RE 645.716 AgR/RJ

Busca e Apreensão de Documentos em Escritório de Advocacia

Nome do caso

Habeas Corpus 91.610 | Bahia Partes: Ulisses Cesar Martins de Sousa; Ordem dos Advogados do Brasil; Alberto Zacharias Toron e outros vs Relatora do Inquérito 544 do Superior Tribunal de Justiça.

Número do processo

HC 91.610

Link para a fonte

https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/ sjur183659/false

Data da sentença

8 de junho de 2010

O autor é um advogado ou está atuando como representante legal?

A OAB, representada por advogados, atuou no interesse de assessor federal de advogado da OAB, cujos direitos foram violados.

Breve resumo dos fatos

Trata-se de HC apresentado para reverter decisão de julgamento que permitia a busca e apreensão de documentos em um escritório de advocacia sem a devida especificação das provas a serem coletadas, supondo que o endereço seria a residência do reclamante. A diligência foi realizada sem definição mínima do objeto, resultando em prova nula.

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Direitos humanos em evidência

Breve resumo das questões relacionadas com o exercício da advocacia

Considerando que escritórios de advocacia são locais com documentos de processos diversos, é imprescindível especificar o escopo das medidas de busca e apreensão, que podem ser executadas em estrito cumprimento da ordem judicial e não além dos direitos de quem não é investigado. O Tribunal decidiu (i) declarar a nulidade das provas oriundas da busca e apreensão no escritório de advocacia, (ii) retirar do processo de inquérito em andamento no Superior Tribunal de Justiça os materiais recolhidos, bem como quaisquer das informações decorrentes da busca e apreensão e (iii) devolver o material aos advogados.

Análises adicionais

Ao permitir a coleta de qualquer objeto do processo que pudesse interessar à investigação, o juízo de primeira instância onde a audiência de julgamento foi realizada inicialmente presumiu que o policial poderia definir, caso a caso, qual documento seria importante para a investigação.

O caso faz referência aos Princípios Básicos da ONU? Em caso afirmativo, quais são os princípios nomeados?

Não

Este julgamento, ou os parágrafos relevantes relativos ao exercício da advocacia, é vinculativo em sua jurisdição? Se sim, vincula todos ou apenas as partes envolvidas?

O resultado do julgamento deste HC é vinculante apenas às partes do processo. De todo modo, como foi julgado pelo STF, pode ser frequentemente utilizado como jurisprudência.

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Princípios básicos das Organizações das Nações Unidas sobre o papel da advocacia

Parágrafos relevantes da sentença

“A não especificação do que deve ser coletado na busca e apreensão, quando o advogado não é o investigado, mas sim determinado cliente, atenta contra a garantia constitucional que permite o livre exercício da advocacia.” (p. 252) “É relevante questionar se os escritórios de advocacia podem ser alvo de medidas invasivas, e se estas podem ser decretadas toda vez que aí forem encontradas provas que possam ser utilizadas em ações criminosas e que estejam em poder daqueles que ali desempenham suas funções.” (p. 256) “Não é possível determinar a busca e apreensão em um escritório de advocacia de forma ampla, mesmo que o advogado seja investigado.” (p. 258) “A tutela conferida pela Constituição ao sigilo profissional deve ser considerada como destinada a dar margem à defesa do arguido ou acusado, mas não deve ser aclamada com o objetivo de encobrir possíveis delitos cometidos pelo autor do crime. Se houver fortes indícios de que o material relacionado à busca está relacionado ao crime investigado, deve-se afastar o princípio do sigilo para que o Estado possa buscar os elementos que o permitirão exercer a justiça punível com eficácia.” (p. 258) “Estou emitindo ordem de declaração de nulidade das provas apreendidas no escritório de advocacia, as quais devem ser retiradas do processo de investigação e devolvidas ao paciente.” (p. 260)

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Direitos humanos em evidência

Legislação

Constituição Federal (1988), artigo 5º, X, XI e XII, e artigo 93, IX: “Artigo 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer espécie, garantindo aos brasileiros e estrangeiros residentes no país a inviolabilidade dos direitos à vida, liberdade, igualdade, segurança e propriedade, nos seguintes termos: […] X- a intimidade pessoal, a vida privada, a honra e a reputação são invioláveis, garantindose o direito à indenização pelos danos materiais ou morais decorrentes de sua violação; XI- o domicílio é asilo inviolável do indivíduo, não podendo nele ingressar sem o consentimento do morador, exceto nos casos de flagrante delito, desastre ou resgate, ou, durante o dia, por ordem judicial; XII- o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e telefônicas é inviolável, salvo, neste último caso, por ordem judicial, nas situações e da forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou na fase de instrução do processo penal; [...].” “Art. 93 Lei complementar, proposta pelo Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto do Judiciário, observando os seguintes princípios: […] IX- todas as sentenças dos órgãos judiciais são públicas, e todas as decisões devem ser fundamentadas, sob pena de nulidade; nos casos em que a preservação do direito à intimidade dos interessados em sigilo não prejudicar o interesse público pela informação, a lei poderá limitar o atendimento, em determinadas ocasiões, apenas às próprias partes e a seus procuradores, ou apenas a esses últimos; [...].” Código de Processo Penal (1941), artigo 243, 2º parágrafo: “Art. 243 […] Não será permitida a apreensão de documento em poder do defensor do acusado, salvo quando constituir elemento do corpo de delito.”

Comentários adicionais (se houver)

A exceção à inviolabilidade de um escritório de advocacia (ou outros locais de trabalho de um advogado) pode ocorrer apenas (i) devido a um mandado de busca e apreensão emitido, que deve estar devidamente motivado, e (ii) se os objetos a serem apreendidos constituírem elementos do corpo de delito. Esse regulamento garante a preservação da confidencialidade, da adequada produção de provas e da essencialidade do exercício da advocacia.

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Direito à Assistência Jurídica

Nome do caso

Habeas Corpus 98.118 | Rio de Janeiro Partes: Francisco Recarey Vilar; Marcio Gesteira Palma e outros vs Superior Tribunal de Justiça

Número do processo

HC 98.118/RJ

Link para a fonte

https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/ sjur247871/false

Data da sentença

4 de agosto de 2009

O autor é um advogado ou está atuando como representante legal?

O autor atua como representante legal de um cliente.

Breve resumo dos fatos

O caso diz respeito a um HC apresentado para reverter uma decisão. Os advogados que representaram os autores no início do processo desistiram de apresentar petição de contestação, o que não foi notificado aos autores. Por esse motivo, os autores não tiveram a oportunidade de apresentar apelação e o processo transitou em julgado. Além disso, os autores alegam que o Tribunal não nomeou advogado público, o que prejudicou o direito à ampla defesa, e, portanto, que o processo deveria ser considerado nulo.

Breve resumo das questões relacionadas com o exercício da advocacia

Durante a análise do caso, o Tribunal reconheceu que, uma vez que os autores não foram pessoalmente notificado da renúncia do seu advogado e que o tribunal de primeira instância não nomeou um advogado público nem notificou os autores para escolherem um novo advogado, o direito dos autores a uma defesa foi, de fato, prejudicado. Além disso, o Ministro Relator Celso de Mello destacou fundamento legal de outro caso (RTJ 142/477), no qual foi reconhecido que os réus têm o direito de escolher seu patrono, conforme previsto na Constituição Federal. O Tribunal decidiu que, nos casos em que o patrono anterior desistir da defesa, o réu deve ser notificado para escolher um novo patrono, caso contrário seu direito à ampla defesa ficará prejudicado.

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Direitos humanos em evidência

O caso faz referência aos Princípios Básicos da ONU pelo nome? Em caso afirmativo, quais são os princípios nomeados?

Não, no entanto o caso está relacionado aos Princípios Básicos 1 e 2 da ONU.

Este julgamento, ou os parágrafos relevantes relativos ao exercício da advocacia, é vinculativo em sua jurisdição? Se sim, vincula todos ou apenas as partes envolvidas?

O resultado do julgamento deste HC é vinculante apenas às partes do processo. De todo modo, como foi julgado pelo STF, pode ser frequentemente utilizado como jurisprudência.

Parágrafos relevantes da sentença

“Deve-se observar também que a jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal já reconheceu que aqueles que são processados criminalmente têm o direito de escolher seu próprio advogado” (p. 13)

Legislação

Constituição Federal, artigo 5º, inciso LV.

Comentários adicionais (se houver)

Jurisprudência semelhante: RTJ 142/477; HC 75.962/RJ; HC 80.251/MG; HC 86.734/ PA.

Direito de Acessar Informações e Relatórios de Inquérito Policial

Nome do caso

Habeas Corpus 82.354 | Paraná Partes: Augusto Rangel Larrabure; Alberto Zacharias e outros vs Superior Tribunal de Justiça

Número do processo

HC 82.354/PR

Link para a fonte

https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur97141/ false

Data da sentença

10 de agosto de 2004

O autor é um advogado ou está atuando como representante legal?

O autor atua como representante legal de um cliente.

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Princípios básicos das Organizações das Nações Unidas sobre o papel da advocacia

Breve resumo dos fatos

O caso diz respeito a um HC apresentado para reverter uma decisão de julgamento que não permitiu seus advogados acessarem relatório de inquérito policial, alegando o suposto sigilo do relatório.

Breve resumo das questões relacionadas ao exercício da advocacia

Foi debatido o conflito de interesse público nas investigações confidenciais versus o direito constitucional de ampla defesa e o direito ao contraditório. A decisão do Tribunal discutiu que as disposições constitucionais relativas ao direito ao contraditório e à ampla defesa são objeto de ação judicial, sem mencionar expressamente os autos do inquérito policial – que não constituiria um processo, por isso, em um primeiro momento, a negação do acesso aos autos das investigações policiais não prejudicaria os direitos constitucionais. Contudo, mais adiante o STF reconheceu que é direito dos advogados o acesso aos autos em qualquer delegacia de polícia (citando o artigo 7º, XIV do Estatuto de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil) e, portanto, deve-se permitir o acesso aos arquivos do inquérito policial. Ademais, o Ministro Relator Sepúlveda Pertence sustentou que os direitos constitucionais previstos no art. 5º, LXII, da Constituição Federal, referentes à consulta a um advogado, também se aplicariam ao caso. Ele mencionou que a disposição constitucional teria sido inspirada no caso da Suprema Corte dos Estados Unidos Miranda v. Arizona. O Tribunal decidiu conceder acesso ao relatório do inquérito policial aos advogados do autor.

O caso faz referência aos Princípios Básicos da ONU pelo nome? Em caso afirmativo, quais são os princípios nomeados?

Não, no entanto o caso está relacionado ao Princípio Básico 21.

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Direitos humanos em evidência

Este julgamento, ou os parágrafos relevantes relativos ao exercício da advocacia, é vinculativo em sua jurisdição? Se sim, vincula todos ou apenas as partes envolvidas?

O resultado do julgamento deste HC é vinculante apenas às partes do processo. De todo modo, o HC foi mencionado como jurisprudência no acórdão do HC 88.190/RJ que foi usado como base para uma súmula vinculante (Súmula Vinculante 14) do Supremo Tribunal Federal: “É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa”.

Parágrafos relevantes da sentença

“O aparente conflito de interesses […] é falso, visto que a própria lei resolve, em favor da prerrogativa do advogado de defesa e contra o sigilo determinado por relatório do inquérito policial.” (p. 34)

Legislação

Estatuto de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil, artigo 7, XIV: “XIV - examinar, em qualquer instituição responsável por conduzir investigação, mesmo sem procuração, autos de flagrante e de investigações de qualquer natureza, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos, em meio físico ou digital.” Constituição Federal (1988), artigo 5º, LXIII: "LXIII - o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado.”

Comentários adicionais (se houver)

Jurisprudência semelhante: HC 90.232/AM; HC 87827/RJ; RHC 93.767/DF; Rcl 12.810/ BA).

Liberdade de Expressão do Advogado ao Agir

Nome do caso

Recurso em Habeas Corpus 80.429 | Minas Gerais Partes: William Santos Ferreira; Márcio Gontijo e outros vs Ministério Público Federal

Número do processo

Recurso em HC 80.429/MG

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https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur97131/ false

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Princípios básicos das Organizações das Nações Unidas sobre o papel da advocacia

Data da sentença

31 de outubro de 2000

O autor é um advogado ou está atuando como representante legal?

O autor é um advogado, devidamente representado por advogado que atua como seu representante legal. O caso se refere a um HC apresentado para reverter uma decisão de julgamento que não reconheceu a violação dos direitos dos advogados. No caso, alguns advogados

Breve resumo dos fatos

entraram com uma queixa contra um juiz por suas ações. A denúncia foi indeferida e, posteriormente, o Ministério Público Federal ajuizou ação contra os advogados por calúnia.

Breve resumo das questões relacionadas com o papel da advocacia

O Tribunal decidiu que, de acordo com o artigo 2º, parágrafo 3º, do Estatuto de Advocacia da OAB, uma pessoa não pode ser processada por suas ações, sujeita às limitações da lei, enquanto estiver atuando como advogado.

O caso faz referência aos Princípios Básicos da ONU pelo nome? Em caso afirmativo, quais são os princípios nomeados?

Não, no entanto o caso está relacionado ao Princípio Básico 20 da ONU.

Este julgamento, ou os parágrafos relevantes relativos ao exercício da advocacia, é vinculativo em sua jurisdição? Se sim, vincula todos ou apenas as partes envolvidas?

O resultado do julgamento deste HC é vinculante apenas às partes do processo. No entanto, o caso foi entendido como caso de referência e integrado ao Informativo do Supremo Tribunal Federal.

Parágrafos relevantes da sentença

“Lembramos que o referido Estatuto é categórico ao revelar que não constitui calúnia, difamação ou desprezo por qualquer manifestação do advogado no exercício de sua função, dentro ou fora do tribunal, sem prejuízo das sanções disciplinares perante a Ordem dos Advogados do Brasil pelos excessos que o referido advogado cometer – 2º parágrafo do artigo 7.” (p. 36)

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Direitos humanos em evidência

Legislação

Estatuto de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil, artigo 7, XIX, 2º parágrafo: “O advogado tem imunidade profissional, não constituindo injúria, difamação ou desacato puníveis qualquer manifestação de sua parte, no exercício de sua atividade, em juízo ou fora dele, sem prejuízo das sanções disciplinares perante a Ordem dos Advogados do Brasil, pelos excessos que cometer.”

Comentários adicionais (se houver)

Jurisprudência semelhante: HC 82.992/SP; HC 98.237/SP.

11.1.3 Superior Tribunal de Justiça

Inviolabilidade de Escritório de Advocacia e Confidencialidade Advogado-Cliente

Nome do caso

Recurso Ordinário no Mandado de Segurança 27.419 | São Paulo Partes: Banco do Brasil S.A., Detasa S.A. Indústria e Comércio de Aço; Cleonice Fátima Denusi Santana e Denílson Tadeu Santana vs. Banco do Brasil S.A., Detasa S.A. Indústria e Comércio de Aço; Cleonice Fátima Denusi Santana e Denílson Tadeu Santana

Número do processo

RMS 27.419/SP

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https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeor DoAcordao?num_registro=200801644966&dt_ publicacao=22/06/2009

Data da sentença

14 de abril de 2009

O autor é um advogado ou está atuando como representante legal?

O autor atua como representante legal de um cliente.

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Princípios básicos das Organizações das Nações Unidas sobre o papel da advocacia

Breve resumo dos fatos

O autor, Banco do Brasil, impetrou Mandado de Segurança alegando a ilegalidade da emissão de mandado de busca e apreensão pela Delegacia de Polícia de São Paulo. A busca e apreensão foi efetuada no departamento jurídico do autor, e compreendeu, inclusive, documentos jurídicos. A busca e apreensão foi motivada por investigação de crimes de apropriação indébita e falsificação de documentos privados.

Breve resumo das questões relacionadas com o exercício da advocacia

O STJ reconheceu a ilegalidade dos mandados de busca e apreensão envolvendo o departamento jurídico do autor e anulou a decisão que ordenou a apreensão dos documentos jurídicos. Departamentos jurídicos, escritórios de advocacia e quaisquer locais de trabalho de advogados só podem ser acessados pelas autoridades em situações limitadas em que estejam cumprindo os mandados de busca e apreensão devidamente emitidos. Esses mandados só podem ser emitidos por um juiz se (i) a apreensão envolver documentos que possam constituir corpo de delito, e (ii) os fundamentos da decisão estiverem claramente declarados. Essas disposições visam preservar o sigilo profissional do advogado devido ao seu papel fundamental na administração da justiça e ao princípio da produção adequada da prova. Neste caso, a decisão que concedeu o mandado de busca e apreensão carecia de fundamento e os documentos apreendidos eram desnecessários para constituir corpo de delito.

O caso faz referência aos Princípios Básicos da ONU pelo nome? Em caso afirmativo, quais são os princípios nomeados?

Não, no entanto o caso está relacionado ao Princípio Básico 22 da ONU.

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Direitos humanos em evidência

Este julgamento, ou os parágrafos relevantes relativos ao exercício da advocacia, é vinculativo em sua jurisdição? Se sim, vincula todos ou apenas as partes envolvidas?

Não, a decisão é vinculativa somente para as partes envolvidas.

Parágrafos relevantes da sentença

“Nos termos da Lei 8.906/1994, não há inviolabilidade absoluta dos escritórios de advocacia, já que as autoridades podem cumprir ordens motivadas por mandados de busca e apreensão expedidos por juiz (art. 7º, II, Lei 8.906/1994) em situações específicas em que a referida apreensão diga respeito a objetos susceptíveis de constituir corpo de delito (artigo 243, 2º parágrafo, do Código de Processo Penal), sendo os fundamentos da decisão claramente indicados.” “O sigilo profissional do advogado deve ser preservado em razão do papel fundamental que desempenha para a administração da justiça (artigos 5º, XIV e 133, da Constituição Federal) e da confiança conferida por seus clientes, de modo que juízes e autoridades policiais são geralmente proibidos de emitir mandados de busca e apreensão envolvendo documentos protegidos por tal sigilo, ou seja, todo e qualquer documento que possa comprometer o cliente de um advogado ou sua defesa, seja na esfera civil ou penal, é protegido para que prevaleça o princípio da adequada produção de provas.” (Parágrafos 17 e 18, p. 17)

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Princípios básicos das Organizações das Nações Unidas sobre o papel da advocacia

Legislação

Artigo 243, parágrafo segundo, do Código de Processo Penal; artigos 5º, XIV, e 133, da Constituição Federal. “Art. 243: Um mandado de busca deve: [...] II - mencionar o motivo e o objetivo da busca; [...] Segundo parágrafo: É proibida a apreensão de documentos em poder de advogado, a menos que constitua elemento de corpo de delito.” “Art. 5, XIV: o acesso à informação é assegurado a todos desde que seja resguardada a confidencialidade da fonte sempre que necessário à atividade profissional.” “Art. 133: O advogado é indispensável à administração da justiça para que seja inviolável pelos seus atos ou manifestações no exercício da sua profissão, dentro dos limites da lei.”

Comentários adicionais (se houver)

A exceção à inviolabilidade de um escritório de advocacia (ou outros locais de trabalho de um advogado) pode ocorrer apenas (i) devido a um mandado de busca e apreensão devidamente emitido, e motivado, e (ii) se os objetos a serem apreendidos constituírem elementos de corpo de delito. Esse regulamento garante a preservação do sigilo, da adequada produção de provas e da essencialidade do exercício da advocacia.

Direito à Ampla Defesa

Nome do caso

Habeas Corpus 171,364 | Rio Grande do Sul Partes: Adriana Hervé Chaves Barcellos (Defensora Pública) vs. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

Número do processo

HC 171.364/RS

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https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDo Acordao?num_registro=201000812237&dt_ publicacao=21/06/2013

Data da sentença

4 de dezembro de 2012

O autor é um advogado ou está atuando como representante legal?

O autor é uma Defensora Pública que atua em nome de um cliente.

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Direitos humanos em evidência

Breve resumo dos fatos

O reclamante impetrou HC contra o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, que confirmou o resultado de processo administrativo disciplinar no âmbito de execução penal, reconhecendo que o requerente cometeu infração grave. O STJ anulou decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, confirmando a conclusão do processo administrativo disciplinar por falta de adequada defesa técnica, o que constitui violação ao princípio do contraditório, do direito à ampla defesa e da defesa.

Breve resumo das questões relacionadas com o exercício da advocacia

O STJ anulou decisão do juiz criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, confirmando a conclusão do processo administrativo disciplinar por falta de defesa técnica, o que constitui violação do princípio do contraditório, do direito à ampla defesa e da defesa. Sendo assim, a infração ilegal foi reconhecida pelo STJ.

O caso faz referência aos Princípios Básicos da ONU pelo nome? Em caso afirmativo, quais são os princípios nomeados?

Não, no entanto o caso está relacionado aos Princípios Básicos 1, 6 e 19 da ONU.

Este julgamento, ou os parágrafos relevantes relativos ao exercício da advocacia, é vinculativo em sua jurisdição? Se sim, vincula todos ou apenas as partes envolvidas?

Esta sentença é vinculante apenas para as partes envolvidas.

Parágrafos relevantes da sentença

“Conforme o entendimento da Sexagésima Turma do Superior Tribunal de Justiça, junto com o entendimento do Supremo Tribunal de Justiça, a ausência de defesa técnica – advogado regularmente inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil ou defensor público – em um processo disciplinar administrativo, com o objetivo de verificar a prática de uma infração grave no âmbito da execução penal, constitui um cerceamento de defesa.”

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Princípios básicos das Organizações das Nações Unidas sobre o papel da advocacia

Legislação

Art. 59 da Lei de Execução de Sentença, Lei n. 7.210/1984: “Será instaurado processo disciplinar administrativo em caso de cometimento de alguma infração disciplinar, nos termos da regulamentação aplicável, desde que seja concedido o direito de defesa.”

Comentários adicionais (se houver)

No âmbito da execução penal, será concedida defesa técnica, conduzida por advogado regularmente inscrito na OAB ou por defensor público, em qualquer processo disciplinar administrativo para apurar a prática de infrações graves. Jurisprudência similar: AgRg no REsp n. 1.246.035/RS; e HC No. 517.663/MG.

Detenção Especial

Nome do caso

Recurso Ordinário em Habeas Corpus 10.442 | São Paulo Partes: Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Estado de São Paulo vs. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

Número do processo

RHC 10.422

Link para a fonte

https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?src=1.1.3& aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipo PesquisaGenerica&num_registro=200000919675

Data da sentença

5 de abril de 2001

O autor é um advogado ou está atuando como representante legal?

O requerente é a Ordem dos Advogados do Brasil em nome de um advogado.

Breve resumo dos fatos

O autor ajuizou um HC em nome de um advogado, que foi preso em uma delegacia de São Paulo, acusado de praticar crimes de apropriação indébita de dinheiro público e formação de quadrilha. O autor alegou que o advogado foi mantido em prisão preventiva por tempo excessivo e que a detenção se qualificou como contenção ilegal, uma vez que o advogado foi detido em local que não era considerado “especial” e não lhe conferia dignidade, conforme exigido pelo art. 7º, V, do Estatuto de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil.

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Direitos humanos em evidência

Breve resumo das questões relacionadas com o exercício da advocacia

Como advogado, ele tinha o direito de ser mantido em prisão preventiva especial nos termos do artigo 7º, V, do Estatuto de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil. Nesse contexto, a privação da liberdade do advogado em um centro de detenção regular (ou seja, uma prisão em uma delegacia de polícia) constitui detenção ilegal. De acordo com as disposições do Estatuto de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil, que deverão ser observadas, os advogados têm direito à detenção em instalação especial antes da decisão final dos tribunais em matéria penal e, na falta desta, deverá ser imposto regime de prisão domiciliar. Essa disposição visa proteger os advogados, cuja prática é essencial para a administração da justiça, e impor um tratamento de detenção outro que não a dos detidos regulares.

O caso faz referência aos Princípios Básicos da ONU pelo nome? Em caso afirmativo, quais são os princípios nomeados?

Não, no entanto o caso está relacionado ao Princípio Básico 17 da ONU.

Este julgamento, ou os parágrafos relevantes relativos ao exercício da advocacia, é vinculativo em sua jurisdição? Se sim, vincula todos ou apenas as partes envolvidas?

Essa sentença é vinculativa somente para as partes envolvidas.

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Princípios básicos das Organizações das Nações Unidas sobre o papel da advocacia

Parágrafos relevantes da sentença

“Nesse contexto, é incontestável que a privação de liberdade do advogado em um centro de detenção comum de um presídio de uma delegacia de polícia constitui detenção ilegal que pode ser resolvida com um HC. Para tanto, é imprescindível que seja observado o direito infraconstitucional, visando ao efetivo respeito ao direito do advogado, nos termos do Estatuto de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil, que exige centro especial de detenção. Na falta de instalações adequadas para os detentos, deverá ser concedido um regime de detenção domiciliar.” (parágrafos 16 e 15, p. 4)

Legislação

Estatuto de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil, Lei n. 8.906/1994. “Artigo 7: Os direitos dos advogados são: […] V - Não deve ser submetido à detenção antes de proferida decisão judicial irrecorrível, salvo em regime de detenção militar (“Salas de Estado Maior”), dotadas de instalações adequadas e, na sua falta, em regime de detenção domiciliar.”

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Direitos humanos em evidência

Comentários adicionais (se houver)

A interpretação do artigo 7º, V, do Estatuto de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil foi modificada pelo STJ em algumas decisões: HC 45.393/SP: a advogada foi presa e detida na Penitenciária Feminina do Estado de São Paulo e o Superior Tribunal de Justiça reconheceu o local como impróprio. Assim, o tribunal reconheceu a detenção ilegal. HC 31.580/SP: o reclamante agiu em nome de um advogado que foi preso preventivamente em razão da suposta prática de crimes, mas não foi detido em estabelecimento especial. O Tribunal decidiu que a disposição que exige a instalação de prisão especial foi violada no referido caso, uma vez que o advogado foi mantido em uma prisão que não cumpria o requisito de instalação especial de detenção. HC 270.161/GO: o Superior Tribunal de Justiça decidiu que a falta de centro de detenção não autoriza a aplicação de prisão domiciliar a advogado detido preventivamente se este for detido longe dos presos regulares e em instalações que garantam condições adequadas de higiene e saúde, que incluem banheiro privativo. O mesmo entendimento foi alcançado no HC 361.177/RS. Recurso HC 674/SP: o Superior Tribunal de Justiça não concedeu a prerrogativa de prisão domiciliar a advogado, por ter sido preso por suposta prática de crime de extrema periculosidade. Nesse caso, a prerrogativa de prisão domiciliar foi considerada faculdade do juiz. Não obstante, o Superior Tribunal de Justiça entende que essa prerrogativa só se aplica aos advogados regularmente inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil. HC 74.855/MT: o Superior Tribunal de Justiça reconheceu que a prerrogativa da prisão especial prevista no art. 7º, V, do Estatuto de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil não era aplicável ao policial que havia cancelado seu registro na Ordem dos Advogados do Brasil antes de ser preso. O mesmo foi decidido no HC 76.974/RJ, no qual o Superior Tribunal de Justiça negou a prerrogativa de facilidade especial a advogado detido que era revendedor de automóveis à época da prisão e não regularmente inscrito na Ordem dos Advogados.

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Princípios básicos das Organizações das Nações Unidas sobre o papel da advocacia

Dever de Fidelidade para com os Interesses do Cliente Nome do caso

Recurso em Mandado de Segurança 47.254 | São Paulo Partes: Richard Touceda Fontana vs. Governo Federal

Número do processo

RMS 47.254/SP

Link para a fonte

https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/ mediado/?componente=MON&sequencial=75090538& num_registro=201403452307&data=20170814

Data da sentença

9 de agosto de 2017

O autor é um advogado ou está atuando como representante legal?

O autor é um advogado que atua em seu próprio nome.

Breve resumo dos fatos

Os honorários advocatícios do reclamante não foram pagos pelo cliente, o que motivou a renúncia do advogado ao processo. Contudo, o advogado não comunicou sua renúncia ao juiz e não compareceu à audiência de instrução e julgamento. Nesse contexto, o reclamante foi punido com multa pela desistência da ação. O advogado, então, impetrou Mandado de Segurança contra a decisão que determinou a pena, a qual foi negada, e interpôs recurso dessa decisão para o Superior Tribunal de Justiça, alegando não ter abandonado o caso de seu cliente.

Breve resumo das questões relacionadas com o exercício da advocacia

O STJ decidiu manter a decisão que determinou a pena de desistência da ação, uma vez que o advogado não agiu com lealdade e boa-fé, visto que deveria ter comparecido à audiência de instrução e julgamento, já que o juiz não tinha sido devidamente informado da renúncia antes disso. Além disso, a conduta do reclamante causou prejuízo ao seu cliente, uma vez que o processo foi decidido à revelia.

O caso faz referência aos Princípios Básicos da ONU pelo nome? Em caso afirmativo, quais são os princípios nomeados?

Não, no entanto o caso está relacionado ao Princípio Básico da ONU 15.

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Direitos humanos em evidência

Este julgamento, ou os parágrafos relevantes relativos ao exercício da advocacia, é vinculativo em sua jurisdição? Se sim, vincula todos ou apenas as partes envolvidas?

O caso é vinculante somente para as partes.

Parágrafos relevantes da sentença

“O dever do advogado de não desistir de uma ação, que só é relativo se envolver motivos fortes e for previamente comunicado ao juiz, nos termos do artigo 45 do Código de Processo Civil e 34, XI, do Estatuto de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil, o que não aconteceu no presente caso. Dessa forma, a decisão que aplicou a pena de desistência da ação está devidamente motivada, uma vez que o advogado não só não comunicou previamente a desistência ao juiz, como também não compareceu à audiência no prazo de dez dias, contados a partir da data da dispensa, conforme previsto no artigo 265 do Código de Processo Penal.”

Legislação

Artigo 34, XI, do Estatuto de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil: “Constitui uma infração disciplinar: XI - A desistência de ação sem justa causa ou antes de dez dias da comunicação da renúncia à sua procuração.” Artigo 112 do Código de Processo Civil: “O advogado poderá renunciar ao mandato a qualquer tempo, provando, na forma prevista neste Código, que comunicou a renúncia ao mandante, a fim de que este nomeie sucessor. 1º Parágrafo. Durante os dez dias seguintes, o advogado continuará a representar o mandante, desde que necessário para lhe evitar prejuízo.”

Comentários adicionais (se houver)

A dispensa de procuração não permite ao advogado atuar em prejuízo de seus clientes, especialmente no que se refere à prática de qualquer ação necessária no prazo de 10 dias a contar da comunicação da dispensa ao cliente, já que o dever de lealdade de atuar no melhor interesse do cliente deve ser preservado.

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Comunicação de Detentos com Advogados

Nome do caso

Recurso Especial 1.028.847 | São Paulo Partes: Ordem dos Advogados do Brasil, Estado de São Paulo Capítulo vs. Fazenda do Estado de São Paulo

Número do processo

REsp 1.028.847 – SP

Link para a fonte

https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDo Acordao?num_registro=200800231724&dt_ publicacao=21/08/2009

Data do julgamento

12 de maio de 2009

O autor é um advogado ou está atuando como representante legal?

O autor é a Ordem dos Advogados do Brasil, atuando em nome dos advogados.

Breve resumo dos fatos

O autor impetrou originalmente Mandado de Segurança contra ato da Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo, que editou a Resolução SAP n. 49 que regula o direito de visita e entrevista de advogados com clientes presos em regime disciplinar especial. O autor alega que a exigência de agendamento prévio das visitas, conforme previsto na Resolução SAP n. 49, viola os princípios constitucionais do direito à ampla defesa e assistência jurídica aos reclusos.

Breve resumo das questões relacionadas com o exercício da advocacia

A Resolução SAP n. 49 viola o artigo 7º, III e IV, do Estatuto de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil, pois limita os direitos dos advogados de (i) comunicar-se com seus clientes presos, pessoal e reservadamente, sem a necessidade de procuração, em instalações civis ou militares; e (ii) entrar livremente nas instalações das delegacias ou presídios, mesmo fora do horário comercial, e independentemente da presença do responsável por tais instalações. O STJ entendeu que a exigência de agendamento prévio da visita dos advogados, por meio de solicitação à Direção de um centro de detenção, viola o direito dos advogados de se comunicarem com quaisquer clientes presos.

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Direitos humanos em evidência

O caso faz referência aos Princípios Básicos da ONU pelo nome? Em caso afirmativo, quais são os princípios nomeados?

Não, no entanto o caso está relacionado ao Princípio Básico 8.

Este julgamento, ou os parágrafos relevantes relativos ao exercício da advocacia, é vinculativo em sua jurisdição? Se sim, vincula todos ou apenas as partes envolvidas?

A ação é vinculante para todos no Estado de São Paulo, pois produz efeitos em âmbito estadual (nulidade da Resolução SAP da Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo).

Parágrafos relevantes da sentença

“A obrigatoriedade de agendamento prévio de visita de advogado, por meio de solicitação à Diretoria do Centro de Detenção, viola o direito dos advogados de se comunicarem com clientes presos em detenção civil, de acordo com o artigo 7º do Estatuto de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil, que prevê livre acesso aos advogados para as instalações de detenção, mesmo fora do horário comercial e sem a presença do pessoal das instalações. Ambas as garantias não podem ser violadas pela Resolução SAP n. 49.” (parágrafo 8, p. 6)

Legislação

Estatuto de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil, Artigo 7: “Os direitos dos advogados são: III - Comunicar-se com clientes detidos, de forma pessoal e reservada, sem necessidade de procuração, em instalações civis ou militares, ainda que os clientes sejam considerados não comunicáveis. VI - Entrar livremente […] (b) nas salas e instalações das audiências judiciais, secretarias, cartórios, repartições da justiça, serviços de notarização e registro, e, no caso de delegacias de polícia e prisões, mesmo fora do horário de expediente, e independentemente da presença do pessoal das instalações.”

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Comentários adicionais (se houver)

O direito de um advogado de se comunicar ou entrevistar clientes presos não pode ser limitado pela imposição de requisitos formais, como uma visita previamente agendada. Jurisprudência similar: Recurso em Mandado de Segurança n. 18.045/PR; Resp nº 673.851/MT.

Direito de Comparecer Perante o Tribunal

Nome do caso

Recurso em Mandado de Segurança 18.296 Santa Catarina Partes: Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Estado de Santa Catarina vs. Estado de Santa Catarina

Número do processo

RMS 18.296/SC

Link para a fonte

https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDo Acordao?num_registro=200400750741&dt_ publicacao=04/10/2007

Data da sentença

28 de agosto de 2007

O autor é um advogado ou está atuando como representante legal?

O autor é a Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Estado de Santa Catarina.

Breve resumo dos fatos

O autor impetrou Mandado de Segurança contra a Portaria nº 1/2003, da Vara de Família do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, segundo a qual advogados e clientes somente poderiam comparecer ao Tribunal das 18h00 às 19h00 em dias úteis, exceto em casos de urgência e para advogados de outros Estados ou regiões.

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Breve resumo das questões relacionadas com o exercício da advocacia

O STJ considerou a Portaria ilegal e inconstitucional, uma vez que limitava o exercício da atividade profissional ao fixar apenas uma hora por dia para advogados comparecerem perante o Tribunal. O STJ destacou a importância dos advogados para a administração da justiça, que está prevista no artigo 133 da Constituição Federal, por atuar com autonomia e independência, de forma que não haja hierarquia nem dependência de função em relação aos juízes ou membros do Ministério Público. O direito do advogado de se comunicar diretamente com os juízes em suas câmaras ou gabinetes, independentemente de agendamento prévio ou outra condição, é conferido pelo art. 7º, VIII, do Estatuto de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil.

O caso faz referência aos Princípios Básicos da ONU pelo nome? Em caso afirmativo, quais são os princípios nomeados?

Não, no entanto o caso está relacionado aos Princípios Básicos 12 e 19 da ONU.

Este julgamento, ou os parágrafos relevantes relativos ao exercício da advocacia, é vinculativo em sua jurisdição? Se sim, vincula todos ou apenas as partes envolvidas?

Esta sentença é vinculativa para todos no Estado de Santa Catarina, desde a nulidade da Portaria produz efeitos de abrangência estadual.

Parágrafos relevantes da sentença

“A interpretação da legislação infraconstitucional é clara ao determinar a obrigação do juiz de permitir que o advogado compareça perante ele, a qualquer momento, o que se ampara na prerrogativa legal que confere ao advogado a liberdade necessária para o desempenho de suas funções, que não pode ser contido por imposições burocráticas da administração pública.” (parágrafo 3, p. 7)

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Legislação

Artigo 133 da Constituição Federal Brasileira: “Artigo 133. O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei.” Artigo 7, VIII, do Estatuto de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil: “Artigo 7: Os direitos dos advogados são: VIII - Comunicar-se diretamente com o juiz em seus gabinetes e câmaras, independentemente de agendamento prévio ou outra condição, observada a ordem de chegada.”

Comentários adicionais (se houver)

O direito do advogado de comparecer perante o Tribunal não pode ser limitado por imposições burocráticas da administração pública, devido à essencialidade do advogado na administração da justiça. Jurisprudência similar: Recurso em Mandado de Segurança n. 15.706/PA; Recurso em Mandado de Segurança n. 1.275/RJ; e Recurso em Mandado de Segurança n. 13.262/SC.

Direito de Recusar a Testemunhar como Testemunha

Nome do caso

Habeas Corpus 48.843 | Mato Grosso do Sul Partes: João Batista De Andrade Filho vs. Ministério Público Federal

Número do processo

AgRg no HC 48.843

Link para a fonte

https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/ mediado/?componente=ITA&sequencial=734541&num registro=200501698458&data=20080211&formato=PDF

Data da sentença

31 de outubro de 2007

O autor é um advogado ou está atuando como representante legal?

O autor é um advogado que agia em seu próprio nome.

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Breve resumo dos fatos

Um advogado foi intimado a depor como testemunha em uma ação penal movida contra seu cliente. Ele impetrou HC para não ser obrigado a depor, o que foi concedido pelo Superior Tribunal de Justiça, que reconheceu seu direito assegurado pelo art. 7º, XIX, do Estatuto de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil. O advogado, durante a defesa de um cliente, tomou conhecimento de fatos que acabaram gerando uma ação penal movida contra seu cliente por falsidade ideológica. Uma ação criminal também foi movida contra o advogado, com base no pressuposto de que ele participou do suposto crime, mas o caso foi julgado improcedente e extinto pelo Tribunal de Primeira Instância. Na ação criminal movida contra seu cliente, o advogado foi intimado a depor como testemunha, o que o levou a ajuizar o HC.

Breve resumo das questões relacionadas com o exercício da advocacia

Neste caso, foi reconhecido que o advogado tem o direito de se recusar a depor como testemunha dos fatos relativos ao seu cliente de que poderia ter conhecimento no exercício da profissão. Os advogados não podem ser convocados por juízes para depor, em violação do privilégio advogado-cliente.

O caso faz referência aos Princípios Básicos da ONU pelo nome? Em caso afirmativo, quais são os princípios nomeados?

Não, no entanto o caso está relacionado ao Princípio Básico 18 da ONU.

Este julgamento, ou os parágrafos relevantes relativos ao exercício da advocacia, é vinculativo em sua jurisdição? Se sim, vincula todos ou apenas as partes envolvidas?

O julgamento vincula somente as partes do caso.

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Parágrafos relevantes da sentença

“Não se pode pedir ao Advogado que testemunhe em ação em que patrocinou a causa de uma das partes, sob pena de violação do artigo 7º, inciso XIX, do Estatuto de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil. É prerrogativa do advogado definir quais fatos devem ser protegidos pelo sigilo profissional, os quais eram conhecidos pelo exercício da advocacia. Ao optar por não testemunhar, a decisão do advogado deve ser respeitada.”

Legislação

Estatuto de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil, artigo 7º, inciso XIX. “Art. 7: Os direitos de um advogado são: XIX - recusar-se a depor como testemunha em processo no qual funcionou ou deva funcionar, ou sobre fato relacionado com pessoa de quem seja ou foi advogado, mesmo quando autorizado ou solicitado pelo constituinte, bem como sobre fato que constitua sigilo profissional.”

Comentários adicionais (se houver)

Ainda em relação ao direito de recusa de depor como testemunha, nos processos RHC 109.781/SP e RHC 102.252/SP, o advogado optou por depor perante a autoridade policial sobre fatos relativos ao seu cliente, sendo que o Superior Tribunal de Justiça reconheceu a conduta do advogado como legal e não violadora do sigilo advogado-cliente, pois o advogado tinha “justa causa” para fazê-lo, a fim de “não ocultar a materialidade sobre fato previamente apurado”.

Direito de Acessar os Autos

Nome do caso

Mandado de Segurança 45.649 | São Paulo Partes: Luiz Riccetto Neto vs. Lu Chin Mu, Elizabeth Mei Fel Lu, Catarina Mei Yi Lu e Ricardo Yu Jen Lu

Número do processo

RMS 45.649/SP

Link para a fonte

https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/ mediado/?componente=ITA&sequencial=1396545&num_ registro=201401240905&data=20150416&formato=PDF

Data da sentença

7 de abril de 2015

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Direitos humanos em evidência

O autor é um advogado ou está atuando como representante legal?

O autor era um advogado que agia em seu próprio nome.

Breve resumo dos fatos

Mandado de Segurança impetrado contra decisão proferida por desembargador da 7ª Vara de Família e Sucessões de São Paulo/SP que impediu o acesso do advogado aos autos do processo.

Breve resumo das questões relacionadas com o exercício da advocacia

Na análise do caso, o Tribunal decidiu que os advogados têm o direito de examinar os autos, independentemente de o processo estar arquivado ou em andamento e ainda que o advogado não represente nenhuma das partes litigiosas, desde que não haja segredo de justiça, nos termos do artigo 7º, inciso XIII, do Estatuto de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil.

O caso faz referência aos Princípios Básicos da ONU pelo nome? Em caso afirmativo, quais são os princípios nomeados?

Não, no entanto o caso está relacionado ao Princípio Básico 21.

Este julgamento, ou os parágrafos relevantes relativos ao exercício da advocacia, é vinculativo em sua jurisdição? Se sim, vincula todos ou apenas as partes envolvidas?

Não, o caso é vinculante somente para as partes envolvidas.

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Princípios básicos das Organizações das Nações Unidas sobre o papel da advocacia

Parágrafos relevantes da sentença

“A razão hermenêutica desta garantia reside na complexidade dos direitos a que as partes têm direito – quer como autor ou réu –, cujo corolário é a prerrogativa do advogado de ter acesso aos respectivos autos, o que é uma garantia explicitamente concedida pelo brasileiro Estatuto de Advocacia da OAB (Lei nº 8.906/1994), e reside também no fato de que impor obstáculo a procurador devidamente constituído viola garantia constitucional prevista no artigo 5º, inciso LV da Constituição Federal.” “A impossibilidade de um advogado ter acesso ao processo, ora requerente, sem dúvida prejudica a defesa técnica de seu constituinte, cuja assistência não pode ser prestada de forma adequada pelo profissional caso o amplo acesso aos autos em que litiga não seja concedido. Súmulas do STJ e STF.” “O Estatuto de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil – que faculta o acesso de advogado aos autos dos processos estaduais, judiciais ou administrativos – assegura, como garantia profissional típica, o direito de exame dos autos, sempre em benefício de seu constituinte, e para viabilizá-lo, quanto ao último, o exercício do direito de conhecer as provas, bem como influenciar a decisão do juiz, possibilitando o exercício dos direitos básicos de que também tem direito, o exercício de sua função.”

Legislação

Estatuto de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil, artigo 7, XIII: “Art. 7: Os direitos de um advogado são: XIII - examinar, em qualquer órgão do Poder Judiciário e Legislativo, ou da administração pública em geral, autos de processos concluídos ou em andamento, mesmo sem procuração, quando não estiverem sujeitos a sigilo, podendo copiar documentos e fazer anotações.”

Comentários adicionais (se houver)

No HC 266.089/SP, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu que o direito de acesso aos autos não é absoluto. O acesso pode ser limitado em circunstâncias excepcionais, de modo a limitar-se ao número de réus e a restringir o acesso aos autos apenas no cartório.

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Autores

Amanda Rocha Vieira Tavares Ana Carolina Longhini Spinelli Ana Clara Mendonça do Nascimento Ana Fernanda Ayres Dellosso Ana Luiza Ferré Coutinho Ana Paula Chudzinski Tavassi André Fortes Chaves Anna Carolina Gandolfi Anna Laura Silva Bárbara Correia Florêncio Silva Beatriz Bellintani Beatriz Cristina de Araújo Perez Beatriz de Almeida Borges e Silva Beatriz Ripoll Tosta Bianca dos Santos Waks Bianca Lopes Rodrigues Bruna Caroline Hernández Neves Bruno Simões Biscaia Camila Rozzo Maruyama Carolina Bigulin Paulon Moreno Carolina Tatagiba Sobreira Caroline Sayuri Ogata Graells Clara de Almeida Thomé da Silva Eduardo Cezar Delgado de Andrade Fernanda Basaglia Teodoro Fernando Rafael Saraiva Issa Flavia Regina de Souza Oliveira Francisca Guerreiro Andrade Giovanna Rodrigues Cavalari Gustavo Vieira de Sousa Isabela Campos Vidigal Takahashi de Siqueira Isabelle James Giordano Simões Janaína Vargas 377

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Direitos humanos em evidência

Júlia Piazza Leite Monteiro Juliana Gomes Ramalho Monteiro Keise Cristine da Silva Salvador Larissa Barcellos Carrasqueira Duarte Laura Davis Mattar Laura Guidugli Fillietaz Leonardo de Faria Caminhoto Pedrotti Leonardo Kozlowski Miguez Leticia De Conti Serec Letícia Raquel Leme Letícia Ueda Vella Lucas Sousa Guedes Marcela Melo Perez Pittigliani Marcela Romboli Farina Marco Aurélio Farias Andrade Maria Eduarda Caramez Vieira Maria Luiza Gomes dos Reis Asbahr Tonon Mariana Contreras Barroso Mariana Guimarães Borborema Braga Mariana Hiromi Sonoda Mariana Papelbaum Gouvea Marina Dutra Marina Dutra Marques Marina Guerra Villela Murilo Castineira Brunner Nathalia Beschizza Nathane da Franca Octavio Sampaio de Moura Azevedo Paulo Pereira da Silva Rafael Edelmann de Oliveira Baptista Renata Gaspar Barbosa Correa Renata Rothbarth Scylla de Moraes Barros Fucs Tábata Boccanera Guerra de Oliveira Talitha Aguillar Leite Thales Dominguez Barbosa da Costa Victoria Cristofaro Martins Leite Ye Lin Kim

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