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Angola (PGDR, )
Síntesis Tipo de DDR Grupos a desmovilizar Organismos ejecutores Presupuesto Cronograma Sinopsis Programa Geral de Desmobilização e Reintegração (

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GINGA DE RESILIÊNCIA Capoeira Angola para além da Roda

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Copyright © 2023 by Mestre Roxinho Edielson da Silva Miranda Todos os direitos reservados

Coordenação Editorial e Revisão Cristiane Sobral

Ilustração - capa e miolo Pakapym (Antonio Junior)

Organização Denise da Costa Projeto Gráfico Dorys Marinho e Iris Amâncio Diagramação Carlos José (Marrom)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Bibliotecária Ivanir Pereira Guimarães | CRB 7050 R887g

Mestre Roxinho Ginga de resiliência: Capoeira Angola para além da Roda. Belo Horizonte: Aldeia de Palavras, 2023. 122 p.: 24,8x20.5cm ISBN: 978-65-993027-7-0 

Cultura

1. Arte – Capoeira 2. Ciências Sociais 3. Educação 4. Africana 5. Cultura Afro-brasileira – Capoeira 6. Performance 7. Inclusão I. Título

Proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem a autorização expressa da Editora Aldeia de Palavras.

Rua da Ferrovia, 47 Metropolitana Núcleo Bandeirante – Brasília – DF CEP 71730-050 E-mail: [email protected] Tel e whatsApp: 61991531883

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Dedicatória Eu dedico este livro ao meu neto Gabriel Akim. Eu nasci no período da ditadura no Brasil e, mesmo estando numa Ilha, hoje entendo que sofri os efeitos causados por essa fase no País. Como se não bastasse ter sido gerado para fazer parte de uma estatística colonial, para não dar certo – e, realmente, foi necessário de forma inconsciente ser como a água do rio que, dando muitas voltas, porque ninguém me mostrava o caminho –, assim foi minha jornada até agora. Todos duvidavam que eu fosse me tornar alguma coisa boa... Mas dentro de mim já existia o brilho da luz solar, me mostrando direções... Por isso, me deparei fazendo muitas tentativas na qual havia algo que estava sendo preparado para mim. Hoje, já não digo que foramerros, poislevo todos os momentos como um processo de aprendizado. Ao chegar aqui com este livro finalizado, no mesmo momento em que recebo nos braços o meu primeiro neto, percebo que esses, com certeza, são sinais de que trilhamos juntos essa jornada. Acredito que Gabriel, irá ler este livro no momento em que a sociedade estará em processo de transição. Essa leitura lhe dará formas e caminhos de entender outros tempos e desenhar os caminhos do seu tempo a partir do seu olhar para trás através da escrita do avô. Podemos sentar em baixo do pé da jaqueira, dialogar, pois tenho certeza que terá

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muitas dúvidas. Embora o seu nascimento tenha sido de forma e tempo diferentes do meu, ainda assim, ele também nasceu, infelizmente, dentro de uma estatístisca colonial. Todavia, ele certamente já nasce envolto por uma camada protetora e este livro é a prova disso. Quero que o ecoar destas escritas sejam fomento de resiliência e de transformações, contribuindo com a redução das desigualdades étnicas e sociais no Brasil. Quero mostrar, para minhas irmãs e irmãos, que precisamos ser a voz que ecoa em nossas comunidades, pois, entre nós, temos ferramentas potentes e capazes de transformar nossas comunidades com microrresultados. A partir daí, faremos uma transformação social.

Que sejamos o rio, o leão, a gazela e o falcão!

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Agradecimentos Quero iniciar pedindo Agô e benção às minhas e aos meus mais velhos e mais novos, e sigo agradecendo a Deus por suas providências lá em cima. A Ogum, pela direção e discernimento na estrada... A Xangô, por me manter sempre firme e pronto para os embates contra as injustiças. Quero agradecer a todos os meus familiares, na pessoa da minha mãe Edite P. da Silva, e do meu tio Massu, por ter me apoiado na realização deste trabalho. Na pessoa dos meus filhos e neto, dedico meu sentimento de gratidão ao meu Babalorixá Flaviano dos Santos, por todos os cuidados e conselhos. Expresso, aqui, meus agradecimentos à família Baeta, na pessoa do Mestre Augusto Januário e da Dra. Magnolia. Agradecimento especial à família Brito Ferreira, na pessoa do Mestre Virgílio da Fazenda Grande e da Sra. Eunice Brito Ferreira. Envio, aqui, meu carinho e agradecimento a todos os meus alunos, alunas e seguidores da Escola de Capoeira Angola Mato Rasteiro. Agradeço, também, aos meus amigos e amigas mestres, contramestres da nossa Capoeira, pelo mundo afora... Um agradecimento muito especial para a STARTTS, organização pela qual tenho enorme respeito e apreço, por acreditar no projeto e mantê- lo por todos esses anos. E na pessoa da Jasmina Bajraktarevic, Lina Ishue e Jorge Arouche, eu agradeço a todos os colegas de trabalho.

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Agradeço à Juliana Correia, do Baobazinho, pelos encaminhamentos na jornada deste livro. Suas orientações, com certeza, alimentaram a contextualização temática desta obra. Um agradecimento muito especial à Profa. Dra. Denise da Costa, minha companheira e orientadora no último desenrolar dos caminhos desta escrita. Para finalizar, quero agradecer a todas as alunas e alunos do Projeto Bantu e aos integrantes do Instituto Cultural Bantu. Assim envolto em gratidão, estendo minhas palavras ao Treineil Jaime Benedicto: grato pela tradução e parceria nos trabalhos.

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Sumário Dedicatória........................................................ 5 Agradecimentos................................................. 7 Introdução...................................................... 12 I – Mestre Pastinha e o CECA............................. 28 II – Centro Esportivo de Capoeira Angola............. 38 III – Percursos................................................. 48 IV – O Projeto Bantu......................................... 76 O início da Trilha da Kalunga ............................. 80 Na cidade de Caculé.......................................... 81 Capoeira à luz de lamparina, em Tapera /Caculé – BA.................................................... 83 Lins – SP......................................................... 91 A chegada à Austrália......................................112 A Pandemia de Covid-19...................................142 A Música........................................................149 Instrumentos, caminhos e transição...................150 Referências.....................................................153

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Introdução

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Da minha infância até me tornar jovem e adulto, já tinha exercido tantas profissões que era difícil pensar no que eu queria ser ou fazer quando crescesse. Naquela época, ainda se pregava a ideia de que o filho homem tinha que ter a mesma profissão que o pai e ser provedor de uma casa. Uma ideia machista incutida em nossa cultura pelo processo de colonização. No entanto, quando me tornei um serralheiro profissional e tive a oportunidade de ter minha própria serralheria, ao invés de contratar profissionais para acelerar a produção, eu convidei jovens para aprender o ofício de serralheiro e isso, naturalmente, não deu lucro para minha pequena empresa. Mas, dentro de mim, era uma questão de anseio particular e glória pessoal formar jovens serralheiros. Acho que era uma forma de retribuir à comunidade, em especial aos jovens pretos, para evitar que eles vivenciassem o que eu vivi. Foram muitas críticas e dificuldades nomeio do caminho, como também muitas as fases de questionamento pessoal, principalmente quando as dívidas foram aumentando, o serviço atrasando etc... Naquele momento, eu me perguntava: “Será que estou fazendo certo?” E a resposta nunca chegava para mim... Então, eu segui fazendo. Eu entendia que meu compromisso era nutrir aqueles jovens de informação sobre esse ofício, entendendo que estaria fortalecendo-os contra um sistema racista, o qual só nos enxerga como vagabundos. Lembro que, quando tentei entrar no Shopping Barra logo após a sua inaguração, fui barrado na entrada, justamente no shopping no qual eu trabalhei como soldador elétrico e serralheiro durante a sua construção. Senti o racismo na pele, mais uma vez, sendo impedido de entrar em um shopping o qual ajudei a construir. Esse episódio causou em mim um desgosto 14

pela profissão. Então, deixei para trás todo o conhecimento concedido a mim por Ogum, através das mãos de um grande serralheiro e Mestre de Capoeira, o Mestre Virgílio da Fazenda Grande. Acreditei, naquele momento, eu deveria seguir outro caminho de forma mais política e social, utilizando a Capoeira Angola como ferramenta de empoderamento e emancipação social de jovens, para o combate ao racismo e à desigualdade social. Existe uma frase da bell hooks que me inspirou no momento em que eu estava vivendo: “Enquanto não consegui fazer minha voz ser ouvida, não consegui pertencer verdadeiramente ao movimento. Antes de exigir que os outros me ouvissem, precisei ouvir a minha mesma, para descobrir minha identidade.” O que hooks diz corrobora exatamente com o que eu pensava naquele momento. Eu realmente me sentia dessa forma, como se estivesse gritando e ninguém me ouvisse... Mesmo sendo criticado de diversas formas, eu busquei fazer aquilo que me arremetia a uma luta contra a desigualdade social imposta pelo racismo no Brasil, em todas suas facetas. Na medida em que eu me deparava com os desafios constantes vindos de forma preconceituosa, eu me debruçava na leitura e sempre acompanhava o trabalho do Abdias Nascimento. Ele, mesmo sem saber, era quem me dava orientação e força para seguir ensinando crianças e adolescentes. Falo assim do trabalho social com a Capoeira Angola, o qual vocês vão conhecer melhor no decorrer da leitura desta obra.

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Naquela época na Bahia, mais precisamente em Salvador, não se falava em viver dando aula de Capoeira, menos ainda em projeto social. Assim, percebi que era chegada a hora de cruzar fronteiras em busca de reconhecimento profissional e financeiro. A reflexão crítica que eu tenho sobre minhas decisões e que, naquele momento eu não medi as consequências de quem eu era e de que estava deixando muitas coisas para trás. Não sabia qual seria o resultado das minhas decisões, mas, se intuição tem poderes, naquele momento a minha intuição era o que mais valia. Hoje, quando olho para trás, reconheço o poder da intuição. Existe um provérbio africano que dialoga com aquele momento que eu estava vivendo: “Até que os leões inventem as suas próprias histórias, os caçadores serão sempre os heróis das narrativas de caça.” Esse provérbio corrobora exatamente o meu processo de emancipação nessa fase embora eu não tenha tido conhecimento sobre ele naquela época.

Ser capaz de recomeçar sempre, de fazer, de rescontruir, de não se entregar, de recusar burrocratizar-se mentalmente, de entender e de viver a vida como processo, como vir a ser... Paulo Freire

Assim como Paulo Freire, me permiti ver que a trilha que percorri foi exatamente um processo de desburrocratização da minha mente, o qual me permitiu dialogar com diversas linguagens e conhecimentos que, de forma direta ou indireta,

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estavam conectados com os saberes que carrego comigo a partir da minha ancestralidade. Essa jornada, em diálogo com os saberes e conhecimentos, vai se ampliando nos dias de hoje, quando me deparo com o livro Kindezi, do Dr. Fu KiAu, que nos presenteia com reflexões sobre a Arte Kongo de cuidar de crianças. Fu Ki-Au, nos diz que Muntu (o ser humano) é o sol vivo, percebido como um “poder”, “um fenômeno da veneração perpétua, da concepção à morte” e além. Kindezi trata do processo de como esse “sol vivo” é educado, uma vez que ele/ela é trazido ao mundo físico. Ora, vejam vocês que, durante minhas atividades, eu sempre trago como metáfora, essa relação com a natureza e, sobretudo, o que a natureza produz. Na maioria das vezes, eu uso a manga como ponto de reflexão sobre a nossa existência no sentido de pertença mesmo e como devemos nos alinhar com o sol e a lua, já que o amadurecimento da manga está inteiramente ligado à estação do ano. Assim como o sol vivo, conforme chamado pelo Dr. Fu Ki-Au, também reflete em nossos comportamentos e formas de lidar uns com os outros, o filósofo também nos alerta para o fato de que, na cultura europeia, cuidar de crianças é como uma atividade insignificante – um trabalho para as pessoas menos importantes da comunidade. Percebe-se isso em situações ainda muito comuns nos tempos de agora, em que, na maioria das vezes, os pais nem conhecem direito a atividade que sua criança, participa principalmente nas escolas particulares, pois o maior interesse é que a criança fique mais tempo na escola, permitindo a eles dar conta do modelo capitalista de viver, apenas trabalhando. A maneira como venho desenvolvendo

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Capoeira Angola como ferramenta de empoderamento e emancipação social de jovens, para o combate ao racismo

essas referências e saberes negros, em busca de uma transformação não só nas crianças e adolescentes, mas também nos pais e familiares, corrobora o provérbio africano que assim diz: “É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança.” E quando a veracidade desse provérbio africano ficou evidente para mim, nasceu a vontade incontida de compartilhar o meu trabalho com maior alcance numa comunidade e familiares. Nasceu a incrível iniciativa de construir um espaço, como rede de apoio, a uma comunidade inteira. Assim nasceu o Instituto Cultutal Bantu, que se revelou como uma teia fortalecida na medida em que crianças e adultos têm acesso a informações que dialogam com a sua própria história de vida.

e à desigualdade social.

Procuro saber se a Capoeira é Ciência, si é, profunda e vasta, si me fornece conhecimentos sobre o homem, espiri-tual, mas também o homem corporal, e os ensinamentos de ordem moral, ou intelectual... (Mestre Pastinha)

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A Capoeira, parte determinante da construção histórica da identidade étnico-racial deste país, possui meios próprios, alternativos e eficazes de transmissão de saberes, possibilitando a ampliação do repertório relacional, cognitivo, sensório-motor, cultural e científico, sendo todos esses importantes para a criação de signos, compreensão da realidade e aumento da capacidade de reflexão, aprendizado e criatividade de seus praticantes. Mesmo assim, o ensino da Capoeira não corresponde, necessariamente, aos parâmetros da Educação formal, ainda que seja uma potente ferramenta para a construção socioeducativa no resgate da autoestima para o empoderamento de jovens em vulnerabilidade no Brasil e no Exterior. Possibilita ao indivíduo refletir positivamente em diferentes campos como o cognitivo, o afetivo, o social, o físico e nas relações interpessoais. A Capoeira traz consigo símbolos, significados e valores pautados na oralidade, na circularidade e na ancestralidade africana e dos povos originários do Brasil, sobretudo no conhecimento guardado pelos mais velhos. A Capoeira surgiu do negro cativo, buscando a sua identificação cultural frente ao sistema de escravidão, em um ambiente adverso à sua aceitação junto à sociedade dominante no Brasil do século XVI, com a chegada dos negros que foram sequestrados e/ou vendidos na África e aqui escravizados. Na ânsia por liberdade, eles criaram a Capoeira, superando as más condições de vida e o trabalho forçado. Ainda, compensaram a má alimentação através da luta disfarçada como dança; através das rodas de folguedos e rituais feitos ao som dos tambores e cantos, ressignificavam suas dores e maus tratos. A Capoeira – como forma de liberdade que supria o cansaço e o banzo

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causados pela má alimentação e pela violência do racismo extremo contra os africanos escravizados – era afirmação de resistência, destreza e agilidade com o corpo. No século XIX, nas ruas das cidades de Salvador e do Rio de Janeiro, descendentes de africanos seguiram praticando a Capoeira como afirmação cultural e identitária frente a uma sociedade extremamente racista. A Capoeira sofreu intensa repressão pelas autoridades policiais da época, que achavam que essa manifestação era prática de vadios e malandros. Assim, em 1839, a Capoeira foi proibida pelo Marechal Deodoro da Fonseca. Por volta de 1890, com o advento da República, teve início uma ferrenha campanha contra a prática da Capoeira, levando muitos jovens a serem considerados marginais, já que a Capoeira era tida como crime. Como forma de resistência a tantas proibições, foram criados códigos e estratégias de comunicação entre os capoeiras, por exemplo, através do toque de cavalaria (a polícia anda a cavalo), para fortalecer a comunicação entre eles, tendo se tornado um movimento sociopolítico através da sua própria prática cotidiana. Então, os negros escravizados passaram a utilizar os ritmos e cantos como forma de protesto e os movimentos corporais como luta. Nos anos 1970, a Capoeira ganhou o mundo com seus espetáculos, promovendo a cultura afro-brasileira com apresentações virtuosas como parte do folclore brasileiro. A partir daí, e no início dos anos 1980, diversos mestres passaram a migrar para o Exterior com o intuito de buscar melhores condições de vida e constituir seus grupos e escolas de Capoeira. A Capoeira, então, se espalhou pelo mundo e conquistou mais de 170 países. Já no século XXI, a Capoeira vem ganhando o

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mundo de forma diferente: pela ressocialização de crianças e adolescentes em situações de risco. Hoje, existem inúmeros trabalhos de Capoeira para jovens refugiados e em extrema vulnerabilidade em países como Líbano, Congo, Afeganistão, Somália, Haiti, Palestina, Síria, Jordânia, Austrália, Filipinas, entre outros. Dentro da minha incansável busca – não por respostas concretas, pois não acredito que tudo que gira em volta da Capoeira tenha respostas, mas sim para melhor entender seus significados, e suas diferentes formas de ser apresentada – encontrei esse texto do Mestre Decânio: A Capoeira Angola é, sobretudo, uma forma de viver, uma filosofia baseada na liberdade individual, na felicidade, no respeito, na cooperação, no companheirismo e no espírito comunitário, integrando, assim, indivíduos na sociedade. Encantou-me essa maneira como ele define a Capoeira Angola, entendimento muito similar à forma como me relaciono com a mesma e, mesmo imaginando que o leitor já a conheça, considerei importante aqui compartilhar com vocês. No entanto, é oportuno pontuar que, além de luta, a Capoeira também se mostra como uma arte veiculada como dança. Mediante a musicalidade e a circularidade, e também por conta desse forte componente musical, a Capoeira se mostra diferente de toda e qualquer arte marcial, capaz

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de envolver povos do mundo inteiro. Especialmente nas duas últimas décadas, ela vem contribuindo para o resgate da autoestima de jovens refugiados e de população em vulnerabilidade social. Ao contemplar pessoas com necessidades especiais, evidencia a sua potência como manifestação plural e contribui para a humanização de diversos espaços sociais e urbanos a partir das suas práticas e narrativas subjacentes. A Capoeira, desde a década de 1930, passa por relevantes e inevitáveis modificações, intensificando-se na década de 1970, quando surgem mais grupos e escolas de Capoeira. No entanto, sendo originária das populações afrobrasileiras e intimamente relacionada à sobrevivência e à afirmação identitária e de autoestima das mesmas, a Capoeira também se mostra uma arte/luta capaz de transformar povos do mundo inteiro. Como forma de reconhecimento, considero pertinente destacar que a Roda de Capoeira foi inscrita no Livro de Registro das Formas de Expressão do Brasil em 2008, passando a ser um elemento estruturante como manifestação cultural, espaço e tempo,

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A Capoeira traz consigo símbolos, significados e valores pautados na oralidade, na circularidade e na ancestralidade africana e dos povos originários do Brasil, sobretudo nos saberes e conhecimentos guardados pelos mais velhos.

onde se expressam, simultaneamente, o canto, o toque dos instrumentos e a expressão corporal. A linguagem corpórea e a ludicidade (jogo e brincadeira) são elementos importantes que compõem os símbolos e afirmam os rituais de herança africana, originariamente Bantu. Para nós, capoeiristas, a Roda representa a microcomunidade, onde praticamos a ação comunitária de troca a partir da circularidade. A figura da Mestra ou Mestre de Capoeira, simbolicamente, representa o ponto de direção, começo e recomeço, na transmissão oral dos conhecimentos que se reveza entre os mais velhos e os mais novos, corroborando a ancestralidade e os saberes de raízes e matrizes africanas no Brasil. Os reconhecimentos não param por aí. Em 2014, a Roda de Capoeira foi reconhecida como Patrimônio Imaterial da Humanidade pela UNESCO, o que nos coloca em condição nobre ao longo de toda a história da Capoeira. Após esses reconhecimentos tanto em nível nacional quanto internacional, a Capoeira avança no sentido da sustentabilidade do ofício de Mestre ou Mestra, assim como em relação ao acesso a verbas públicas no intuito de fomentar a prática da Capoeira, especialmente entre pessoas de baixa renda. Até onde conheço, de fato, surgiram várias linhas de fomento e projetos, como o plano de salvaguarda da Capoeira, e do ofício de mestres. Entretanto, a meu ver, ainda precisamos avançar mais nessas ações que, há décadas, esbarram na burocracia e em leis criadas para controlar os caminhos da Capoeira. Penso que já é chegada a hora de termos um projeto de nível federal que coloque a Capoeira como atividade extracurricular em todas as escolas do Brasil,

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assim como já acontece em países como Australia, ou projetos como o “Gingando pela Paz”, que começou no Haiti e, hoje, é desenvovido também na República Democrática do Congo, através do Mestre Flavio Saudade. Sem esquecer de citar as Filipinas, que já tem um projeto de Capoeira, atendendo jovens que vivem sob a jurisdição do Estado, por terem sido vítimas de tráfico de pessoas. Depois de recuperados, são encaminhados para casas de acolhimento mantidas pelo Governo local. Modelos de projetos como esses deveriam ser implantados no Brasil. Além do forte impacto social, abririam um mercado de trabalho promissor para mestres e mestras e, ao mesmo tempo, contribuiriam com a redução da desigualdade social. Como citei acima no caso dos refugiados, a Capoeira cresce, cada vez mais, como elemento para o fortalecimento da cidadania dos povos em vulnerabilidade, contemplando, de forma agregadora, as pessoas

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com deficiências físicas e mentais. Isso afirma a evidente importância dessa plural manifestação como ferramenta para o fortalecimento da auto-estima individual e coletiva. Assim, a Capoeira tem contribuído, e pretende continuar contribuindo, para a humanização dos espaços sociais/urbanos. A vitória da cultura afro-brasileira, se assim posso dizer, revela-se na prática da Capoeira que passa a ser vista como algo pertencente ao arcabouço étnico do Brasil na condição de patrimônio cultural, após tantas e tantas lutas e resistência. Todavia, não basta apenas reconhecer a Roda de Capoeira como patrimônio: é necessário cuidar da manutenção e conservação desse patrimônio, sobretudo possibilitando a transmissão dos conhecimentos entre mestres e alunos para a permanência e manutenção dessa prática cultural e educativa, como cito anteriormente, com base na concepção da circularidade, um dos valores civilizatórios Afro-Brasileiro. O provérbio africano que diz “E enquanto você reza, vá fazendo” é perfeito para dialogarmos sobre esse tema, já que a história da Capoeira, sempre foi de luta e de desafios para sua sobrevivência de acordo com seu tempo. Reconhecer a Roda como patrimônio imaterial da humanidade só foi possível porque, aos mestres pioneiros, era necessário utilizar a prática da Capoeira como luta física corporal para sobreviver. A eles, devemos gratidão, saúde e obediência por terem garantido a sobrevivência dessa arte... Em tempo atuais, quando poucos desafios pareciam restar às novas gerações, somos surpreendidos pelo mais complexo, senão o maior, desafio da nossa história: a pandemia da COVID-19, jogo no qual nenhum de nós foi treinado para saber

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como se defender. Aqui estamos, a cada dia, tentando entender melhor esse jogo de dentro e esse mesmo jogo de fora. Por isso, chamo esse tema, obviamente de suma relevância para o tempo de agora. É mais que necessário que os governantes, professores, pedagogos e coordenadores pedagógicos se juntem para melhor avaliar e discutir a relevância e pertinência da Capoeira como atividade extracurricular, na perspectiva de uma atividade “terapêutica”, dando suporte aos educandos, para melhor desempenhar seu potencial congnitivo nas salas de aulas. Sabemos o quanto o lado emocional das crianças e jovens foi afetado, assim como o dos adultos. Na construção de um melhor resultado pedagógico em termos de formação humana para a boa convivência comunitária neste século XXI, a Capoeira poderá desenvolver as bases da circularidade, de forma harmônica e lúdica, fundamentais para a construção educativa dos resultados no futuro, voltados para o bem viver.

Mestre Pastinha, mestre da Capoeira de Angola e da cordialidade baiana, ser de alta civilização, homem do povo com toda a sua picardia. É o primeiro em sua arte, senhor da agilidade e da coragem, da lealdade e da convivência fraternal. Jorge Amado

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I – Mestre Pastinha e o CECA

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Mestre Pastinha, ancião e educador. Como nós o próprio Mestre Pastinha, aos 12 anos, em 1902 eu fui para Escola de Aprendiz de Marinheiro. Lá ensinei Capoeira para os colegas. Todos me chamavam de 110. Sai da Marinha com 20 anos, [...] Naquele tempo, de 1910 a 1920, o jogo era livre. Passei a tomar conta de casa de jogo. Para manter a ordem[...] Bem, mas só trabalhava quando minha arte negava o sustento. Além do jogo trabalhei de engraxate, vendia gazeta, fiz garimpo, ajudei a construir o Porto de Salvador. Tudo passageiro, sempre quis viver de minha arte. Minha arte é ser pintor, artista. FREIRE, 1967, p.7. Após sua saída da Marinha, Mestre Pastinha fundou uma escola no Campo da Pólvora. Em seus manuscritos, assim conta: “Eu aprendi na Rua do Laranjeiro, e lecionei na Rua Sta. Izabel, em 1910 a 1912, quando eu abandonei a Capoeira, e voltei, em 1941 paraorganizar o Centro de Capoeira, o 1º na Bahia.“ PASTINHA, [19-], p. 24.

A gente sempre é fruto dos quevieram antes. Makota Valdina

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Mestre Noronha relata a tentativa do primeiro Centro de Capoeira Angola do Estado da Bahia na Ladeira de Pedra, bairro Liberdade, fundado por grandes mestres (COUTINHO, 1993, p. 17): Daniel Coutinho, Noronha, Livino, Maré, Amouzinho, Raimundo ABR, Percilio, Geraldo Chapeleiro, Juvenal Engraxate Geraldo Pé de Abelha, Zehi, Feliciano Bigode de Ceida, Bonome, Herinque, Cara Queimada, Anca Preta, Cimento, Algimiro Grande, Olho de Pombo Estivador, António Galindeu, António Boca de Porco Estivador, Lucio Pequeno, Dr. Angelo Augusto Decânio Filho (Mestre Decânio) Paqueite do Cabula. Magalhães Filho, no seu livro Jogo de Discurso (1967), relata que, segundo Abreu, que organizou e publicou os manuscritos de Mestre Noronha, antes da tentativa de organização do Centro no Gengibirra (Centro de Capoeira de Origem Angola), que posteriormente passou às mãos de Mestre Pastinha, houve a tentativa de organização do Conjunto de Capoeira de Angola Conceição da Praia, liderado pelo Mestre Noronha. Mestre Bola Sete atribuiu a data de 1922 à tentativa de fundação do Centro Conceição da Praia. Mestre Pastinha assim nos conta em uma das suas entrevistas:

Foi em 1941 que minha vida mudou. Foi na Ladeira da Pedra, fim da Liberdade, no bairro Gegibirra. Um ex-aluno meu, de nome Aberrê, bom capoeirista, já morto, me convidou para apreciar uma de Capoeira. Na Roda só tinha mestre. O mais mestre dos mestres era Amorzinho, um guarda civil. No apertar da mão me

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ofereceu tomar conta de uma Academia. Eu dei uma negativa, mas os mestres todos insistiram.Confirmavam que eu era o melhor para dirigir a Academia e conservar pelo tempo a Capoeira de Angola. Fundei então o Centro Esportivo de Capoeira Angola, em 1941 e registrei a Academia em 1952. Botei carteira para capoeiristas. Meus meninos são diplomados, afirma Mestre Pastinha. No entanto, é importante ressaltar que em 1937, o então Presidente Getúlio Vargas revogou a Lei Sampaio Ferraz, liberando a Capoeiragem. Assim dizia o Decreto número 847, de 11 de outubro de 1890:

Capítulo XIII

Dos vadios e Capoeiras Art. 402. Fazer nas ruas e praças públicas exercício de agilidade e destreza corporal conhecida pela denominação Capoeiragem: andar em carreiras, com armas ou instrumentos capazes de produzir lesão corporal, provocando tumulto ou desordens, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incutindo temor de algum mal; Pena -- de prisão celular por dois a seis meses. A penalidade é a do art. 96. Parágrafo único. É considerada circunstância agravante pertencer o Capoeira a alguma banda ou malta. Aos chefes ou cabeças, se imporá a pena em dôbro.

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Mesmo diante do preconceito, Mestre Pastinha mantinha suas raízes africanas e também compreendia o papel social da Capoeira Angola.

Bem sabemos que as ações do Presidente, de revogar a lei e liberar a Capoeiragem, estavam longe de serem medidas de reconhecimento legítimo da manifestação da cultura afrobrasileira. Na verdade, essa ação também fazia parte de uma política de formação do Estado nacional brasileiro, embasada nos escritos de intelectuais da época, sobretudo Gilberto Freyre1, que pressupunham ser a mestiçagem o melhor caminho para que se produzisse o efeito de uma democracia racial. Após a liberação por Getúlio Vargas, Mestre Bimba registra

1 A origem mais forte e sociologicamente descrita do mito da democra- cia racial aqui no Brasil advém dos escritos do sociólogo brasileiro Gil- berto Freyre. Freyre foi um estudioso da sociologia e da antropologia no Brasil, no século XX. Apesar de situar-se no período pré-científico da sociologia brasileira (quando os sociólogos eram intelectuais e eruditos com formações em outras áreas, como o direito e a filosofia, mas dedi- cavam-se a estudar Sociologia), o pensador pernambucano graduou-se e doutorou-se em ciências sociais nos Estados Unidos, desenvolvendo uma tese sobre a organização social do Brasil colonial. Em Casa grande e senzala, a obra mais difundida desse autor, ele vai na contramão das teorias do chamado racismo científico do início do sé- culo XX, que defendiam a pureza racial e o “branqueamento” do povo brasileiro como ponto de partida para chegar-se a um estágio de maior evolução social. Para o sociólogo brasileiro, era a miscigenação que ge- rava um povo mais forte e capaz de maior desenvolvimento

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sua “Escola” naquele mesmo ano, tornando-se o primeiro a oficializar o ensino da Capoeira no Brasil. Contudo, utilizou o nome “Luta Regional Baiana”, não “Capoeira”, seguindo uma série de restrições do Estado brasileiro, fenômeno idêntico ao que aconteceu com o Samba na época. Embora as comparações e debates sejam importantes, coloco-os à parte, pois o que importa aqui, a meu ver, é afirmar a vitória da cultura da Capoeira, tão importante como representação da Cultura Afro-brasileira no mundo. Uma dessas vitórias da Capoeira foi a fundação do Centro Esportivo de Capoeira Angola (CECA), no qual Mestre Pastinha, desenvolveu uma linguagem própria. Mesmo diante do preconceito, Mestre Pastinha mantinha suas raízes africanas e, também, compreendia o papel social da Capoeira Angola. Influenciado por sua experiência na Marinha do Brasil, introduziu, na Capoeira, alguns elementos peculiares à carreira militar. Com isso, Mestre Pastinha criou um sistema de carteirinha e cargos hierárquicos que definiam a função do capoeirista que operava na sua academia. A seguir, descrevo os cargos criados pelo Mestre: - Mestre de Campo: aluno responsável pelo funcionamento da Roda e do seu ritual. Na época do antigo regime militar europeu, o Mestre de Campo constituía um posto de oficial superior nos exércitos da Espanha, da França e de Portugal. - Mestre de Bateria: pessoa responsável pelo cuidado, manutenção e preparo dos instrumentos para as rodas, treinos e apresen-tações. Era um cargo de suma importância

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para a prática da Capoeira Angola, principalmente para a conservação da sua identidade musical. Existiram exímios tocadores, a exemplo de Francisco de Assis, Mestre Bigodinho (para os angoleiros) ou Mestre Gigante (como era conhecido entre os capoeiristas da Capoeira Regional), falecido em 2016, aos 95 anos, tendo deixado um rico legado. No Candomblé, o Ogan de Couro ou Alabê é a pessoa responsável pela manutenção e zelo dos atabaques. Ele também é o tocador e é quem possui o fundamento dos ritmos que invocam os orixás. O cargo de Mestre de Bateria pode contribuir para uma melhor compreensão, respeito e cuidado com os instrumentos, assim como acontece nos terreiros de Candomblé. - Mestre de Canto: na Capoeira, o Mestre de Canto era a pessoa que comandava a Roda através do canto. Aliás, o canto é um elemento fundamental para a corporeidade. É através do canto que se determinam situações e caminhos a serem tomados dentro do jogo. No

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passado, existia a função de cantador e ela era preeminente. Nem todo jogador, mesmo sendo um mestre, tinha a capacidade de cantar, tocar e jogar. Logo, era muito comum ter a figura do cantador para determinar, fundamentalmente, os cantos para a condução da Roda. Esses cantadores eram, em sua maioria, frequentadores de terreiros de Candomblé e, por sua vez, traziam os cânticos de Samba de Caboclo. Dessa forma, muitos cantos da religião de matriz africana foram inseridos na Capoeira. - Mestre Fiscal: esse mestre tinha a função de observar o andamento do Centro para manter a organização e a tranquilidade dos visitantes. Para além disso, considero relevante lembrar a oralidade presente também nos conhecimentos sobre a ornamentação do espaço físico. Por isso, era muito comum se encontrar uma espada de São Jorge, um pé de arruda, um pé de pimenta, um mastro de cebola ou alho-macho, compondo a ambientação do lugar, assim como os cuidados com horários e direção do varrimento do local. Tais conhecimentos já não são mais encontrados na maioria dos espaços de Capoeira. No entanto, acredito que trata-se de algo que devemos levar em conta pelo fato de a Capoeira ser também um ritual ligado à ancestralidade de matriz africana e dos povos originários do Brasil. Sem falar que diversos mestres desenvolveram seus trabalhos em roças de Candomblé. Mais uma vez, percebe-se a importância e a contribuição da religiosidade de matriz africana no desenvolvimento e prática da Capoeira. - Mestre Arquivista: esse mestre ficava res- ponsável pelos documentos, como fichas de inscrição e carteirinhas. O arquivista era um cargo muito comum nas repartições

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governamentais. Acredita-se que aí está mais uma referência à Marinha. Hoje, esse cargo também caiu em desuso na Capoeira, embora o encontremos no tempo das produções literárias, musicais, digitais e acadêmicas. Penso que, assim como o Mestre Pastinha criou, de forma brilhante, essa função dentro do CECA, preocupado com a preservação de documentos e materiais produzidos por ele mesmo, precisamos resgatar o cargo de Mestre Arquivista na Capoeira. A memória é uma forma de resguardarmos a nossa cultura. Por meio dos registros internos, evitamos o apagamento da nossa história conforme acontece ao longo dos séculos. Isso me faz lembrar um provérbio Haússá que diz assim:

“Enquanto os leões não contarem as suas histórias, os contos de caça seguirão glorificando os caçadores”. Mestre Pastinha via a necessidade de valorização e do reconhecimento da dignidade desses homens negros marginalizados pelos olhos de uma sociedade racista. Ao mesmo tempo, é importante ressaltar que Mestre Pastinha era, acima de tudo, um visionário. Talvez, isso tenha se dado pelo fato de ter tido a oportunidade de estudar na escola para se tornar marinheiro, de ter aprendendo a ler e a escrever. Assim o próprio Mestre Pastinha afirmava, em momento de profunda sensibilidade: “Sou um artista e o que quero mesmo é viver da minha arte”. Ele não se referia à Capoeira Angola e, sim, à pintura de quadros que também era sua especialidade...

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II – Centro Esportivo de Capoeira Angola – CECA 38

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O Centro Esportivo de Capoeira Angola – CECA foi fundado por Mestre Pastinha em 23 de fevereiro de 1941. Conforme já mencionado, era estruturado a partir de uma hierarquia de inspiração militar do contexto da Marinha. Atualmente, esses cargos caíram em desuso. Além disso, nos tempos de hoje, exige-se que o capoeirista seja “completo”. Mas... o que seria isso? No dito popular é aquele capoeirista que canta, toca e joga. Em certa medida, concordo com tal exigência, porém vivemos em uma sociedade que valoriza a velocidade, o instantâneo, e isso, a meu ver, compromete a ritualidade. A pressa provoca um distanciamento daquele fundamento citado acima, ou seja, ao se preocupar em aprender tudo de uma só vez, abre-se margem para que um desses elementos não se complete em sua totalidade. Na prática, determinados capoeiristas, devido ao seu cotidiano, deixam de aprender os conhecimentos dotados na própria musicalidade, por ela exigir uma vivência dentro de outras práticas afro-brasileiras, em especial na religiosidade de matriz africana, que é a premissa da musicalidade na Capoeira. Logo, o canto perde o poder da ritualidade e a dialética entre corpo e mente, já que os atuais “cantadores” preferem cantar o que é considerado bonito do que cantar algo que fundamente o sentido do jogo. Isso coloca a música no status de um conhecimento de segundo plano, o que causa a perda qualitativa na comunicação e o apagamento da história da luta do povo negro no Brasil. Desse modo, pensar a Capoeira de outrora nos faz deparar com o que chamamos de cooperativismo, no qual indivíduos

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contribuíam de forma determinante com todos os elementos da prática da Capoeira e, por sua vez, revelavam a historicidade por meio da oralidade e o contato com a ancestralidade a partir do seu conhecimento musical. A seguir, descrevo a forma como a Capoeira tem sido configurada atualmente, a qual apresenta forte influência dos cargos criados pelos Mestre Pastinha. - Treinel: o cargo de Treinel era dado para aquele aluno que teria a função de ajudar o Mestre nas aula, ou ministrar aulas sob a supervisão do Mestre. Na hierarquia da Marinha Mercante, é equivalente ao posto de Moço de Convés. Começando pelo posto mais baixo da Seção, o Moço de Convés é o encarregado da limpeza do passadiço e das áreas externas da superestrutura, da pintura e da conservação do convés. É aquele profissional que deve estar a disposição para qualquer faina que lhe seja atribuída pelo Comandante,pois é referente à sua área de atuação. É auxiliar do Marinheiro de Convés, o qual corresponde em nosso caso o Mestre. Mestre Pastinha, provavelmente, criou esse cargo para que um de seus alunos pudesse lhe auxiliar nas aulas, visto que já estava com uma idade avançada para determinados movimentos físicos. E, com o passar do tempo, o cargo treinel entra em processo de tentar entender do que seria mesmo a sua função. Sobre isso, penso que esse cargo nada mais é que um estágio muito similar a um estágio de vida, no processo de transformação e busca de conhecimento entre a infância, a adolescência e o jovem adulto. Nesse sentido, em todas essas etapas é necessário que se tenha um mais velho (alguém com mais tempo de vida e conhecimentos específicos acumulados), o qual orienta e forma o sujeito.

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Seguindo a visão do comunitarismo, acredito que o/a treinel/treinela de hoje deveria voltar ao tempo, ver como era praticado esse papel e que, por compromisso com a nossa comunidade, antes de tomar qualquer atitude ou desenvolver atividades paralelas ao casulo do seu/sua mentor/mentora, o/a consulte. Não como alguém em submissão, mas sim como o cumprimento notável do papel de um discípulo, que no percorrer do tempo construiu um campo aberto de diálogo entre discípulo e mestra(e), assim acompanham transformação da sociedade através dos tempos, ficando mais claro a posição de cada mitigando os conflitos geracionais.. - Contramestre: na hierarquia, o Contra-mestre ocupa cargo similar ou equivalente ao posto de Sargento. É quem coordena o trabalho dos marinheiros no convés do navio. Ocasionalmente, pode comandar uma embarcação de menor porte. Na Capoeira, o/a Mestre/Mestra reconhece como Contramestre aquele/a em quem confia, permitindo-lhe cuidar do seu trabalho e/ou de suas atividades na sua ausência, coorientando os demais alunos. A partir de uma perspectiva comunitarista, penso no Contramestre como um pai pequeno, ou mãe pequena, no Candomblé. Na ausência do Babalorixá ou da Iyalorixá, autoridades máximas de um terreiro, o Pai Pequeno (ou Babakekerê) ou a Mãe Pequena (Iyákekerê) são os responsáveis pelo comando da casa, sempre fazendo parte de todos os preceitos e obrigações. Todo iniciado tem um Babalorixá ou uma Iyalorixá e um Pai Pequeno, ou uma Mãe Pequena. Na Capoeira, quando um discípulo se torna Contramestre,

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assume a responsabilidade da manutenção dos saberes e deveres do/a seu/sua Mestre/Mestra. Consequentemente, tmbém assume a responsabilidade geral pela manutenção da escola ou grupo. Isso permite a continuidade do legado e a manutenção dos conhecimentos dos ancestrais do/a seu/ sua Mestre/Mestra. Assim sendo, como no Candomblé, todo/a aluno/a deve ter um Mestre ou Mestra e um Contramestre ou uma Contramestra. Dessa forma, se constrói uma comunidade sustentável, capaz de crescer não apenas no sentido quantitativo, mas – e principalmente –, na garantia da manutenção dos seus próprios conhecimentos. Mestre Pastinha, mais uma vez, ao se preocupar com a preservação e a organização da Capoeira Angola, percebeu a necessidade de dar continuidade à sua linhagem. Com isso, ele não só reconheceu seus alunos enquanto contramestres, como também alguns companheiros de Roda – como o Mestre Gato Preto (Gabriel Goes), Mestre Canjiquinha (Washington Bruno da Silva) e muitos outros –, que, mesmo não sendo seus alunos, passaram a ser seus contramestres. Naquele momento, esse ato possibilitou que esses homens fizessem o mesmo com os seus respectivos discípulos em suas escolas e academias. Aliás, gostaria de chamar a atenção para o seguinte: o Contramestre é fruto do pensamento e da preocupação do Mestre Pastinha pela sustentabilidade comunitária da Capoeira. Então, tornar-se Contramestre não significa uma quebra de relação ou encerramento do ciclo relacional e de aprendizado daquele aluno ou aluna. Ao contrário, é fundamental a continuação da sua convivência com seu/sua respectivo/a Mestre/a, a fim de adquirir determinados conhecimentos que só lhes serão transmitidos

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Mestre Pastinha, mais uma vez, ao se preocupar com a preservação e a organização da Capoeira Angola, percebeu a necessidade de dar continuidade à sua linhagem.

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com o passar do tempo e a maturidade, assim como na vida. Muitas vezes, só aprendemos coisas a partir de um determinado momento. Podemos relacionar isso à cisão dos tempos na natureza por meio da frutificação, por exemplo. Assim, saberemos o tempo de cada um dos responsáveis pela continuidade e a manutenção dos nossos saberes ancestrais. É no movimento do corpo que vislumbro a possibilidade de uma leitura do mundo a partir da matriz africana, o que implica em decodificar uma filosofia que se movimenta no corpo e um corpo que se movimenta como cultura. O corpo ancestral é a reunião desta filosofia, desta cultura bem como o resultado desse movimento de contatos e conflitos que se deram e se dá na esfera social, política, religiosa e corporal. (OLIVEIRA, 2007, p. 101. Apud MACHADO, 2012 p. 73).

Ao longo da minha vivência na casa do Mestre Virgílio da Fazenda grande, ouvi relatos de diversos mestres que, de tempos em tempos, nos visitavam. Naquele momento, ainda garoto, não entendia que eles falavam era sobre a subjetividade dos indivíduos com base no contato com a Capoeira Angola, pensando os aspectos da diversidade corporal e a dialética como potenciais para a transformação sociopolítica e filosófica de cada praticante. Na verdade, isso é algo que a mim parece ter desaparecido desde a década de 1990, quando a Capoeira

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entra em ascensão na Europa. É justamente essa influência ocidental que desorienta o capoeirista sobre a compreensão do tempo e o respeito às diferenças dialéticas e corpóreas que cada Mestre/Mestra traz consigo a partir da sua escola ou linhagem. Isso ocorre dentro desse universo corpóreolinguístico e revela a riqueza da Capoeira Angola. Quero aqui, também, parabenizar os mestres e mestras que atravessaram o oceano, com a cara e a coragem, e conseguiram desenvolver trabalhos extraordinários, no Exterior de um modo geral, e que não caíram no conto de fada, mas resistiram construindo bases sólidas da Capoeira Angola nesses países. Aqui, novamente, chamo a atenção para o olhar cooperativista e comunitarista na/ da Capoeira, pois esses valores contribuirão para a nossa sustentabilidade e fortalecimento da nossa teia de saberes, o que possibilitará mais oportunidades para todos. “O rio dá muitas voltas porque ninguém lhe mostra o caminho” (Provérbio Africano) Através da visão diferenciada do/a Mestre/ Mestra ou do educador/a, podemos melhor compreender o impacto do seu ofício, tanto na formação para a prática da Capoeira em si quanto para o cotidiano em geral. Logo, os cargos criados por Mestre Pastinha, bem como os resultados oriundos dessa ação, formaram capoeiristas. Destaco que um objetivo importante do referido Mestre era, também, o de formar cidadãos respeitados pela sociedade, porque sabia-se que a

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Capoeira nascera no Brasil como luta de escravizados em ânsia de liberdade, como já dizia o próprio Mestre Pastinha. Por isso, era necessário utilizarem- se da capacidade criativa negra para driblar e resistir às atribulações impostas pelo sistema opressor, assim como fizeram os nossos irmãos e irmãs no século XVI, quando os senhores de engenho misturavam escravizados de diferentes grupos étnicos para dificultar a interação entre eles. Enfim, a linguagem corporal e a musicalidade foram (e ainda são) fundamentos potentes e canais efetivos para a garantia da comunicação entre negros e para a preservação da ancestralidade negra. 47

III – Percursos

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É importante salientar que todas as frutas frutificam na sua safra. Com isso, inicio um diálogo comigo mesmo sobre a minha jornada na Capoeira Angola, já que tudo o que venho descobrindo e compreendendo melhor se dá a partir dos tempos. Em cada tempo, eu percebo que o amadurecimento vai surgindo gradativamente, não só por meio do tempo em si, mas dos processos como o de regar uma planta. Nesse sentido, a minha continuidade é o que me coloca na relação com o tempo, na compreensão do tempo, na imaginação do tempo, na pergunta sobre o tempo e nas descobertas com base no tempo. O tempo me tem servido como um processo que se segue similar ao percurso da água que corre no rio, avançando, se alargando, se estendendo ao encontro do mar. Pedras, rochas, troncos surgiram, e surgirão, no caminho e, ainda assim, me ensinaram/ensinam a seguir o tempo...

“Tempo é, tempo á! O tempo pediu ao tempo, um tempo para pensar. O tempo respondeu ao tempo: pense e venha me falar” (Música do Mestre Felipe de Santo Amaro) No fim da década de 1970, iniciei minha trajetória na Academia de Capoeira Angola 1º de Maio, com Mestre Virgílio da Fazenda Grande. Mesmo sendo menino, percebia os ensinamentos que a Capoeira poderia me transmitir já que tive a oportunidade (ou privilégio) de aprender com diferentes mestres sobre a diversidade corpórea presente nessa prática. Ainda, cada um deles mostrava uma personalidade e uma

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forma diferente de jogar, cantar e se comportar no âmbito da Roda. Isso era no tempo dos valentes... Para legitimar sua existência, era necessário ser bruto, rígido, duro e falar pouco muitas vezes. Portanto, meu aprendizado se deu de forma completamente diferente dos tempos atuais, quando se faz necessária uma didática e uma pedagogia. Tenho muito orgulho em falar dessa escola. Quando por lá cheguei, encontrei grandes capoeiristas que contribuíram para a minha formação. Desde o meu ingresso na Capoeira – e, com o passar do tempo, compreedendo suas linguagens múltiplas –, a atuação do Mestre Virgílio chamava a minha atenção, desde aquela época, para a importância do desenvolvimento de trabalhos sociais, isto é, voltados à comunidade, de forma bem indireta e singela, mas muito presente. Ele não cobrava mensalidade pelas aulas. Os alunos pagavam apenas uma taxa simbólica, que era direcionada às despesas do espaço, por exemplo, com energia elétrica, água e material de limpeza. Apesar de ser uma turma mista, ou seja, que não separava as crianças dos adultos, nem homens das mulheres, o Mestre sempre encontrava uma forma de nos dar uma lição para a vida. A Academia de Capoeira Angola 1º de Maio foi fundada em 1962 e se localizava na Fazenda Grande do Retiro, bairro famoso pelo alto índice de violência. O acesso dos jovens ao mundo da criminalidade era muito fácil e uma das maiores preocupações do meu Mestre era como evitar isso. Quando iniciei as aulas, elas eram ministradas somente aos sábados e, no domingo, acontecia a nossa tradicional Roda, sobre a qual falarei mais adiante. No fim dos anos 1980, as aulas começaram a ser oferecidas também às terças e às quintas-feiras.

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Além disso, o Mestre sempre teve muito cuidado, para que a gente não se machucasse. Eu era muito franzino e sentia dificuldade, pois a aula sempre foi muito rígida. Não importava se era adulto ou criança, o treino era da mesma forma: duro para ambos. Essa era mais uma exigência para que vencêssemos nossos limites. Era preciso estar preparado, uma vez que a rua, com certeza, cobraria. Como já mencionado, a Fazenda Grande do Retiro apresentava alto índice de violência e criminalidade, o que, de fato, exigia que estivéssemos sempre em estado de alerta. Logo, praticar Capoeira e boxe eram maneiras de também fortalecer a autoestima, bem como de criar confiança para encarar qualquer desafio. Era o tempo dos valentes... Imaginávamos que, para ser homem, também era preciso ser valente, bom de luta. Na verdade, não entendíamos que isso era uma grande tolice, pois, escondido e muito bem velado, existia (como ainda existe) um sistema preparado para alienar a nossa consciência sobre o pertencimento étnico- racial, já que o local que se chamava escola não educava nesse sentido. Para tanto, se revela a importância da Capoeira na minha vida. Ela, sim, me formou ao longo do tempo... É relevante frisar que o tempo e a vivência são importantes pelos encontros, que sempre proporcionam trocas e aprendizados. Conheci, convivi, caminhei, escutei e aprendi com diversos mestres, os quais alguns, citados aqui, se tornaram ancestrais... São eles os mestres Zacarias Boa Morte, Waldemar da Paixão (ou da Pero Vaz ou da Liberdade), Mário Bom Cabrito, Paulo dos Anjos, Canjiquinha, Bobó, Cobrinha Verde, Caiçara, Dois de Ouro, Paulo do Limão, Ezequiel, Diogo de Espinho Remoso, Antônio Elói Caçarongongo, Bigodinho, João Pequeno, Marinheiro, Ritinha.

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O meu processo de encontro com a Capoeira se dá a partir do meu avô paterno, Eugênio do Carmo Miranda, o qual era Capoeira e sambador de Mar Grande, na Ilha de Itaparica, e vivia da venda de bebidas em sua barraca instalada na Praça do Duro. Lá, aos domingos, ele recebia amigos como o saudoso mestre Gerson Quadrado, Manteiguinha e muitos outros, para confraternizar. Esporadicamente, faziam um Samba de Roda e uma Roda de Capoeira nos antigos moldes (sem a formação atual de bateria e uniformes). Ainda, foi através dele que vi a Capoeira pela primeira vez. Na ocasião, nem ele e nem eu imaginávamos que, poucos anos depois, eu me mudaria para Salvador e passaria a morar na casa de um Mestre de Capoeira, dando continuidade ao que ele, de forma indireta, me apresentou. Eu fui morar em Salvador ainda na infância, por isso, não tive muito contato com o meu pai, chamado Manoel do Carmo Miranda, que trabalhava como eletricista e cavador de fonte. Lembro que era uma figura emblemática, com diversas peculiaridades. Somente no leito do hospital, embora muito debilitado, revelou-me que praticava Capoeira escondido, nas suas idas e vindas a Salvador. Ele frequentou rodas no cais do porto, ou seja, no Mercado Modelo, como também as rodas do Mestre Pastinha. Quando me contou as suas façanhas, eu já era um Contramestre de Capoeira e ele não sabia. Eu, inclusive, já desenvolvia trabalhos sociais. Durante essa conversa reveladora, o meu pai pediu para que eu não parasse de jogar, pois, quando ele praticava, a Capoeira era considerada “coisa de vagabundo” e o meu avô

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não queria que ele a praticasse. No entanto, o meu avô não sabia que o meu pai sabia que ele também a praticava, dado que o meu avô escondia da família que era um Capoeira. Vemos, com isso, como o fardo da escravidão negra e da colonização destruíam a autoestima dos nossos. Talvez, se meu avô não tivesse tido vergonha dele mesmo por praticar a sua cultura, eu teria tido a oportunidade de aprender com ele, né? Não que eu esteja desconsiderando a minha linhagem ou coisa assim, mais me veio essa reflexão. Assim como o Mestre Virgílio, o meu avô também era uma pessoa muito solidária. Volta e meia, estava ajudando alguém, fornecendo um prato de comida e, quando vendia as suas jacas no mercado, costumava doar algumas. A minha visão social e a minha relação com a Capoeira foram construídas por diversas experiências. Como bem diz o Mestre Virgílio, o Capoeira se forma como um pano de retalhos: aprende um pouco ali, um pouco aqui e vai se formando. Assim foi a própria história dele. Na junção desse pano de retalho, tem pedaços do meu pai, do meu avó, assim como do Mestre Virgílio. Como já mencionado, fui morar em Salvador ainda criança, momento em que eu comecei a trabalhar. Então, eu passava todos os dias na frente da casa do senhor Virgílio Maximiano Ferreira, por volta das 5 horas da manhã, a caminho da Baixa do Sapateiro, para vender cafezinho. Certa vez, ele chamou o meu irmão mais velho e falou para eu ir até a serralheria para aprender o ofício de serralheiro. Por eu ser muito magro, o senhor Virgílio achava que eu não tinha estrutura para carregar o peso da caixa com as garrafas térmicas.

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A partir da convivência, eu descobri que ele era Mestre de Capoeira e que, além de ensinar Capoeira, Mestre Virgílio da Fazenda Grande ensinava também a profissão de serralheiro e de encanador industrial. Eu e tantos outros jovens tivemos tais formações gratuitamente. Foram quase 20 anos morando e convivendo com ele e, através dele, entendi que temos que aproveitar todas as oportunidades que atravessam os nossos caminhos. Ao ter contato com algum conhecimento e, por mais que não goste de fazer por um motivo ou por outro, aquilo vai lhe servir em algum momento da sua vida. O Bernard, um jovem aluno do Projeto Bantu nas Filipinas, tem uma frase em que diz assim: “A vida é como um livro: também tem página e tem versos cada vez que abrimos. Tem novas palavras e figuras. Mas o livro não tem resposta...” Se as letras estiverem dançando, sua experiência é como bússola para você não perder a direção. O Bernard, a meu ver, está realmente certo: nossa vida é, de fato, como um livro e temos que ter lido a história dos nossos antepassados, para conseguirmos compreender a nossa própria história. Meu avô era um mercador, sambador e capoeirista; o meu pai um eletricista, cavador de fontes e capoeirista; e Mestre Virgílio, meu pai emprestado como ele mesmo dizia, era um serralheiro e capoeirista. Dentro do meu processo de leitura da história desses homens que, de maneira direta ou indireta tiveram influência na minha formação humana, parece que eu percorri todas essas influências que nos ligam a partir dos nossos encontros propiciados pela vida, cada um em seu tempo. Digo isso porque, quando criança, eu fui mercador; na adolescência, trabalhei de ajudante de eletricista

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e, sequencialmente, aprendi o ofício de serralheiro; e, hoje, sou Mestre de Capoeira. Contudo, o que me chama atenção nisso é que eu não tive nenhuma orientação do meu avô ou do meu pai para trilhar esses caminhos... Mesmo tendo morado na rua, e vivenciado muitas coisas nesse período, ainda assim, o processo ancestral se cumpriu em nossas vidas. Tudo isso me formou para ser a pessoa que hoje sou. Minha história não é diferente da história de muitos outros jovens negros que, por necessidade de ajudar com as despesas dentro de casa, logo cedo, entraram no mercado informal, indo para as ruas vender diversas coisas. Atualmente, quando olho para trás e reflito sobre o tempo de ontem, vejo que toda essa experiência acometida pela fome e vulnerabilidade social me faz olhar diferente para o tempo de agora, como bem diz um provérbio africano: “Se passa o que é bom também passa o que é ruim”. Desde que eu comecei a trabalhar, vendi vários produtos, como amendoim cozido e torrado, limão, laranja, manga, bolinho de apanã, cocada, pão, jornal, cafezinho, picolé e geladinho. Também fui servente de pedreiro, ajudante de pintor, ajudante de eletricista, ajudante de confecção de panela, serralheiro e, hoje, sou reconhecido como Mestre de Capoeira Angola, um educador e empreendedor social. E sem querer me vitimar, para nós, povo preto, a jornada do rio é longa e os percursos são diversos... Aliás, a cada curva da vida, eu obtive um novo aprendizado, assim como o rio que abre um novo leito. No decorrer de todo o percurso, surgiram diversos ofícios

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correlatos aos dos meus mais velhos (avô, pai e Mestre Virgílio) e tais conhecimentos não foram transmitidos nos moldes ocidentais, bem como são frutos de saberes e tecnologias trazidas pelos meus antepassados, isto é, transmitidos de geração em geração pelas oralidades. Todos os dias, eu me deparo com desafios e adversidades. Então, recorro aos conhecimentos que obtive a partir das experiências citadas acima. Desse modo, é preciso que apreciemos as oportunidades da vida, independente de quais sejam, tal como dizem um antigo corrido e um provérbio africano: Ô, sim, sim, sim Ô, não, não, não Hoje tem, amanhã não Aonde eu for, eu levo ela “Antes de saber pra onde vai, é preciso saber quem você é”. Além do mais, observem comigo a importância de ir e voltar para compreendermos o fluxo das coisas através do tempo. Lá no século XVI, como já mencionei, nossos irmãos utilizaram da dialética corporal e musical para se comunicarem. Assim seguimos. O corrido acima nos alerta sobre a importância do que temos e vivemos hoje, ao mesmo tempo em que aponta a relevância do que carregamos conosco como memória e ferramenta estratégica de sobrevivência. Digo isso porque, assim como mestre Pastinha trouxe influências militares para o universo da Capoeira Angola, eu

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Aliás, a cada curva da vida, eu obtive um novo aprendizado, assim como o rio que abre um novo leito.

procuro dialogar com aquelas oriundas das minhas experiências. Dessa maneira, acredito que me capacito para melhor compreender os contextos e os desafios vivenciados pelos jovens do tempo de agora. Com isso, procuro sempre dialogar, dentro do processo sociopedagógico, a partir das práticas cotidianas que contemplam qualquer ser, principalmente os nosso jovens. Em sua tese, Abreu nos apresenta uma reflexão do Paulo Freire, que corrobora a minha forma de concepção pedagógica que diz assim: “características do processo educativo voltado para a autonomia, das quais podemos destacar: (a) a construção da curiosidade crítica, como inquietação indagadora relacionada à criatividade:

“Não haveria criatividade sem a curiosidade que nos move e que nos põe pacientemente impacientes diante do mundo que não fizemos, acrescentando a ele algo que fazemos”. (FREIRE, 1996, p. 32).

A meu ver, podemos encontrar formas diversas de práticas educativas a partir do cotidiano dentro das comunidades, que nos permitem trabalhar uma educação libertária,

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enfraquecendo a educação de dominação. Assim, me parecem formas mais poderosas , na mesma maneira como bebemos um copo de água, de forma cautelosa para não engasgar. Passamos a perceber que não absorvemos conhecimento, porque querem nos enfiar goela abaixo, de forma rápida, sem o compasso de engolir a água. A ideia de globalização e capitalismo destrói a construção necessária. Logo, uma educação libertária é uma forma de estar em contato com todo o processo de vivência, para que sirva, de fato, como leitura do tempo. Por conseguinte, entendendo que o que já foi vivenciado continua sendo fonte de conhecimento:

“Procuro saber se a Capoeira é ciência, se é profunda e vasta, se me fornece conhecimentos sobre o homem espiritual, mas também o homem corporal, e os ensinamentos de ordem moral ou intelectual...” (Mestre Pastinha) Ao pensar no tempo, reporto-me aos encontros e desencontros por meio da Academia de Capoeira Angola 1º de Maio. Os encontros foram diferentes, pois havia jovens iniciando Capoeira e outros já mais amadurecidos nessa cultura, discípulos do Mestre Virgílio que muito contribuíram para o meu desenvolvimento. Cada um deles apresentava um sentido diferente de aprender a partir das nossas relações. A seguir, cito os nomes deles: José Sinval, Zé do Lenço, Almir,

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Sassá, Santa Rosa, Gabriel Fumo, Valter, Augusto Januário, Veca, Lazinho, João Eletricista; em memória, Genivaldo, Ás de Branco e o Tenente-Coronel Guimarães. Esses eram os alunos e frequentadores assíduos mais velhos da Capoeira do Mestre Virgílio, os quais já estavam ali quando eu cheguei. Sobre os mais jovens, já integrados à Capoeira antes da minha chegada, destaco: Uildes (filho biológico de Mestre Virgílio), Linda (irmã do Sassá) e Zé Carlos. Após o meu ingresso, chegaram também Edson, Olodum, Lucimar (outra irmã do Sassá), Sandra, Mara, Ana, Crispim, Bibiu, Já Morreu e muitos/as outros/as. Durante esse período, eu olhava para Capoeira como uma luta que me servia para autodefesa, uma vez que eu era um jovem negro que vivia em um bairro periférico de Salvador. Com frequência, era necessário utilizar os conhecimentos da Capoeira no enfrentamento às adversidades. Lembro muito bem que, em um certo trecho do percurso da minha casa para a Capoeira, havia um cidadão branco que já sabia o horário que eu passava por ali. Ele sempre me xingava e me ameaçava verbalmente. Em uma ocasião, chegou a me dar um tapa. Posteriomente, conversei com Ás de Branco e, um dia, ele resolveu me acompanhar, pedindo para que lhe mostrasse quem era o sujeito. Então, eu pensei que ele fosse bater no branco, mas, na verdade, o que ele queria era me preparar. Por isso, pediu para ver quem era o cara para me orientar no enfrentamento. Ás de Branco me disse para não continuar a minha caminhada. Se o sujeito voltasse a me agredir, física ou verbalmente, era para eu parar e encará-lo. E assim eu fiz. Aos poucos, o branco parou de me provocar. Dessa forma, o que o

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Ás de Branco me ensinou, na realidade, foi a olhar para dentro de mim. Assim, percebi a capacidade que tenho de absorver a presença do outro ao apresentar a minha própria presença e, o principal, com a ausência do medo. É relevante frisar que a Capoeira esconde diversas facetas, como um pano de fundo, exigindo-nos maior sensibilidade para melhor compreendermos o contexto social no qual estamos inseridos. Normalmente, as pessoas só conseguem apreciar a parte atlética e competitiva da Capoeira, deixando de perceber toda essa peculiaridade em sua dialética, ou seja, para a autodefesa, não necessariamente se utilizará a parte física. Eu, por exemplo, prefiro o senso lógico, lúdico, musical e motor, para lidar com as minhas adversidades. A meu ver, a Capoeira é um espírito vivo, que consegue, nas suas facetas, escolher seus caminhos e também formas de defesas. Olhando o caminho que a Capoeira percorreu para sobreviver, não é difícil perceber de que maneira ela foi se moldando. Independente de onde quer que ela chegasse, manteve a sua plenitude. Ainda nessa perspectiva, reporto-me novamente aos comportamentos da natureza como recurso de sobrevivência. Uma vez, eu plantei uma muda de mangueira ao lado de um pé de dendezeiro velho. À medida em que a mangueira crescia, fui percebendo que se envergava para a direção onde havia sol, porque o dendezeiro ofuscava os raios solares. Então, a mangueira exercia ali um movimento natural pela vida. Desse jeito, eu vejo a Capoeira, pois ela se utiliza das suas sagacidades para sobreviver a partir do seu ponto geográfico. Com o seu

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movimento circular, em busca da sua própria manutenção, ela sempre encontra o seu equilíbrio. No nosso cotidiano, encontramos esse mesmo movimento pela vida principalmente nas mulheres. Não importa o tipo de adversidade, mães, avós, tias sempre praticam o exercício da solidariedade, sempre acolhem os seus, sempre encontram maneiras para garantir que os raios do sol, fonte de vida, aqueçam aqueles e aquelas que as cercam. Percebemos, assim, que não é possível separar a Capoeira da naturalidade da vida, tal como não é possível separar o ser humano da natureza. Desde o momento em que cada parte assume o compromisso de estar junto, o acolhimento, a solidariedade, a percepção e a troca são consequências do cooperativismo. E, por quase duas décadas, a convivência e a ajuda de diferentes pessoas na Capoeira foram construindo a minha formação. Por isso, todo o acolhimento que recebi ao longo do tempo me faz compreender a Capoeira como um espírito feminino, maternal. A Roda de Capoeira do Mestre Virgílio foi um dos lugares onde mais aprendi sobre a vida, incluindo aí a Capoeira. Era um seleiro de bambas, rodeado por uma comunidade que parava no domingo à tarde para assistir aos grandes capoeiristas da Bahia. Aquela Escola de Capoeira, tinham pessoas de todo tipo: crianças, adultos, homens e mulheres, policiais e até marginais. A roda, por si só, já representava uma micro- comunidade, a qual, aos domingos, pontualmente das 14 às 18 horas, se unia de maneira harmoniosa para prestigiar aquela ritualidade. O respeito mútuo entre os capoeiristas era uma característica marcante mesmo diante das diferentes formas

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de pensamentos, movimentos corporais e dialética no cantar de cada um, não tinha confusão, todos se respeitavam e respeitavam o Mestre Virgílio. Houve sim passageiros desentendimentos, como em qualquer família, mas a Capoeira, sendo esse espírito feminino e matriarcal, impunha os seus caminhos para a construção da harmonia e a Capoeira sempre era finalizada com um lindo samba de roda. Ao refletir sobre a roda, me direcionou a um provérbio africano que diz: Aquele que não cultiva seu campo, morrerá de fome, de fato a Roda para mim como um pomar florido de alimentos, e que a minha presença todos os domingos era como se o estive regando para não morrer de fome...

“Trate bem a terra, ela foi doada a você por seus pais, mas emprestada a você por seus filhos.”

Durante o meu processo de crescimento enquanto indivíduo e capoeirista, naveguei por diferentes facetas desses personagens que me levaram a tomar consciência do meu corpo como um instrumento de expressão ancestral, a qual se inicia a partir do meu avô, pai do meu pai, que também praticou Capoeira. Desse modo, compreendi que era necessário muito treinamento e disciplina, portanto, era importante o desenvolvimento de uma consciência corporal. Aliás, o conhecimento corporal, musical, artesanal, artístico e filosófico contribuíram para a formação positiva da minha identidade de capoeirista. Consequentemente, passei a compreender a Capoeira como algo mais complexo, que estava (e está) para

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além da roda. Ainda, adquiri a maioria desses conhecimentos através da oralidade. quando eu morei na casa do Mestre Virgílio, lá os mestres sempre estavam reunidos, eu ouvia muitas coisas e demorei anos para entender que se tratavam de um conhecimento valioso. Encontrei um texto num artigo de mestra Janja Araújo, que corrobora com o meu processo de vivência:

Capoeira Angola, para quem nela se inicia, constitui, por si só, um universo de saberes específicos, reproduzidos principalmente através da oralidade, onde ganham vital importância a figura do mestre, a sua fala e o código de conduta partilhado entre ele e os seus discípulos. A hierarquia de valores dos angoleiros aparece regida por princípios relacionados à ancestralidade, fidelidade a ela e pertencimento à comunidade que a representa, que podem ser identificados tanto na conduta moral quanto na expressão corporal do jogo de capoeira.” (ARAÚJO, 2003, p. 7) Prestigiar aquela Roda promovida pelo Mestre Virgílio era também uma forma de agradecimento dos capoeiristas e espectadores pelo trabalho que ele desenvolvia há décadas na Fazenda Grande do Retiro. Naquela roda, eu entendi a necessidade de lutar para encontrar o meu espaço na vida. Inclusive, a busca pelo conhecimento também abriu os meus caminhos, permitindo a minha autorreflexão constante, além

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de me fazer perceber a relevância de me esforçar para compreender a dinâmica das relações humanas. Se não ficarmos atentos, o rolo compressor do sistema colonizador vem e passar por cima, de modo que nós, muitas vezes, não percebamos e acabamos até indo contra os nossos irmãos e irmãs. Assim como era na famosa Roda da Fazenda Grande nas décadas de 1980 e 1990, do lado de fora da Academia de Capoeira Angola 1º de Maio, também não se podia de forma alguma vacilar. Todos os movimentos tinham que ser estrategicamente pensados, para não ser surpreendido. Era uma Roda de bambas, mas o maior ensinamento que obtive ali foi sobre ter paciência e aceitar que nem sempre podemos ou devemos fazer tudo o que gostaríamos. Muitas vezes, eu ia para a Roda e ficava sentado cantando, fazendo o coro, e não jogava. Cumprindo a lógica de um adolescente, então, frequentemente, voltava para casa chateado por não ter jogado e/ou não ter tocado algum instrumento.

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É relevante frisar que a Capoeira esconde diversas facetas,como um pano de fundo, exigindo-nos maior sensibilidade para melhor compreendermos o contexto social no qual estamos inseridos.

Eu, ainda, não compreendia que todo aquele processo também era parte do aprender a aprender. Com o tempo, compreendi que observando, ouvindo, cantando, convivendo e cumprindo com a ritualidade da Roda ao esperar o meu momento de jogar ou tocar um instrumento, eu também estava praticando a Capoeira. Logo, fui entendendo que a oportunidade chegaria e que eu deveria ter cuidado com aqueles sentimentos de tristeza e decepção, pois, na verdade, ambos só me bloqueavam. Compreendendo o tempo de agora, como já dizia a saudosa Mãe Stella de Oxóssi, busco dialogar cuidadosamente com cada um/uma dos meus alunos e das minhas alunas para colocar em prática tudo aquilo que vivenciei. Então, comecei a dar aulas de Capoeira no fim da década de 1980, na porta da casa de um amigo a pedido dele e, em seguida, no bairro Pero Vaz. Até aí, só tinha oferecido aulas de Capoeira para adultos, mas a minha primeira experiência de trabalho com a Capoeira como ferramenta socioeducativa se iniciou em 1993. E

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nessa altura, já compreendia os valores da Capoeira e tratei de organizar aulas em que toda a sua complexidade pudesse ser utilizada de maneira a resgatar vidas. Diariamente, eu passava pelo Parque da Cidade de Salvador, por conta do trajeto para o trabalho, e deparava-me com uma grande quantidade de crianças e jovens em situação de rua. O Projeto Bantu nasceu assim. Na verdade, no início, a designação do projeto era Erê Menino Vem Gingar, mas, com menos de um ano de realização, mudei o nome. Aquela experiência foi o suficiente para eu compreender que era esse o tipo de trabalho que fazia sentido desenvolver. No Parque da Cidade, formei uma turma com 12 crianças. Eu comprava pães e sucos, dava uma aula que durava em torno de meia hora. Essas crianças, que estavam em situação de rua, se aproximavam para a Capoeira, porém era possível perceber nitidamente que participavam por conta do alimento ofertado. Ainda, costumavam dormir no local, sob a marquise de quiosques instalados dentro do parque. No entanto, costumavam também deixar o espaço por volta das 8 horas da manhã. Algumas das crianças praticavam furtos, por causa disso, permanecer ali era arriscado. Eu percebia que se sentiam acolhidas com a Capoeira, afinal, tinham ali, naquele instante, alguém lhes dando atenção. Expressavam a satisfação com aquele momento pelo próprio corpo, por meio de sorrisos e brincadeiras entre si, algo não costumeiro para crianças em contexto tão vulnerável como aquele que estavam. Ali, comecei a entender a importância da diversidade pedagógica para trabalhar com crianças. Afinal,

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a realidade do cotidiano de cada um/uma consequentemente influenciará na capacidade de atenção e na motivação para permanecer na aula. Não havia patrocínio e era um trabalho voluntário. À época, eu era serralheiro, ofício que aprendi com Mestre Virgílio da Fazenda Grande, como já mencionei. Como não existe coincidência, é oportuno aqui registrar que o ofício de ferreiro é um dos mais importantes em sociedades tradicionais africanas e era o ofício de Ogum, ancestral divinizado da cultura yorubá, que orienta o meu orí (cabeça). Voltando ao Parque da Cidade em Salvador. Eu comprava os pães e os sucos com o meu próprio dinheiro porque entendia a necessidade da alimentação por conta da minha própria realidade. Em minhas memórias de infância estão os momentos em que eu também vivi em situação de rua, pois gastávamos, eu e meu irmão, mais tempo na busca por comida do que qualquer outra coisa. A fome era grande. Por isso, eu entendia o que as crianças estavam passando. Além da Capoeira, era importante que se alimentassem. Eu não me importava que estivessem ali só pela comida e também tinha consciência de que elas se interessariam pela Capoeira em algum momento, seja pela música ou pelos movimentos corporais. Poucos meses depois, o Parque da Cidade foi interditado para uma reforma da prefeitura. Nem eu tinha mais como passar por dentro do local, nem as crianças tinham acesso. Dessa forma, fui dar aulas de Capoeira em uma academia de musculação no IAPI, bairro da periferia de Salvador. Cheguei lá por intermédio de um amigo que era professor da casa e

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recomendou o meu trabalho ao proprietário. Esse, por sua vez, me cedeu uma sala. Acontece que, no lugar de adultos, públicoalvo pelo potencial de pagar as mensalidades, eram as crianças que compareciam. Inclusive, o proprietário chegou a mencionar a impossibilidade de eu continuar ministrando as minhas aulas no espaço, já que as crianças não tinham como arcar com tal pagamento e a academia precisava de recursos para se manter. Apesar das grandes limitações, eu tinha certeza que precisava seguir com o trabalho social, embora uma das minhas maiores preocupações, naquele momento, fosse a necessidade de salário para manter a família e a de formar bons capoeiristas. Eu os submetia a um treinamento bem rígido, acreditando que aquela era a melhor forma de expressar a minha Capoeira e, consequentemente, o meu conhecimento. Lá, dei aulas por três ou quatros anos. Naquela comunidade, várias crianças e jovens gostavam de Capoeira e começaram a treinar comigo. Com o passar do tempo, os jovens foram ficando muito hábeis e acompanhavam-me para várias rodas. Eles jogavam com os adultos como se adultos também fossem. Apesar de inocentes, apresentavam domínio do corpo e, com isso, tornavam-se “perigosos”. A habilidade dos jovens exigia dos capoeiristas adultos uma maior atenção. Meus alunos eram subestimados por conta do tamanho, mas a desenvoltura que tinham na Roda me encantou para seguir ensinando crianças. Como diz a letra de um velho canto: “quem nunca viu venha ver / licuri quebra dendê”. A Capoeira em seus versos relata realidades, mas, ainda assim, o próprio capoeirista precisa compreender o que a musicalidade lhe apresenta metaforicamente.

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Naquela época, eu ainda não entendia a diferença entre projeto social e grupo de Capoeira, visto que era tudo muito misturado no meu entendimento. Assim, terminou que o meu grupo, ao qual designei como Escola de Capoeira Angola Mato Rasteiro - ECAMAR, foi majoritariamente formado por crianças. Elas tocavam, cantavam e jogavam muito bem. Além do mais, apresentavam o teor do conhecimento que eu lhes transmitia. Apesar de muito jovens, jogavam Capoeira como se fossem mais velhas. A minha visão sobre a importância do trabalho social estava se ampliando. E, para dar continuidade ao que já havia feito de alguma forma, decidi que toda terça-feira iria com esses meus alunos distribuir sopa para pessoas em situação de rua na Baixa do Sapateiro. Nós nos dividíamos da seguinte forma: alguns tocavam berimbau enquanto outros entregavam a comida. Também mobilizei mães e pais desses meus alunos e, com as doações de alimentos, eu mesmo preparava a sopa. Para o deslocamento, eu contava sempre com o apoio voluntário do pai do meu aluno André, que dirigia o próprio carro para garantir a entrega. Entre 1993 e 1994, surgia o Projeto Cidade Mãe e eu fui contratado pela Prefeitura Municipal de Salvador para trabalhar no bairro de São João de Cabrito, ministrando aulas para as crianças que ali viviam. Por lá, permaneci até 1996. Naquele momento, eu já tinha conquistado o título de contramestre e atuava como professor de Capoeira na área

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socioeducativa no referido projeto, sendo remunerado por isso. Ao longo da trajetória, fui percebendo que precisava ir além do conhecimento que já acumulava sobre Capoeira. Nessa ocasião, apresentaram-me o livro Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire e essa leitura me inspirou a construção da minha própria pedagogia. Freire acreditava numa educação libertadora e, mediante a essa perspectiva, iniciei o desenho do Projeto Bantu no papel. Logo, fui ampliando o entendimento de que eu vivia de forma integrada, ensinando e aprendendo ao mesmo tempo, compreendendo o processo pelo qual eu deveria passar, respeitando o saber ancestral da Capoeira Angola, que é transmitido por meio da tradição oral. A Capoeira, como sabemos, é uma arte e luta criada pelos negros da diáspora africana, no período colonial. Sofreu proibição, perseguição e criminalização, por outro lado, ainda assim educou, socializou e transformou pessoas dentro e fora do Brasil, mostrando que os alicerces construídos para a sua proibição nada mais eram do que fruto do racismo institucional. Hoje, a Capoeira está em todas as partes do mundo e em todo lugar que chega, independente da forma como atraia (pelos movimentos, pelas musicalidade, por exemplo), a Capoeira é uma das únicas artes que ao mesmo tempo em que se simula uma luta, se brinca e se socializa. A frase de Mestre Pastinha, já mencionada, que diz “Capoeira é mandinga de escravo em ansia de liberdade”, provocou-me questionamentos sobre os conceitos e práticas

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A Capoeira, em seus versos relata realidades, mas, ainda assim, o próprio capoeirista precisa compreender o que a musicalidade lhe apresenta metaforicamente.

dentro do meu trabalho. Aos poucos, fui me conscientizando sobre o que eu estava fazendo e também como atuar de maneira a atender as necessidades dos jovens que teriam acesso ao projeto BANTU. No ano de 1995, fui convidado para dar aula na Casa do Menor, no subúrbio de Salvador, na Bahia. Lá, depareime com uma situação diferente da dos jovens que eu trabalhava na rua: estava agora diante de “jovens em conflito com a lei”, como eram designados pelo Estado. Esses meninos eram totalmente institucionalizados e criminalizados pelo sistema. No início, os jovens só conseguiam ver a Capoeira como algo violento, ou seja, luta de malandro. Isso exigiu que eu, enquanto educador, encontrasse uma forma para mostrar-lhes a Capoeira a partir de uma perspectiva positiva. Ao utilizar da flexibilidade, aos poucos, fui

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desenvolvendo uma pedagogia que se adequava ao espaço, fazendo com que os jovens se sentissem acolhidos e motivados a participarem. O futebol era a atividade preferida deles e sempre competia com o horário da Capoeira. Então, criei uma brincadeira com a ginga e a bola, a qual acabou dando certo. Logo, perceberam que o meu esforço era para conquistá-los, para me inserir na realidade deles, não impondo o que deveriam fazer. Com o passar do tempo, revezávamos entre a Capoeira e jogar bola. Tal dinâmica fez sucesso na Casa do Menor. Já no projeto Cidade Mãe, o público era completamente diferente, o que me exigiu, mais uma vez, buscar uma outra forma de dialogar e também uma nova pedagogia. Daí, debrucei-me sobre o manuscrito do Mestre Pastinha. Eu desejava compreender melhor a naturalidade dos movimentos do corpo e a mente dos jovens. Aliás, eu tinha o propósito de fazer com que eles dialogassem com os movimentos, percebessem que ia além de um movimento e, sim, ao encontro com a ancestralidade deles mesmos. O fato de viverem em palafitas não significava que eles não eram capazes ou que não carregavam uma herança. A minha passagem pela instituição Cidade Mãe foi bem rápida, mas, mesmo assim, conquistei a confiança dos jovens. A Capoeira ia se ressignificando na Assim, a minha maneira de olhar para a Capoeira como prática socioeducativa foi ganhando uma forma mais abrangente. Entendi que ela não é só uma prática física, mas também uma narrativa socioeducativa e psicossocial, embasada na tradição negroafricana. minha jornada, construindo uma perspectiva que

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contribuiu para a formulação de um novo paradigma. Assim, a minha maneira de olhar para a Capoeira como prática socioeducativa foi ganhando uma forma mais abrangente. Entendi que ela não é só uma prática física, mas também uma narrativa socioeducativa e psicossocial, embasada na tradição negro-africana. Enfim, passei a percebê-la como uma simbiose perfeita entre valores civilizatórios de matriz africana, tais como ludicidade, corporeidade, oralidade, musicalidade, ancestralidade e circularidade. 75

IV – O Projeto Bantu

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No Projeto Bantu coloco em prática todo o meu aprendizado, as formas de ensinamento da musicalidade, como aprender a tocar o berimbau com a boca e guiar o movimento com o braço. Todos esses conhecimentos vieram do meu mestre, que, na minha visão, é um grande educador. Dado momento, fui convidado a participar de um evento acadêmico, promovido na Universidade Católica da Bahia, e utilizei algumas frases de Mestre Mário Bom Cabrito, como por exemplo: “O capoeirista deve usar a leveza como força para atrair o oponente”. Ao usar essa proeza na minha fala, fui rapidamente elogiado e daí percebi que tinha que seguir olhando para a Capoeira nesse sentido, em que a leveza é sinônimo de força. Recordo-me de várias conversas daquela época, nas quais o mestre explicava sobre a música e o jogo, como mudar o sentido do jogo de acordo com cada oponente. Destaco que sou eternamente grato pelos ensinamentos que me foram passados. Quando adulto, tive a oportunidade de frequentar diversas rodas em escolas de Capoeira e muitas festas populares em Salvador, assim passei a usar os conhecimentos que aprendi. Tudo na dosagem certa. Tantos conhecimentos me deram noção de como posso falar por meio de uma linguagem clara com os jovens, de forma que eles me compreendam. Se eu não tivesse essa habilidade, seria muito difícil essa comunicação, pois muitos dos jovens não costumam seguir regras, acreditam que podem fazer tudo a qualquer momento, sem assumir responsabilidades. Sempre busco em minha memória o que aprendi com os mais velhos, compreendendo que o conhecimento se acumula ao longo do tempo de vida. E, assim, procuro a

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forma mais adequada para transmitir tudo o que aprendi aos mais novos. Eu sempre ouvia uma palavra ou outra como lição. Era um tempo no qual era muito comum encontrar os mestres mais velhos nas rodas e, por isso, esses ensinamentos eram facilmente transmitidos, pela oralidade e pela vivência. As rodas de Capoeira na rua possuem regras e códigos diferentes das regras e códigos vivenciados dentro das rodas nas escolas. Portanto, os ensinamentos dos mais antigos nos preparavam para as adversidades dentro dessas duas comunidades. Na maioria das vezes, as rodas nas academias/grupos eram formadas por um número menor de participantes. Isso porque eram frequentadas majoritariamente pelos próprios alunos e a velha guarda, que, por praxe, costumam respeitar a casa alheia, e, desse modo, o diálogo dentro do jogo divergia de forma receptiva ou não, a partir de como o visitante se apresentava. Já nas rodas de rua, a maioria dos participantes eram visitantes, querendo de alguma forma sobreviver naquele espaço onde os poucos frequentadores assíduos buscavam sempre demarcar o seu território. Logo, era importante se manter atento para saber quem de fato eram esses Capoeiras de rua e os que também estavam de passagem. Daí vem o meu entendimento sobre o momento certo para falar ou silenciar, tanto na forma corporal quanto na verbal, compreendendo a dinâmica do grupo. Esse conhecimento é muito importante, inclusive, no que tange a minha atuação em projetos sociais, no dia a dia com jovens que vivem marginalizados e expostos à violência de diversos gêneros. Esse público tende a buscar formas complexas para chamar a atenção das demais pessoas com as quais convivem. O desrespeito aos mais velhos, o ato de provocar conflitos para

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ocupar algum lugar de destaque dentro do grupo/comunidade, família ou escola e, muitas vezes, confrontar os adultos a título de intimidá-los, por exemplo, e isso também acontecia nas rodas de festas de largos de Salvador. Penso que esse comportamento é fruto de um cotidiano construído através de um histórico familiar traumático e/ou da violação de direitos básicos, devido a ausência de políticas públicas por parte do Estado. Sendo assim, eu acredito que trabalhar a Capoeira Angola, voltada para o comunitarismo e o cooperativismo, fará com que nos reencontremos e compreendamos melhor os nossos costumes e práticas culturais. Tendo a ginga como base de ligação direta e indireta à nossa ancestralidade, a Capoeira Angola é alimento interno, externo e circular, que reverbera sustentabilidade e é capaz de fortalecer as nossas comunidades:



“Antes de saber para onde vai é preciso saber quem você é” (Provérbio Africano)

O início da Trilha da Kalunga2 Em 1996, após seis meses no projeto Cidade Mãe, migrei para Caculé, uma cidade que fica a 13 horas de Salvador,no

2 Acho interessante aqui explicar o que é kalunga. A gente pode até transcrever um trecho do que Nei Lopes traz na Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana. Digo isso porque nem todo mundo que lerá o livro está familiarizado com o termo.

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interior da Bahia. Por lá, trabalhei com o público infantil e juvenil das escolas municipais e também em uma escola rural, situada na Fazenda Tapera. Aliás, essa etapa da minha trajetória se iniciou com um convite da própria prefeitura de Caculé.

Na cidade de Caculé Aquela era a minha primeira experiência dentro de uma escola de Educação Básica e os objetivos da instituição eram a redução das brigas, o combate ao consumo de drogas e à evasão escolar. Nesse momento, senti a necessidade de colocar a ideia do Projeto Bantu no papel de forma mais sistematizada. Considerando todo o contexto histórico, político e social brasileiro, elaborei uma pedagogia própria, a qual teve como referenciais os seguintes livros e autores: Pedagogia do Oprimido (1974), de Paulo freire; O Quilombismo (1980), de Abdias Nascimento; Herança de Pastinha (1997, 2.ed.) transcrito por Dr. Ângelo A. Decênio Filho. Após, reuni todas as informações sobre o Projeto Bantu que eram necessárias naquele momento, apresentei-o à Secretaria de Educação daquela cidade. Então, comecei as atividades nas escolas e fui aprendendo a lidar com os desafios a cada dia. Eu desenvolvia as dinâmicas de acordo com cada grupo e faixa etária, na medida em que observava as mudanças positivas nos grupos, por exemplo, o fato de começarem a prestar mais a atenção à aula. Eu participava das reuniões dos professores e tomava conhecimento sobre o comportamento dos alunos nas outras aulas. Aos poucos, desenvolvi um caminho de diálogo com aqueles que eram considerados os

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mais complexos. Eu permitia que percebessem que cada um ali era igualmente importante para mim e, diante dos resultados negativos, eu buscava outras alternativas para o sucesso das atividades. Para trabalhar com os acometidos pelo Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade - TDAH (caracterizado pela desatenção extrema, desorganização, comportamento impulsivo, inquietude, entre outros), comecei a desenvolver oficinas para a confecção de caxixi, um instrumento de origem africana, semelhante ao chocalho. O resultado foi tão maravilhoso que os professores produziram um artigo e o publicaram em uma revista de educação da cidade. Com base nos resultados com esse grupo, decidi organizar uma oficina para a confecção de berimbau (instrumento de corda de origem angolana, tradicional na Bahia) com outros jovens. Esse novo grupo, por sua vez, era composto por pessoas que apresentavam traços de Transtorno de Comportamento Agressivo

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(TEI), caracterizado pela incapacidade de gerenciar os seus próprios impulsos, levando à agressividade, ataques de fúria completamente desproporcionais. Qualquer que seja a natureza da agressão, é comum que o acometido pelo transtorno se arrependa, sinta vergonha, culpa ou tristeza após o ato. Então, participar das reuniões dos profes- sores e entender como as possíveis questões emocionais, psicológicas e/ou psiquiátricas dos estudantes refletem diretamente no seu com- portamento contribuiu muito para potencializar o meu trabalho. Analisando caso a caso, pude acompanhar melhor os meus alunos. Ao longo da confecção de berimbaus, pude perceber que o manuseio dos materiais exigia muita atenção e esforço físico dos participantes, fazendo com que os jovens canalizassem toda a sua energia, o equilíbrio mental e também a sua força na ofi- cina. O ato de raspar a madeira, os detalhes do acabamento, cada etapa cumprida e a conclu- são de todo o processo, enfim, promoviam o sentimento de dever cumprido. A partir de cada experiência, eu fui construindo as minhas ideias e ampliando o meu trabalho, sempre buscando dialogar e compreender as situações vividas para melhor lidar com as adversidades. “Não foi feito para marcar grandes passos, mas pequenos que levam aos grandes triunfos.” Capoeira à luz de lamparina, em Tapera/ Caculé – BA Além da escola municipal no centro de Caculé, outra vivência importante se deu na escola rural situada à fazenda

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Tapera, que fica a 1 hora da região central. Àquela época, o local ainda não tinha luz elétrica. Ao chegar, fui apresentado à comunidade e iniciei as aulas de Capoeira Angola com crianças e adolescentes no turno da tarde. E, no fim do dia, as aulas eram para os idosos. Os jovens dessa localidade eram todos muito bem comportados e só necessitavam de uma atividade recreativa, uma vez que alguns já trabalhavam na roça ajudando a família. Dessa forma, mais uma vez, eu necessitei buscar uma linguagem didática que os atendesse. O meu objetivo ali era de ensinar Capoeira Angola, para que essas pessoas pudessem se tornar capoeiristas e também aprendessem sobre a história e cultura afro-brasileira, já que viviam alienados em relação à questão racial no Brasil. Então, começamos a montar um mural histórico informativo, pluricultural e educativo, com intuito de promover o acesso à história e à cultura da diáspora africana, além de enfatizar a Capoeira Angola e outras vertentes da cultura afro-brasileira. Durante o período de um ano, fui entendendo as necessidades dos jovens a partir da sua realidade e como faria para transmitir as informações que contribuiriam não só com a construção do conhecimento deles sobre a Capoeira, mas também em sua vida pessoal. Caculé é uma cidade de descendentes de africanos, mas com uma realidade não muito diferente da de outros lugares na Bahia, onde todo espaço de poder está ocupado pela população branca. De acordo com Inaicyra Falcão (2006, p.36), compreender o processo pelo qual o sagrado se expressa no e nos cotidianos e o processo reverso, em que o cotidiano é expresso no sagrado, mostrou-

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se como o campo de exploração e de possibilidades, situado especificamente numa determinada tradição cultural, que pré-dispunha de vivências, reflexão e de elaboração no aspecto didático do trabalho a ser desenvolvido. No decorrer do tempo, percebi o quanto foi importante a elaboração do mural com informações sobre a historicidade da Capoeira Angola, assim como das tradições afrobrasileiras, o que fez surgir várias indagações entres os alunos. Assim, se deu o trabalho através da Capoeira Angola fora do contexto da capital baiana, mostrando uma necessidade de reelaboração a cada experiência vivida, levando em conto o local e o público-alvo. Propondo-me outros caminhos ou, pelo menos, novas formas de trilhar os caminhos já abertos, após quase dois anos de trabalho, comecei a refletir sobre a minha permanência ali. Ponderava sobre a minha carreira profissional e pessoal, já que aquele lugar era bem distante de tudo e não havia expectativa de melhores

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Então, participar das reuniões dos professores e entender como as possíveis questões emocionais, psicológicas e/ou psiquiátricas dos estudantes refletem diretamente no seu comportamento contribuiu muito para potencializar o meu trabalho.

condições de vida para continuar por lá. O meu compromisso como educador, capoeirista e com a tradição que me levou até aquele lugar exigia uma estrutura. Já não era mais sustentável ficar fazendo um trabalho sem nenhuma remuneração financeira. O local seguia sem energia elétrica e nem previsão de quando isso chegaria. Dessa forma, era a hora de fazer jus ao ditado do mestre Bimba, que diz: “recuar também é lutar”. No entanto, preocupado com o vínculo criado com a comunidade, não podia abandonar tudo. Cuidei da preparação de alguns alunos, para que os mesmos dessem continuidade ao trabalho, baseado nos valores civilizatórios afro-brasileiros do comunitarismo e da cooperatividade. Procurei diante disso avançar na ideia de formar multiplicadores para que pudessem continuar ensinando as crianças depois da minha saída. E, durante seis meses, foi o que fiz: orientei dois rapazes e uma menina, que se mostravam bastante interessados e motivados a seguir com as atividades. Eles me auxiliavam nas aulas e juntos fomos aprendendo a respeitar a capacidade de cada um. A ideia não era deixar um grupo de Capoeira formado e sim possibilitar que continuassem a prática até que em algum momento encontrassem outro mestre. Digo isto por conta da distância da localidade e, consequentemente, da dificuldade no acesso às rodas e às academias, além de entender que a formação de um capoeirista requer um longo tempo de práticas e vivências. E, no decorrer do processo de organização de minha despedida da fazenda Tapera, percebi que não só contribui com a vida dos jovens, como também dos mais velhos, antigos moradores, como o sr. Antônio, a quem apelidei como

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Sessentinha, pois ele era o mais velho da turma. Aos 63 anos de idade, ele caminhava oito léguas ida e volta para as aulas todos os dias. Quando o Sr. Antônio descobriu que eu estava indo embora, ele não só me ofereceu um pagamento como ajuda de custo, como também falou que só parava a Capoeira após morrer, pois proporcionei uma melhor qualidade de vida e muitos ensinamentos. Após ouvir o Sr. Antônio, eu resolvi adiar minha viagem por mais 3 meses e conseguimos a liberação da prefeitura para que as atividades continuassem através do Juscileno, um dos alunos mais velhos e quem tocou o trabalho por mais 1 ano. E importante frisar que o trabalho não conseguiu ter continuidade por conta da dificuldade financeira e falta de apoio para me manter na cidade, como tive que seguir minha jornada em busca de um lugar onde conseguisse ter uma manutenção financeira para sustentabilizar a vida, e a familia, que deixei em Salvador, assim como o jovem, Joselino, também não tinha conhecimento suficiente para se manter dando aula sozinho por muito tempo. O ciclo da vida foi exigindo dele dar continuidade a seus estudos, e após alguns anos retomamos o contato e Jucileno, me contou que casou com uma das meninas que treinava também naquela época, e que tem 3 filhos, achei magnífico saber que eles estão bem e que a Capoeira, ainda faz parte deles no pensamento e como disse Jucelino, Capoeira marcou a vida dele e jamais esqueceu dela e de mim. Os aprendizados não pararam por aí. Lá, tive a oportunidade de conhecer a história do africano Manoel Caculé, um escravizado que virou vaqueiro e deu nome à cidade. Os registros históricos e orais que predominam entre a população

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mais idosa, assim como nos conta a Isabela Soares Vieira, em seu trabalho de conclusão pela Universidade Federal de Sergipe, Pag; 45, em sua pesquisa. Conta-se que, por volta de 1854, um escravo denominado Manoel Caculé, pertencente à Fazenda Jacaré de Dona Rosa Prates, em meio ao seu trabalho de tocar o gado se perdeu e por muito tempo não retornou à sede. Tempos depois encontraram, à beira de uma lagoa, nas margens do Rio do Antônio, esse mesmo escravo ali habitando, plantando, colhendo e vendendo os seus produtos. A história diz que, ao ser encontrado pelos demais funcionários da fazenda, ele já tinha acumulado dinheiro o suficiente para pagar a sua alforria e permaneceu naquele local, agora como homem livre (FRÓIS, 1967). Dona Rosa, que herdara aquelas terras junto com o irmão, maravilhada ao conhecer o local ocupado por Manoel Caculé, decidiu edificar uma casa para ela própria naquela região e denominar de Fazenda Caculé, que então veio dar nome à cidade (FRÓIS, 1967). Em 1860, foi doado pela latifundiária um terreno ao Santíssimo Coração de Jesus para que se fosse edificado uma capela, onde hoje encontra-se a igreja matriz. O local teve um crescimento rápido e expressivo. Já em 1880 Caculé havia sido elevado à categoria de distrito de paz. E, em 1919 conquistou o título de município, desmembrando-se assim de Caetité. Seu território passou a ser formado então pela cidade de Caculé e pelas vilas de Ibiassucê, Ibitira e Rio do Antônio, onde, segundo o censo de 1950 já contava com 33.574 habitantes, dos quais 79,35% encontravam-se na zona rural (IBGE, 1959). Na década de 50 a cidade tinha como prin- cipal atividade a agricultura e a pecuária, tendo como principais produtos

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agrícolas a cana-de-açúcar, a mandioca, a laranja, a batata doce, o milho, o algodão, a mamona e o fumo. No muni- cípio nessa época já passava a ferrovia da Viação Férrea Federal Leste Brasileiro, que contava com uma estação na cidade e uma na vila de Rio do Antônio. Possuía também duas rodovias, a que ligava Ilhéus/BA à Goiás e Brumado/BA a Urandi/ BA, que por sua vez ligava-se ao estado de Minas Gerais. Por estas vias eram exportados algodão, rapadura, milho e fumo e importados tecidos e demais artigos (IBGE, 1959). Quando eu cheguei à comunidade da Tapera, meus alunos não conheciam a história da cidade. Por isso, considerei importante incluí-la à parte teórica das atividades, já que eu estava trazendo histórias da Capoeira e da cultura africana. Conhecer a história do africano Manoel Caculé e conviver com os pequenos agricultores da fazenda Tapera foi extremamente importante para uma melhor formação dos meus conceitos pedagógicos. Então, eu aprendi a torrar farinha enquanto ouvia as histórias dos mais velhos e o conjunto desses elementos, vivenciados a partir da história do lugar e de vida das pessoas, foram fundamentais na elaboração das atividades no decorrer do tempo. Esse senso de comunidade, de acordo com a minha percepção enquanto educador, valoriza as relações culturais de cada indivíduo, com base no seu lugar de origem, mesmo que ali haja uma falta de consenso entre as partes. Através da Capoeira Angola, eu me apresento como uma ponte que permite com que os alunos façam essa viagem relacional entre si e o seu lugar de origem. A consciência sobre a importância de nos conectarmos com as nossas raízes me fez entender a

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relevância na transmissão da história do escravizado Manoel Caculé, por exemplo. Desse modo, era muito importante que conhecessem como se construiu a cidade em que vivem e a importância de fazerem Capoeira Angola, que direta ou indiretamente também está ligada às raízes deles. Assim fechamos a página deste capítulo. Uma jornada de vivências e muitos aprendizados que ainda me fazem feliz pelas oportunidades de observar, absorver e trocar saberes. Tudo isso contribuiu ainda mais para a inspiração sobre o projeto Bantu. Tendo como base a Capoeira Angola, eu não só tinha o interesse em desenvolver concepções da natureza humana, mas também propor reflexões sobre o papel de cada indivíduo dentro da sociedade, o que fomentou um senso de liderança e comprometimento de forma direta e indireta.

“Aquele que aprende ensina” (Proverbio africano)

Lins – SP Eu tive um aluno, chamado José Antônio, que era cortador de cana de açúcar, o qual vivia seis meses em Caculé e outros seis meses em Lins, São Paulo. Diante a minha dificuldade financeira, um dia, ele me sugeriu viajar até SP. De acordo com esse aluno, havia um lugar conhecido como “cidade das escolas” e eu teria mais oportunidade de trabalho com o que eu fazia. Ele se referia a Lins, no centro-oeste do Estado.

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Na trilha percorrida entre Bahia e São Paulo, procurei compreender, sobretudo, a diferença cultural entre cada cidade e estado, por meio de suas respectivas realidades sociais. Cada lugar onde passei, proporcionou-me elementos conceituais para uma proposta pedagógica com relação a cada indivíduo, dentro da pluralidade brasileira. Ao longo desse percurso, a minha concepção pedagógica foi se enriquecendo através da sensibilidade e da vontade de aprender ensinando. Logo, fui desenvolvendo progressivamente o respeito à diversidade e à capacidade física ou intelectual de cada indivíduo. Recordo-me que, em cada cidade que eu parava a caminho de Lins, eu buscava ler e escrever o que achava interessante metodologicamente, dentro de mim existia uma certa preocupação, eu realmente precisava chegar lá e apresentar um projeto diferente com o pressuposto de que seria possível ser contratado pela secretaria municipal de educação, e, para atingir essa meta, eu teria que ter uma proposta metodológica, mais sem perder o conceito tradicional da Capoeira Angola. Desde então eu já considerava necessário elucidar concepções socioeducativas, o que julgo ser o papel da arte educação, como atividade de desenvolvimento psicossocial e mental, mediante a uma proposta pedagógica desenvolvida através de uma experiência consciente, a qual busca proporcionar o corpo enquanto instrumento de comunicação e consciência histórica de cada indivíduo além de integrar o físico, o psíquico, o intelecto e o emocional. Ao chegar em Lins, apesar de um lugar desconhecido, quando desembarquei na rodoviária, percebi que realmente não ando sozinho, fui recepcionado por uma pessoa na qual

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nem sabia quem eu era e o que fui fazer ali, ela disse: “Baiano, você veio aqui trabalhar então vou te levar em um lugar para você ficar. Baiano, preste atenção, nós usamos esse lugar levar nossos clientes, mais como você não tem pra aonde ir você fica nesse hotel, mas não se envolva com nada Baiano. Aí percebi que meu anjo da guarda não me deixa só, essa força ancestral me acompanha, mostrando que eu estava no lugar certo e que deveria enfrentar as dificuldades e seguir em busca do que me levou a “cidade das escolas”, como é conhecida. Após levar uma semana reescrevendo o projeto, resolvi imprimir algumas cópias e visitar as escolas locais, para a sua apresentação assim como as organizações que atendiam jovens em situação de vulnerabilidade. Considerando os aspectos culturais da cidade, fiz uma pesquisa sobre a sua história e reflexão crítica levando em conta o aprendizado adquirido na cidade de Caçulé e entendendo que as diferenças estão no íntimo da natureza humana, já que Lins não apresentava uma história social diferente. Ao caminhar pelas ruas, percebi que existiam muitas pessoas negras, em sua maioria crianças e adolescentes, expostos ao descaso do poder público, seguindo na mesma estatística social, os quais viviam em periferias com baixa renda e vulnerabilidade social. Daí, percebi a necessidade da apresentação de um projeto bem elaborado, apontando ideias que possibilitariam contribuir na socialização e educação dos jovens, tal como promover uma formação do pensamento crítico, por intermédio da prática da Capoeira Angola e de seus elementos, dando ao secretário de educação a possibilidade de compreender que somente assim poderia acontecer uma transformação social nos jovens a serem atendidos pelo Projeto Bantu.

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Passaram-se dois meses e eu não tinha conseguido nenhum trabalho com o projeto, por isso resolvi buscar um emprego de serralheiro, para conseguir pagar o aluguel e ter como no mínimo comprar comida. Então, fiz mais uma rodada de entrega do projeto nas escolas, ao mesmo tempo em que eu espalhava o meu currículo de serralheiro. Após um mês trabalhando como serralheiro, fui convidado para dar aula na Casa Lar dos Jovens, organização sem fins lucrativos, fundada e coordenada por um grupo de mulheres alemãs e que atendia jovens em situação de risco, no Bairro Junqueira, periferia da cidade. Dessa maneira, fui até lá para organizar o processo de iniciação das atividades e ver qual era a proposta da organização, que me ofereceu na época uma ajuda de custo e uma cesta básica de alimentos, e, claro, eu fiquei muito feliz e aceitei. Na serralheria, o Sr. Ferlin, dono da serralheria, quis assinar minha carteira de trabalho como serralheiro e com um salário mínimo, na época, de R$580 reais. Sem titubear, recusei a proposta dele, já que minha grande vontade era dar aula no projeto, pois esse foi o meu objetivo de ter viajado tanto para chegar naquela cidade. Em relação à organização, combinamos de começar as aulas no dia 3 de julho de 2001. No dia 1 de julho, que por sinal é o dia do aniversário de minha filha mais velha, a Brenda Iris, um motorista embriagado atropelou-me em cima da calçada, próximo a um orelhão, quandod eu estava indo ligar para desejar o feliz aniversário à Brenda. A pancada foi tão forte que quebrou minha clavícula esquerda e, ao chegar no hospital, o médico disse que era necessário fazer uma cirurgia, mas eu me recusei, devido ao compromisso que tinha de iniciar as aulas na Casa Lar dos

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Jovens. Assinei o documento, recusando o procedimento cirúrgico e aceitei ser engessado para que fosse possível ministrar a aula. No dia 3 de julho, pela manhã, eu estava lá, pronto para dar a aula. Havia construído uma metodologia corporal baseada na minha condição fisica. Assim como fortalecer minha autoestima, pensando que ali era só um momento e que ia passar, isso seria uma estratégia e uma possibilidade de superar os meus limites físico e mental, em uma experiência participativa dos meus próprios conceitos metodológicos, que buscavam motivar os jovens a também vencerem os seus limites de forma plena. Em um determinado dia, um jovem, ao perceber os meus movimentos limitados, falou: “Você está machucado professor?” E eu preocupado em não perder aquela oportunidade rapidamente respondi que não afirmando que estava bem. Ao mentir, tive que buscar fazer outros movimentos para atender aos anseios dos alunos, que olhavam, primeiramente, para Capoeira apenas pelos seus movimentos acrobáticos, devido a espetacularização da arte, invisibilizando os seus outros elementos e as suas subjetividades. Aliás, eu acredito que esses fatores tanto são desafiadores como fortalecedores, já que o educador de Capoeira, o qual trabalha com a Capoeira Angola, necessita, em momentos como esses, utilizar métodos que viabilizem a conquista do educando, através de atividades lúdicas e performativas, para manter a motivação do grupo. É importante frisar que tudo isso só é possível com a vivência e o tempo. Com o passar do tempo, percebi que minha atitude foi proveniente do desespero, por causa dos meses sem conseguir

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nenhum trabalho na cidade, além da minha insegurança e inexperiência. Dentro das possibilidades e do momento, atrelado aos estudos e às experiências vividas, compreendi que o conhecimento de um educador perpassa pelo mesmo processo da vida e é traçada por estágios ou níveis. O primeiro estágio é o factual ou o da realidade de cada um, assim como nas vivências das rodas de Capoeira ou momentos ao lado dos mestres, mas podemos também aprender muitos nas aulas ou treino, por meio das repetitividades dos movimentos, as quais permitem que tenhamos uma melhor compreensão das nossas capacidades física e motora. O segundo estágio se dá mediante a uma revisão crítica dos movimentos e da concepção lógica do jogo ou da aula, a partir da sua relação subjetiva com o outro. O terceiro estágio se dá com base na interpretação dos símbolos e códigos inseridos na Capoeira Angola e nas vertentes culturais de matriz africana, mas nesse caso específico eu falo dos significados dentro da dinâmica da Capoeira Angola, e sua interfaces na criatividade. Diante disso, nasce a compreensão do papel do educador, entendendo que é necessário p e r c e b e r o momento no qual possivelmente poderá colocar ou tirar determinados símbolos ou códigos, por compreender a relação com o tempo de cada aluno(a). Ainda, vale a pena ressaltar que o papel do educador, ao exercer sua função, é de cuidar do outro (a) como um processo de troca mútua. É engraçado como todas experiências que vivi na Bahia, assim como as que vivi ao chegar em Lins, possibilitaram-me ampliar o meu olhar sobre as diferentes necessidades que envolviam cada aluno (a), já que eu nem sabia que Lins iria me proporcionar uma série de possibilidades com o Projeto

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Bantu e na minha vida pessoal. Como já mencionei anteriormente, todo o processo de crescimento necessita de tempo e vivência, o José Antônio, de Lins, era a cidade das escolas, o lugar ideal para eu fazer o meu trabalho, não sabia que em Lins também seria a minha escola, que ao aplicar o método, eu aprendia a aprender quando eu ensinava, tive a oportunidade de dar aula em quase todas as escolas municipais da cidade, as crianças as quais tive contato, através dessas escolas, possuíam diversas particularidades e diferentes formas de vulnerabilidades que me exigiam bastante flexibilidade nas aulas para atender a necessidade de cada um, mas como o projeto já tinha o seu objetivo do que gostaríamos de atingir nas crianças, em todos os momentos em que eu mudava as atividades, antes, durante ou depois, eu avaliava se aquela mudança iria ajudar o(a) aluno(a) a melhor lidar com suas vulnerabilidades e como poderia obter da Capoeira Angola o alimento necessário para lhe ajudar a avançar. É importante ressaltar que os desafios foram constantes até porque

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eu trabalhava no mesmo dia com crianças e adolescentes de diferentes realidades sociais. No período da manhã, eu dava aula nas Escolas Municipais de Educação Infantil (EMEIs); no período da tarde, eu dava aula nas escolas particulares e à noite, o trabalho era feito com jovens em conflito com a lei, na FEBEM – Fundação do bem-estar do menor, a atual fundação casa, é nítido perceber que realmente muda muito a necessidade de cada lugar, diante disso, eu buscava preparar a atividade de cada grupo de acordo com a complexidade dele. Com as crianças, eu buscava trabalhar bastante a parte lúdica, com dinâmicas e brincadeiras, por meio do uso da música, do ritmo e dos movimentos, com bastante atenção ao tempo de cada atividade para manter a interatividade dos alunos, isso por serem crianças e, por isso, ter um nível bem baixo de atenção permanente em atividades de longa duração, então, em todas as aulas, eu utilizo três ou mais elementos dentro da atividade. No decorrer da minha jornada nas EMEIS, passaram centenas de crianças nas quais era nítido ver o trauma, por conta da condição social que viviam, em estado de extrema pobreza, além de serem alvo de várias violências física e mental, sendo a primeira a negligência do estado em relação a eles e, de tabela, vem a falta da alimentação; pais violentos por consequência do uso excessivo de álcool ou drogas; a ausência do pai, que na sua maioria estão presos e, às vezes, nem o viu nascer. Portanto, após terem sofrido diversas formas de violência, espera-se que essas crianças também venham reproduzir a violência, no âmbito escolar, por ser o espaço no qual as mesmas passam uma boa parte do seu dia.

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Quando as crianças chegavam na atividade, embora sendo ainda tão jovens e calejadas de decepções da vida, algumas criavam um certo tipo de resistência para participar, por conseguinte, eu buscava fazer uma atividade de forma lúdica com o objetivo de criar um processo de transição relacional entre nós de forma harmônica. Desse forma, iniciávamos em círculo em uma concepção do Xirê3, girando, cantando e, de mãos conectadas, começávamos nossas conexões e fortalecimento. Em seguida, o corpo entra como linguagem direta, com as frustações e tristezas trazidas do cotidiano e substituídas pela felicidade na realização dos movimentos, na celebração dos encontros, que possibilita o sentimento de pertencimento e fortalecimento mútuo. Ao longo desse processo introdutivo foram necessárias várias experimentações para perceber o que era mais impactante nas crianças, logo, tive que estudar as formas de iniciar a aula, seja com a música, por intermédio do elemento cantoria, ou com movimentos, e, dentro desse processo circular, pude apreender a entrega de cada um(a) para cada tipo de elemento na atividade, assim como conhecer as suas subjetividades e individualidade na expressão dos movimentos, além de analisar como cada um(a) absorvia e relacionava o seu corpo em sintonia com o movimento. Ainda, o mais interessante desse processo é que levam algumas semanas, sem ter definido o caminho da aula, para os professores da escola, isso era meio confuso, porém, para nós, que pensamos no aprendizado a partir dos

3 Xirê é uma palavra Yoruba que significa roda, ou dança. A FESTA, a invocação do intelecto que gira sobre o mesmo no redemoinho do mundo.

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Valores civilizatórios afro-brasileiros, o processo de conquista das relações é fundamental, pois juntos podemos encontrar uma língua que melhor dialogue com todos, contribuindo para a redução dos conflitos e a compreensão do tempo enquanto melhor aliado ao aprendizado e às descobertas. Com o passar do tempo, a direção e os professores da escola perceberam que a metodologia estava contribuindo com o desenvolvimento social e psicomotor das crianças. Assim, se inicia uma parceria muito importante no processo de empoderamento das crianças. Naquela época, eu trabalhava sozinho no Projeto Bantu e, desse modo, além de planejar e ministrar as aulas, eu passei também a participar das reuniões de professores, as quais me permitiam ter informações sobre o desempenho e o comportamento das crianças nas salas de aulas. Além disso, o mais interessante é que eu também conseguir mudar a ideia do castigo, então, todas as vezes que os alunos brigavam na escola, a professora me passava a informação e eu conseguia dialogar com eles na minha aula. Por conta do respeito que os mesmos tinham por mim, eu passei a dizer que todos os momentos os quais eles brigavam, eu também brigava, mesmo não estando na escola, e, quando isso ocorria, era devido a um mal comportamento meu, assim eu trabalhava neles a ideia do cuidado mútuo, o qual eu tinha por eles e precisava que também tivessem por mim, não deu outra, a redução de brigas foi o resultado. Além disso, no decorrer do tempo, foram surgindo pequenas lideranças em cada turma e, como foi crescendo o número de turmas, eu passei a usar alguns alunos para me ajudar na organização das aulas e para me ajudar a dar aula, toda semana

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isso era revisado, assim permitia que todos participassem de forma rotativa. Destaco que era nítido o quanto o projeto levou harmonia para escola, ainda, a notícia foi se espalhando e mais escolas pediam pelo projeto, houve uma época que eu tive 6 aulas por dia só nas EMEIs. Naquela época São Paulo, estava chegando a febre do crack, onde ficou conhecido numa região da capital como cracolândia, e como sabemos que somos uma sociedade que gosta de seguir modelos de cidade grandes, então Lins, foi afetada com a situação do crack também onde um dos bairros periféricos da cidade se tornou a cracolândia de Lins, e muitos jovens foram se envolvendo de forma descontrolada, o quee exigia uma ação emergencial dos poderes públicos, porque estava tirando a tranquilidade da cidade, jovens usando crack e assaltando as pessoas na luz do dia. Aí o então secretário de educação na época, compreendeu que era necessária a inserção de atividades socieducativas na grade curricular, para atender as crianças, então iniciamos um trabalho com a Capoeira Angola, através da pedagogia do Projeto Bantu, com o intuito de contribuir na redução daquele problema social ali instalado pelo uso do crack. Nós sabemos que não é de agora que a população preta vive em estado de vulnerabilidade e por isso se submetem a situações como essa com o crack a séculos. Para a visão do então secretário da época professor Dr. Antonio Folquito Verona, um admirador e contemporâneo do Paulo Freire, me perguntou se eu conhecia o livro a pedagogia do oprimido, e que baseado naquele livro ele entendia que a Capoeira Angola, poderia contribuir muito com aquela

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comunidade. Na maioria dos casos, a cultura popular só entra nos programas educacionais por via de atividades relativas a datas especiais como o mês do folclore, o dia da consciência negra, as festas juninas, etc. Se limitando a uma abordagem superficial e caricaturada de seus elementos, não se constituindo enquanto um saber legitimado e valorizado pela cultura escolar. Nesse caso, eu trago como reflexão o provérbio africano que diz: “Se quer entender o final preste atenção no começo”. Desse modo, eu inseri a Capoeira Angola na educação básica infantil e, sem prestar atenção ao começo, acreditando que teria êxito no final desse ciclo infantil, assim permitiria uma adolescência mais saudável e responsável, pois essas são ações importantes no processo de formação do senso crítico daquelas crianças. Aliás, durante o período em que o projeto atuou, conseguimos ver a redução de jovens nas drogas, e muitos deles se tornaram bons jovens angoleiros (a), no decurso da minha jornada nas escolas municipais, foram atendidas 350 crianças por ano. Ainda, em decorrência do aumento no

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número de escolas e de jovens, fui percebendo a necessidade da ampliação das atividades pedagógica, consequentemente, fui estudando melhor os movimentos para a partir deles desenvolver um processo mais lúdico. Sempre tive o cuidado com o modo como interagimos com os movimentos e a ludicidade, enquanto forma de brincadeira, no entanto, sem tirar a identidade dos movimentos, assim, entre uma brincadeira e outra, os jovens e as crianças também aprendem o jogo da Capoeira Angola. Dentro desse processo é que se contribui na forma de olhar para Roda de Capoeira, como a sua microcomunidade, um espaço em que a ideia do comunitarismo e cooperativismo é parte fundamental na relação de todos, tal como já se inicia no processo de cantar, tocar e jogar, através da doação de todos (a), logo, no interior da nossa pedagogia, tudo isso é utilizado, visto que são elementos importantes na formação de cidadania. Na finalização de todos os anos, realizamos um encontro, intitulado Erês onde a ginga é como celebração das conquistas no ano em que passamos juntos. Este evento também foi um elemento motivador das crianças, pois juntos criamos comissões para organizar a festa, nesse sentido, elas pensaram na programação, além de alguns deles também se tornarem convidados especiais, uma vitamina perfeita para a autoestima. Assim se fecha o ano com o gosto de quero mais, já que no período das festas de fano não temos atividades e só retornamos três meses depois, por isso, o evento teria que ser algo que eles ficassem ansiosos para retorna as atividades, como não tínhamos acesso a redes sociais, era difícil manter o contato com os alunos ou familiares.

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Como citei anteriormente, Lins passava por um momento difícil, os jovens se envolviam com drogas e entravam em conflito com a lei, praticando juntos e cometendo atos violentos na comunidade, é importante dizer que muitas vezes os furtos eram feitos em supermercados onde eles roubavam alimentos para comer ou para levar pra casa no intuituto de ajudar a familia, mesmo sob efeito d o uso do Crack. Contudo, um número muito baixo, por volta de três ou quatro jovens, fizeram parte do projeto e não conseguiram aguentar a pressão do sistema e terminaram se envolvendo no mundo das drogas e, pela ironia do destino, terminei por reencontrá-los dentro da Unidade da FEBEM, que tinha recentemente se instalado na cidade, inclusive eles puderam ser meus assistentes nas aulas que iniciei nas unidades, daquela instituição, vejam como o ciclo se fecha, algumas vezes, nem sempre é como gostaríamos ou planejamos. Como eu disse no início, a cidade de Lins foi uma escola, a todo vapor, na minha formação como educador social. Na medida em que fui experimentando e descobrindo melhores formas e caminhos para atender às necessidades das crianças, fui também descobrindo as minhas necessidades de mudanças e descobertas, durante todo o processo, os preceitos de aprender a aprender e aprender ensinando foram e sempre serão, ao meu ver, o melhor caminho para a capacitação de um educador social, de Capoeira, desde que ele (a) seja e esteja atento aos ensinamentos enviados pelos alunos (a) a partir do comportamento e da forma que cada um deles se relacionam conosco. Há outro provérbio africano que diz: “O conhecimento sem sabedoria é como água na areia”. Eu concordo com isso , porque só a sabedoria vai fazer com que o educador valorize e acolha os ensinamentos passados

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e obtidos na construção da relação com seus alunos (a). Aliás, esses mesmos conhecimentos serão utilizados por eles em seu dia a dia, dentro e fora das aulas. Todavia, para além desse conhecimento adquirido na relação com os jovens, também fui entendendo melhor como trabalhar no sistema educacional e, por intermédio das minhas participações nas reuniões de professores eles conseguiram perceber a necessidade da avaliação das minhas atividades e também da introdução de relatórios sobre as mesmas, o qual permitia que a coordenação pedagógica da escola se aproximasse da minha atividade e conhecesse o objetivo dela ou como poderíamos contribuir na formação daquelas crianças. Além de ser uma atividade recreativa, considerada sem nenhum valor educacional ou como coisa de vagabundo, a falta de registro era é um problema. Então, quando começo a documentar todo o processo, surge uma visibilidade e respeito para a Capoeira, assim como para o projeto. A educação infantil é perfeita para quem está iniciando nessa área, dado que mesmo as crianças sendo agitadas, ainda, permitem criar metodologias de acordo com o grupo de alunos e, muitas vezes, nos deparamos com situações as quais realmente nos tira do normal e ficamos paralisados (a) sem saber o que fazer, por isso, chamo a atenção para a teoria do silêncio. Naturalmente, temos o silêncio como um estado de ignorância, ou negligência, mas, na verdade, o silêncio, em determinadas situações, tem um poder de comunicação maior que a voz.4

4 “O silêncio e visto como forma banal a ausência da fala, o silencio e contudo presença plena de significações, ou seja uma forca complexa, que questiona a própria linguagem em seu uso social”.Marina Lara de Moraes

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Na metodologia que eu desenvolvi no projeto bantu, utilizo muito o silêncio, principalmente em momentos de caos, em que todos os alunos resolvem falar ao mesmo tempo ou começam certas brincadeira no intuito de chamar a minha atenção. Eu me coloco em estado de silêncio até que eles mesmos comecem a dizer um para o outro um “calem a boca”, ”silêncio”, “preste atenção no mestre”, por exemplo. Ainda, foi exatamente em Lins que comecei a utilizar essa metodologia, já que normalmente minhas turmas eram de 35 a 45 alunos por aula e tinha momento que era difícil controlar os alunos, e, gradativamente, fui introduzindo o meu silêncio e percebi que estava funcionando, logo, com o passar do tempo, isso foi se amadurecendo como é tudo na vida. Desde o momento em que eu desenvolvi a metodologia do silêncio, percebi que ela evita o confronto direto com as crianças, devido ao grande número delas. A criança e o adolescente em situação de vulnerabilidade t r a z e m um sentimento de rejeição, um sentimento de perda, em consequência de sua história familiar. Muitos deles são filhos de mãe solteira e você encontra muitas ausências em suas vidas. E, quando eu faço o silêncio, eles entram em contato com essa perda, desse modo, reagem rápido também com o silêncio ou com o pedido para parar com a algazarra, com a zoada, assim voltava o controle da turma e, aí, abre-se uma brecha para o processo de diálogo e de retorno às atividades. Além disso, em Lins, eu também utilizei essa metodologia dentro da FEBEM e em vários momentos, os jovens, que estavam ali cumprindo um regime de reclusão por ter tido conflito com a lei, se apresentavam como pessoas perigosas,

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fortes ou difíceis de lidar. Diante disso, eu ficava observando, parado, olhando para ver qual era o próximo passo a ser dado. Isso funcionou, inclusive, em alguns momentos, bem tensos, nos quais o meu silêncio afetava, eles me perguntavam se eu estava bem, assim nós podíamos começar um diálogo. A minha experiência dentro da FEBEM durou de três a quatro anos e, nesse tempo, eu pude criar metodologias para trabalhar com jovens dentro da instituição. Quando eu chegava na unidade, os jovens não queriam fazer nenhuma atividade, aliás, não queriam se envolver com nada. Apesar disso, uma das coisas que eles gostavam de fazer, por ser livre e por não ter nenhuma regra lógica, era jogar bola. Naquela época, eu ganhava por hora e tinha que produzir, então, eu olhava o que estava mais próximo deles e tentei adequar à minha atividade de Capoeira Angola. Desse modo, eu criei uma metodologia da ginga da bola, na qual eu colocava todos para gingar com a bola no centro, um passava a bola para o outro e não podia dar dois toques na bola e esse foi um exercício que eu aprendi, já que eu jogava bola, fui um jogador semiprofissional, logo, eu aproveitei essa experiência e, dali, eu ia acrescentando a negativa, na subida da negativa ele tinha que passar a bola. A pessoa que estava jogando não podia perder a bola, não podia deixar a bola passar. Assim, fui acrescentando movimentos básicos que possibilitavam uma curiosidade e reflexão aprender e ao fazer. Destaco que essa foi uma metodologia que surgiu para mim pela lei da sobrevivência, pois eu tinha que dar aula, eu tinha que cumprir com minha hora, porque eu tinha um supervisor que ficava ali observando as atividades e a metodologia começou a funcionar

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[...] como o projeto já tinha o seu objetivo do que gostaríamos de atingir nas crianças, em todos os momentos em que eu mudava as atividades, antes, durante ou depois, eu avaliava se aquela mudança iria ajudar o(a) aluno(a) a melhor lidar com suas vulnerabilidades e como poderia obter, da Capoeira Angola, o alimento necessário para lhe ajudar a avançar.

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muito bem. Posteriormente, eu fui acrescentando o rolê e outros movimentos, visto que essa se tornou uma metodologia muito eficaz, porque os alunos se envolveram.

“Não é possível refazer este país, democratizá- lo, humanizá-lo, torná-lo sério, com adolescentes brincando de matar gente, ofendendo a vida, destruindo o sonho, inviabilizando o amor. Se a educação sozinha não transformar a sociedade, sem ela tampouco a sociedade mudar”. (FREIRE, 1996, p. 196).

Algumas vezes, eu entrava na unidade, no pavilhão, onde tinham vários blocos que eram divididos pela periculosidade dos internos. As informações sobre o meu trabalho eram transmitidas e teve uma vez que um interno perguntou : “E aí, tio, vai ensinar a gente hoje?”. E era um pavilhão que eu não tinha ensinado ainda, porque eram jovens mais difíceis. Se na Escola Municipal em Lins eu trabalhava com 35 a 45 alunos, na FEBEM era uma turma bem mais reduzida, eram quatro ou cinco, por causa do histórico desse jovens. Inclusive, eles apresentavam muita dificuldade de foco, de atenção, então, tínhamos que desenvolver atividades pedagógicas próprias. Com a música, eu tinha que fazer a mesma coisa... Eu comecei a brincar com a música a partir da bola, depois eu ia tocando e andando, por fim, chutando a bola.

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Dessa forma, criei uma metodologia junto com a musicalidade que aguçava bastante a psicomotria dos participantes, além da questão do reflexo e da atenção. Em Lins, eu dava aula pela manhã nas escolas municipais e, nas periferias, para crianças e adolescentes em extrema vulnerabilidade. No período da tarde, eu dava aula em escola particular em Lins, atendendo uma população muito mais privilegiada, cujo comportamento não dava muito trabalho e, à noite, eu dava aula na FEBEM. Diariamente, eu fazia esses três caminhos e cada grupo era uma metodologia diferente, porque eles tinham dificuldades, histórias e perfis diferentes. Tinham um princípio de relação de respeito e desrespeito diferente. Esse tratamento diferenciado a cada uma dos públicos é o que eu chamo hoje de competência cultural. É a competência de cada individuo. A forma com ele se porta nas relações do que eles constroem e como você respeita isso e dialoga com isso. E essa experiência na cidade de Lins nesses três mundos foi interessantes, pois eu tive que criar metodologias distintas para grupos distintos. Na escola particular, eu ensinava a forma como a Capoeira era tratada por ser uma práti- ca de resitência e politica social, além de terem a Capoeira como base fundamental para a tole- rância e o respeito. Não é igualdade, mas o res- peito ao outro, isto é, à epiderme distinta. Dessa maneira, eu produzia essa atividade para a esco- la particular, contudo, com a ideia de atraves- sar a ponte do racismo, enquanto sensibilizava essas crianças para lidar com as crianças pretas. A experiência em Lins foi produtiva para que eu desenvolvesse essa metodologia da Capoeira como socioeducativo, como eu já disse, foi uma escola, um processo de formação. Além disso, também

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construiu a minha visão sociopedagó- gica com a Capoeira Angola. Por fim, o ciclo em Lins se encerrava, o trabalho foi crescendo e tive a necessidade de busca novos desafios. Então, fui à cidade de São Paulo e comecei a trabalhar no Projeto Escola Aberta, com a Capoeira Angola para as crianças de periferia da Vila Madalena. Embora fosse um bairro de classe média, existe um contraste com a população preta que vive à margem do bairro. Nesse momento, aproximadamente em 2004, era o início da Lei 10.639 que determina a a difusão da cultura e história da África nas escolas, e também fui trabalhar na FEBEM Tatuapé. O interessante é que a metodologia de Lins precisou ser aprimorada, porque as turmas em São Paulo eram maiores. A história do jovem dentro da FEBEM era um pouco mais densa, mais robusta, por causa da sentença que eles sofreram por conta com o conflito com a lei. Por isso, o diálogo tinha que ser mais firme, uma vez que eles eram quase adultos, com idade em torno de 17 anos, e, em Lins, eu trabalhei com jovens de 14 anos. Os jovens de Tatuapé tinham característica adulta, em razão disso, a brincadeira já não fazia mais sentido para eles. Assim, eu comecei a pensar uma maneira de como trabalhar a bola. Eu trabalhava em dupla, que era gingando e entrando em contato com a bola. Aí, eu pedia para fazer a negativa. Aliás, foi uma metodologia mais dura, muito exigente até para dialogar com o comportamento desses jovens. Surgiu a necessidade de um processo de pesquisa dentro da FEBEM. Naquela época, estava acontecendo a difusão do Rap e do Hip Hop, eu tinha que dialogar com eles

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sobre a questão racial através da música. Então, eu mostrei para aqueles jovens como nós já vivíamos em um processo de enjaulamento dado pela condição racial. Para tal, trouxe uma reflexão da prisão a partir da escravidão, trabalhei isso para que eles abrissem os olhos e para não lidar com coisas erradas. Nesse sentido, eu promovia a ideia de quebrar esse ciclo da colonização que vivemos, ainda nos tempos de hoje. O ciclo de São Paulo foi curto, durou um ano e se encerrou com a minha viagem para o exterior, no entanto, foi um momento de aprimoramento daquilo que aprendi em Lins.

“Se quer saber o final, preste atenção no começo” Provérbio africano

A chegada à Austrália Antes de iniciar o trabalho quilômetros além mar, na Austrália, para onde eu fui convidado para realizar um workshop. O Mestre Val Boa Morte, que morava na Austrália, foi quem me apresentou a esse país. Deixo aqui para ele o meu sentimento de gratidão, e desejo sucesso em sua jornada. Que Olorum Modupé. Voltei a fazer outro workshop, enquanto convidado por um grupo de admiradores da Capoeira Angola, então, fiquei por um mês no referido país. Em outra ocasião, conheci Jeannie Ocarou, que me convidou para trabalhar com refugiados, uma

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vez que ela sabia que eu tinha um projeto social no Brasil. Inclusive, eu disse a ela que somente ficaria na Austrália se eu desenvolvesse um trabalho social, porque a Capoeira para mim só faz sentido a partir da sua concepção social. Logo, meu projeto foi traduzido para o inglês, com muito cuidado, para não perder a característica linguística do projeto e a tradução foi feita pela Juliana Lobo. Quando eu cheguei à Austrália, em 2007, comecei a trabalhar na STARTTS, que é a organização que trabalha com crianças e adolescentes refugiados, inicei um novo ciclo em que eu passo a viver coisas as quais eu nunca havia experimentado antes. Durante a apresentação do projeto à STARTTS, me pediram que ministrasse uma aula do mesmo jeito que eu fazia com as crianças para os funcionários daquela organização. Essa era uma coisa que eu nunca tinha feito na minha vida. Assim, começou uma experiência nova, um novo ciclo, em um país diferente, com uma língua diferente que eu não falava. Paralelo a isso, eu começei a trilhar um projeto com aborígenes, que são os povos originários da Austrália, os quais também vem de um processo de colonização, de perda de território, de identidade, além de viverem uma série de mazelas que os desconecta da comunidade. Também apresenteei o projeto para algumas organizações que trabalham com esse público. Ao começar a trabalhar com esses jovens a Capoeira Angola, na qual eles se auto-observam, pude perceber que era necessária uma mudança de comportamento para a redução do uso do álcool, da violência., etc. As atividades começaram em

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algumas cidades de Sidney e, posteriormente, um aluno me convidou para ir a uma comunidade no deserto da Austrália. Lá, ao chegar nessa comunidade eu usei o princípio da senioridade da própria Capoeira Angola, isto é, não cheguei ao lugar como se eu soubesse de tudo, desse modo, eu pedi permissão ao mais velho, o Elder, e informei quem eu era para a comunidade. Tal experiência foi fantástica porque o aborígene tem um corpo excelente para fazer movimentos. Eles dançam as danças dos animais e tem os movimentos avançados. Então, comecei um trabalho que foi muito proveitoso nessas comunidades. É relevante apontar que o objetivo era que eles trabalhassem com a Capoeira Angola enquanto um meio para questionar a própria posição na sociedade. Eu aprendi muita coisa. A questão do olhar, por exemplo, dado que esses sujeitos tem uma forma de se comunicarem através do olhar. Eu fui compreendendo que a verbalização não é o forte deles, já que se comunicam por meio do gesto. Certamente, foi necessário desenvolver uma forma de comunicação com eles e fui complementando isso ao longo do tempo na minha metodologia. Aliás, entre eles, tem uma separação grande entre meninos e meninas, mas ambos poderiam fazer a Capoeira Angola. Por uma questão cultural, eles tem o Men Business e o Woman business. Tudo muito separado, embora ambos sejam valorizados só que em momentos diferentes. Então, houveram vários momentos que nossas atividades tiveram que parar por uma semana, ou por cinco dias, porque uma jovem ou um jovem tinha que ir para o mato para caçar, para aprender, um ritual da passagem para a vida adulta.

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Retornando à Sidney, comecei um ciclo de atividades com os refugiados. A primeira população de refugiados que eu trabalhei foi com pessoas do Timor Leste. Eles sabiam que eu não sabia inglês e deram-me essa oportunidade, porque as pessoas falavam português e Tetun. A experiência foi interessante, porque a Capoeira era algo novo, por isso, eu tinha que começar a produzir narrativas para esse público e desenvolver a atividade baseada na aproximação dessa prática com a questão cultural deles. Também fiz uma pesquisa sobre a sua cultura, buscando analogias entre ambas culturas. Algumas crianças haviam nascido na Austrália por conta da mudança brusca da chacina do Timor Leste. Eles fugiram e foram repatriados na Austrália. Sem ter nenhum contato com a cultura do Timor Leste, a pesquisa era essencial para aproximálos a partir da Capoeira Angola. Assim, eu consegui fazer a ponte da Capoeira Angola com a sua própria cultura. Inclusive, era uma ponte dupla já que eles também estavam conhecendo a cultura Australiana, então eu aprendia a cultura deles enquanto aprendiam a Capoeira. No decorrer de sete anos, conseguimos desenvolver nos jovens uma relação muito interessante com a Capoeira. O trabalho foi se aprimorando e surgiu a necessidade de adentrar na primeira escola, a Cabramata High School. Essa escola tinha cerca de sessenta jovens sudaneses em extrema condição de conflito, a escola já estava tendo dificuldades de lidar com essa população. Até porque Cabramata era um bairro asiático, tradicionalmente, e, quando chegaram os africanos, começou um grande conflito étnico, o qual se alastrou para dentro da escola.

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[...] só a sabedoria vai fazer com que o/a educador/a valorize e acolha os ensinamentos passados e obtidos na construção da relação com seus/suas alunos/as.

Quando eu cheguei lá, o meu trabalho funcionou como um elo de ligação para dar uma harmonia a esse espaço. Foi um processo muito desafiador, uma vez que esses jovens africanos chegavam com um trauma em um nível bem avançado que afetava bastante o comportamento deles. Essa foi a segunda experiência na qual eu tive que trabalhar com refugiados africanos. Anteriormente, eu havia trabalhado com jovens refugiados africanos na Europa. Nessa experiência, eu fui desenvolvendo métodos e formas de conter esses jovens,no intuito de reduzir os stress, desenvolver a autoestima, de produzir uma relação identitária com a Capoeira, já que a mesma é de origem africana. Eu consegui dialogar de maneira bem interessante e esses jovens foram se formando como pessoas a partir desse aprendizado. Nesse período, eu tinha o apoio de uma aluna que era italiana, a Chiara Ridolfi. Eu contei muito com sua presença. Como tinham várias meninas envolvidas com essa atividade, a Chiara aproximava dessas meninas.

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Eu percebi que as metodologias criadas no Brasil tinham uma eficácia muito grande com esses jovens também, porque eles gostavam de futebol e se identificavam com o Brasil. Também tive que criar outras metodologias, por exemplo, com a música. Eu pedia para que eles fechassem os olhos e tocassem o instrumento para uma imersão, a partir do instrumento, com a musicalidade. Nós dialogávamos para saber como todos estavam se sentindo e esse método era importante para entrarmos em contato com os seus sentimentos e perdas. Ainda, esses jovens cresceram em campo de refugiados, perdendo um pouco a relação consigo mesmos. Logo, essas metodologias era uma forma de acessar as necessidades deles e de promover a conexão com a Capoeira Angola. Nesse sentido, essa era uma forma de aplicar os valores civilizatórios afro-brasileiros, principalmente a circularidade, a qual era uma base para que essas pessoas tivessem uma conexão com a Capoeira enquanto algo que lhes fazia ir além dos movimentos, mas também como algo reflexivo. Ainda em Sidney, vimos a necessidade de criar metodologias que fossem aplicadas em acampamentos com jovens. O camping acontecia uma vez por ano, durante três a quatro dias tínhamos oficina de caxixi com o objetivo de desenvolver a calmaria. E fomos inserindo a produção do berimbau como um trabalho coletivo com a madeira. Nesse processo, eu perguntei para eles se em seus países havia esse instrumento de corda. Eu fiz com que eles perguntassem para os mais velhos qual era o nome dado ao berimbau, proporcionando

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o contato com os seus mais velhos e com a sua cultura. Era um trabalho muito eficaz na redução do trauma. Aos poucos, íamos recebendo os resultados alcançados ao longo do tempo. Além disso, o acampamento era um momento de conexões entre nós, os jovens construíam relações de conciliação entre jovens de diferentes países, algumas vezes, eram rivais. Diante de cada ciclo finalizado e no fim de cada ano, eu e Chiara Ridolfi, dialogávamos para ter uma noção do que estava sendo implementado, visando que tivéssemos um balanço dos resultados positivos. Em 2007 e 2008, havia um fluxo intenso de africanos chegando a Austrália, o que acirrava o clima de xenofobia nesse país. Por conseguinte, tínhamos, nesse período, o trabalho dobrado: realizávamos não só uma atividade a qual dialogasse com a condição traumática daquele jovem, mas que também fosse uma forma de trabalhar uma relação positiva desses jovens na sociedade. Retomamos a um processo sociopolítico de construção da identidade desses jovens refugiados na Austrália. Além do mais, comecei a desenvolver, no decorrer das aulas, formas de reencontro deles com a própria cultura porque esse era um momento em que estavam tendo acesso a novas prática culturais. Na Austrália, quando uma pessoa chega, é levada para a escola, onde aprende a língua desse país. Em casa, por sua vez, estão os pais que, por causa da idade, têm dificuldade de aprender a língua inglesa. As crianças, enquanto crescem, desenvolvem o inglês e perdem a língua nativa. Isso causa um conflito relacional entre pais e filhos a ponto desses jovens não

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compreenderem mais a língua e perder a vontade de ser quem eles são. Então, eram feitas atividades para que esses jovens se reconectassem com a própria cultura. Diante do contexto, eu comecei a fazer uma pesquisa das músicas de cada país, comprava um CD e dava para esses jovens de acordo com o país de origem. Dessa maneira, fortalecia a nossa relação. Ao trazer a Capoeira, eu mostrava como ela me reconectava com o lugar de onde eu venho, com quem eu sou, com minha existência e minha ancestralidade. Eu dialogava com eles sobre a música, a história da música para que se conectassem ou encontrassem ferramentas para dar uma direção em suas vida. Além de ensinar a música, eu também contava o que a música dizia, assim era preciso que eu traduzisse os corridos e as músicas. Dentro desse processo, surge a necessidade de informar às escolas, às organizações sobre o excelente desenvolvimento do trabalho associado à prática. Juntamente com Chiara Ridolfi, produzimos um material sobre os movimentos e suas subjetividades a partir do trabalho psicosocial e socioeducativo através da Capoeira. Com isso nos escrevemos detalhadamente o que um dos movimentos utilizados na aula possivelmente poderia produzir nos jovens como linguagem de corpo. Nós trabalhamos quatro anos para fazer um livreto. Todas as informações que eram pertinentes por trás daqueles movimentos e como devemos compreender o diálogo entre o saber popular, carregado de símbolos e significados, de valores pautados na oralidade, circularidade, ancestralidade, na musicalidade, no respeito, dentre tantos

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outros valores inerentes à Capoeira Angola, as possíveis interfaces com o outras formas educacionais é fundamental dado o seu papel e importância. Esse estudo me permitiu compreender melhor todas a metodologias que eu desenvolvi, e ainda desenvolvo, no Brasil. Na Austrália, eu busquei desenvolver uma linguagem técnica para aprimorar a minha metodologia e esse trabalho permitiu o desenvolvimento do conteúdo desse projeto. Por consequência, eu trouxe outros elementos para a Capoeira além da bola, assim, durante esse processo de estudo, eu fui entendendo esses movimentos como o rolê, o caranguejo, por exemplo, e o que eles poderiam produzir nas crianças. Aliás, tem sido muito interessante esse processo transitório para mim, por meio da cantoria e do instrumento. Logo, vai-se dialogando com as necessidades e a Capoeira Angola possui instrumento adequados para lidar com os traumas. Algumas vezes, não com a própria Capoeira Angola, mas a partir da separação de cada uma de suas fases . Quando eu trabalhei com muçulmanos, houve uma série de ocasiões em que foi necessário realizar adaptações, já que no Ramandam não se podia fazer movimentos físicos, mas as aulas tinham que acontecer. Ainda, precisávamos produzir uma atividade que não fosse conflituosa com o Ramadan. E, a depender da linha do Ramandam, tinham meninas que não podiam fazer movimentos, contudo isso não significava que elas não pudessem fazer Capoeira. Havia muitas jovens que permaneciam na música, sem fazer movimentos. Certa vez, uma delas fez uma consulta aos seus mais velhos pedindo autorização para fazer os movimentos e conseguiu. Então,

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conquistávamos esse público a partir da musicalidade. No decorrer do processo, o projeto foi crescendo e tivemos a necessidade de dialogar com o comportamento da criança e do jovem, porque começamos a trabalhar com jovens do Oriente Médio, Iraque e Afeganistão, mais uma nova cultura, outra realidade. Por conseguinte, tivemos que produzir conteúdos a partir da prática para esses jovens, os quais tinham uma resistência em praticar a Capoeira. Nessa situação, eu fiquei pensando o que conectava esses jovens à sua cultura. Por isso, eu fiz novamente pesquisas e fui descobrindo que o pandeiro é árabe e foi trazido pelos portugueses para o Brasil. Quando apresentei o pandeiro, eles se identificaram. Isso seria o processo de conquista na construção de nossa relação, entre aluno e mestre, mostrando para eles que a Capoeira, assim como no Brasil, tinha conexão com a cultura deles. Esse processo possibilitou a construção de um novo ciclo no trabalho já que eles eram o primeiro grupo de jovens Iraquianos que eu ia trabalhar. Então, toda essa forma de reconhecer um elemento que nos conecte foi muito importante. Logo, fizemos vários cursos sobre como lidar com o trauma, como atender a cada jovem a partir do seu nível traumático. No decorrer do tempo, fiz um curso técnico de desenvolvimento social. Dentro do curso fui compreendendo melhor aquilo que eu apresentava como atividade socioeducativa. A partir de estudos com o movimento do corpo, eu aprendi muito como desenvolver o meu trabalho. Ainda, eu aprofundei o cognitivo dos jovens, dado que a minha atividade atendia a questão cognitiva.

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No que se refere à questão afetiva, quando se trabalha a questão traumática, o afetivo é algo muito particular de cada um. Dessa maneira, tínhamos que ter cuidado para atingir a necessidade do jovem em seu aspecto afetivo, para que o mesmo pudesse desenvolver a confiança no adulto e poder voltar a se relacionar com o adulto. Tudo isso eu não sabia antes. Eu desenvolvi à medida que eu lidava com cada público. A Capoeira é uma forte ferramenta para livrar os jovens da possibilidade do suicídio, pois permite que o jovem tenha um conhecimento de si mesmo. Então, a produção metodológica precisa ter em mente a necessidade, isso tem sido importante que cada grupo apresenta, principalmente se for com um público de refugiados, que abrange a questão étnica e racial. Eu fui caminhando, desenvolvendo metodologias e estudos, a fim de aprofundar o que poderia ser feito a partir da pedagogia. Diante dos resultados, o projeto foi ganhando um corpo extenso, atingindo novas áreas, o que exigiu uma nova roupagem, a necessidade de uma capacitação de pessoal para atender a nova demanda, por exemplo criar curso de capacitação, para a preparação dos jovens multiplicadores para que fossem desenvolvendo o projeto de acordo com suas capacidades, e sendo acompanhado para melhor entender as orientações necessárias para o desenvolvimento das atividades. Nesse contexto, nasce o intercâmbio internacional onde eu começo a preparar jovens para vir ao Brasil e conhecer projetos brasileiros. O intuito desse intercâmbio, o qual possibilitava que se vivenciasse uma experiência em outros países como o Brasil, é a aquisição de um novo olhar de mundo.

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É importante ressaltar que, quando esses jovens entram na Austrália, eles só tem documentos de entrada, não tem o de saída, assim, sabe-se lá o momento que esses refugiados permanenceriam nesse país, porque eles entram com visto humanitário, um visto de garantia de vida. A nossa primeira experiência foi levar dois jovens para Elice Springs, onde fica a maioria de aborígenes na Austrália. Ali, foi uma oportunidade de fazer com que os refugiados e os aborígenes pudessem fazer uma troca. Assim, além deles conhecerem os aborígenes, também deram aulas de Capoeira Angola pela primeira vez para as crianças nas escolas e, consequentemente, de comunidades remotas de aborígenes. Portanto, foi uma experiência rica para eles e para o projeto. Inclusive, naquele momento, estava sendo gravado o documentário: “Quem Realmente Somos”. Dessa forma, tivemos a demanda de filmar tudo o que aconteceu e essa experiência foi boa para ser registrada, quase foi gravado tudo. Aliás, foi interessante ver a emoção deles dando

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aula para as crianças das escolas, muito emocionante porque os alunos são pretos e foram chamados pelos aborígenes de irmãos. Tal episódio foi proporcionado pela Capoeira Angola que criou vínculos possíveis entre realidades distintas. Depois dessa atividade em Alice Springs, surgiu a oportunidade de participar em um evento na Nova Zelândia. Inicialmente, pensei que fos- se a oportunidade deles sair do país. Para levá-los para Nova Zelândia, conseguimos arrecadar uma verba e, ao chegar lá, foi incrível porque da Aus- trália, desde sua chegada naquele País, foram acolhidos pelos capoeiristas professores. As artes dão um contribuição vital para a cidadania. Se as pessoas não cultivam sua imaginação quando ainda são bem jovens provavelmente serão cidadãos obtusos e vazias quando forem mais velhos. Acho que a art educação, deve toma um espaço particular nas repartições educacionais: Os jovens precisam aprender a pensar bem sobre as vidas que correm em particular risco de não entender como se vive em grupos. Após essa viagem foi incrível ver o crescimento dos jovens e a forma como o projeto mudou. São jovens que tiveram realmente muita experiencias traumáticas e viveram em campos de refugiados por um longo tempo, então não eram muito sociáveis, mais ao longo dos anos conseguimos ver uma mudança. Eles passaram a ser mais conectados, úteis um para o outro. Eles eram tão ferozes no começo que eu acha difícil ver eles respeitando outras pessoas. Para ouvir instruções era muito difícil. Acho que as habilidades que eles aprenderam realmente floresceram.

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Quando foram para a Nova Zelândia, eram jovens com muitas faltas na escola e, portanto, não tinham muita conexão com os trabalhos escolares, porque não conseguiam acompanhar o desempenho acadêmico dos outros jovens, mais apresentavam um potencial de liderança que surgiu a partir da sua participação na Capoeira, a Capoeira, deu a eles uma sensação totalmente nova, um sentimento de pertencimento, suas habilidades eram vistas e valorizadas, perceberam que eram reconhecidos, mudou o senso de responsabilidade e compromisso com as atividades da escola. Na Nova Zelândia, o evento acorreu dentro de um Marai, espaço tradicional da cultura Maori, povos originários da Nova Zelândia. Foi uma experiencia única para todos envolvidos pois estávamos mais uma vez diante de um fato inédito, ter três jovens de descendência africana, em espaço sagrado na cultura Maori, que mesmo distante tem elementos próximos aos africanos, isso chamou a atenção dos jovens desde da chegada, quando no Aeroporto ouviram a música e viram as artes escupidas na madeira, feitas pelo povo local. Era um momento de muita curiosidade, ver o mundo diferente, ver pessoas de cores diferentes. Era o início de um novo processo na vida dos jovens que chegaram na Austrália como refugiados, viver coisas diferentes, tudo através da Capoeira Angola. Ao retornar para a Austrália, começamos o projeto de trazê-los para o Brasil. Dentro desse processo, eles tinham que fazer uma série de exames, passaporte e tal. Durante a realização de exames, descobrimos que um deles, o Makor,

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tinha um câncer de medula óssea. Diante disso, mais exames foram feitos para diagnosticar se era benigno ou não, por isso, decidimos que ele não viria ao Brasil. Evelyn, outra jovem do grupo, teve a experiência de treinar em projetos como o Nzinga, além de viajar para Ilhéus (BA), São Paulo (SP) e Cachoeira - BA. Nessa viagem, ela criou um vínculo com o Brasil a partir do encontro com a africanidade brasileira. Assim, ela colocou o Brasil como sua casa também. Voltando para a Austrália, buscamos a possibilidade de contratar a Evelyn no projeto, dessa forma, ela se tornou a primeira jovem a trabalhar no projeto. Essa jovem nasce no projeto, aprende aprende Capoeira e com essas experiências adquiridas durante as viagens, ela passa a dar aula supervisionada nesse projeto. Hoje, ela é uma educadora, além de ser treinel de Capoeira Angola. Tornou-se uma capoeirista muito boa, cantando, tocando, jogando e o projeto teve parte nessa construção. A partir dela tivemos a constatação de que os jovens do Projeto Bantu podem ser educadores do projeto. Evelyn retornou ao Brasil mais duas vezes como capoeirista, já como adulta, visitando e criando relações mais maduras de amizade no Brasil. Ao encerramos esse ciclo, entendemos que há a necessidade de uma ação contínua no projeto para a gente conseguir capacitar mais jovens, meninas e meninos, para serem educadores. Uma aluna, a Alberta, comentou, certa vez, que seria interessante darmos aulas nas escolas e também que as mesmas também viessem em nosso projeto para dar aula. Ainda, ela sugeriu o nome “Exchange”, troca de experiências nas escolas. Como resultado, devido a sugestão de Alberta, surgiu um projeto que vem de Serra Leoa. É relevante destacar a iniciativa dessa

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jovem, bem como a importância do olhar para as necessidades do jovens e as suas contribuições para um mundo, visto que todos tem um conhecimento que possibilita o crescimento de um coletivo. A partir disso, iniciamos um ciclo de trocas entre as escolas, por meio da organização de calendário que estabelecia as datas de quando uma escola visitaria a outra, aquela que visitava ministrava a aula e aquela que é visitada se tornava aluna. Isso contribuiu para que houvesse um envolvimento maior das alunas e alunos em querer continuar e crescer dentro do projeto. Dessa maneira, fomos percebendo o envolvimento deles, já que essa troca entre escolas aumentava a autoestima desses jovens. Houve também um processo de desenvolvimento de lideranças dentro da escola, o que mostrava um maior interesse pela escola. Naquela época, havia jovens que somente queriam estar na escola no dia do projeto. Tudo isso é uma forma de produção de conhecimento e de valorização de pessoa. Ainda, era uma contextualização cultural, ou seja, mostrávamos para os jovens que existe a possibilidade de se desenvolverem profissionalmente. Assim, conseguiriamm vislumbrar e sonhar com um futuro. Desse jeito, há uma troca, que não é somente nossa, para ensinar os jovens, e vice-versa, nesse processo. Tudo isso nada mais é do que uma ponte. Depois disso, fomos convidados a ir para a Nova Zelândia instalar o projeto para trabalhar com refugiados da América Latina. Pela proximidade com a língua, os jovens se

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identificaram muito rapidamente com a Capoeira Angola e o Projeto Bantu. Além disso, o projeto fganhou corpo na cidade de Wellington na Nova Zelândia e fomos percebendo que o projeto reconectou esses jovens com os seus respectivos países. O projeto os aproxima com a cultura, os cantos, a roda, circularidade, assim como aguça nesses jovens uma reconexão ancestral. Ainda, proporciona o enriquecimento pessoal. O projeto permanece por dois anos e meio com essa população, mas, por causa dos preços das viagens, eu começo a preparar uma pessoa para ocupar esse lugar. Naquela época foi o Toby, ele deu continuidade a esse projeto, porém o projeto foi encerrado e houve um evento bem bonito para encerrar esse ciclo. Não foi doloroso, foi bonito. De volta à Austrália, eu comecei a desenhar um projeto de capacitação para jovens que estavam no projeto durante dois a três anos. Esses jovens, além das suas aulas normais, passaram a fazer cursos de capacitação de liderança para que o projeto se tornasse sustentável. Então, já tínhamos a Evelyn que já estava trabalhando sozinha, dando aulas. Ela é do Sudão, cresceu em Uganda e chegou na Austrália refugiada, ainda, aos doze anos começou no projeto e, atualmente, é treinel e educadora na Austrália. Ao pensar em multiplicar essa experiência, eu faço o Youth Leadeership, no qual se seleciona alguns jovens a cada semestre. Esse jovens também aprendem como a Capoeira reduz o trauma, trabalha com a autoestima, diminui o sentimento de raiva que é construído a partir da condição de refugiado. Ao chegarem à Austrália, com o sentimento de raiva aguçado, o leadership trabalha não só a Capoeira Angola, lida com outras

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questões: programar as aulas, como utilizar um elemento socioeducativo nas atividades, como lidar com as diferentes subjetividades, por exemplo. Cada um é único e traz uma experiência. Por isso, essa formação dura dois anos e envolve o incentivo ao estudo. Então, eles entendem como a situação deles é estrutural, como está relacionada ao sistema de colonização e da luta de poder. Além do mais, passam a entender o que possibilitou a guerra em seu país. Desenvolvemos, assim, uma percepção do processo histórico em que eles estão inseridos, ao chegar em um novo pais, se inserir um a nova cultura, passam por um processo de desconexão da sua própria cultura, e no caso dos africanas a situação é bem mais dolorida porque elas começam a usar cremes para clarear a cor da pele, a usar perucas de cabelo liso, pelo sentimento de vergonha da sua própria cor. Trabalhar a aceitação no alunos também é parte do nosso trabalho já que o que trazemos quanto prática de resistência, para mim está totalmente ligado ao pertencimento social e pessoal. Um ponto importante do projeto é que se valoriza muito a questão cultural, principalmente a língua, pois fortalece a relação com esse jovem. É interessante que temos várias jovens muçulmanas e realizamos um trabalho com elas no qual respeitamos a sua religiosidade ao mesmo tempo que apresentamos as possibilidades delas serem protagonistas de suas histórias e práticas, ou seja, trabalhamos a emancipação feminina sem agredir a cultura dessas pessoas. Temos a presença de outras meninas e de seis jovens que estão sendo preparados para serem multiplicadoras e educadoras de Capoeira na Austrália. Observem que nós voltamos ao tempo.

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[...] essa era uma forma de aplicar os valores civilizatórios afro-brasileiros, principalmente a circularidade, a qual era uma base para que essas pessoas tivessem uma conexão com a Capoeira enquanto algo que lhes fazia ir além dos movimentos, mas também como algo reflexivo.

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O projeto começa entre 2006 e 2007 e nós já estamos falando de 2020, em que já se tem multiplicadora, e produz ainda mais, para serem educadores(as) do projeto. A socioeducação, a partir da Capoeira Angola, não é só uma produção de movimento físico, mas é uma fomentadora de jovens ativistas que, diante da sua condição enquanto refugiadas, envolve também a sua condição enquanto mulher Africana na Australia. Em síntese, o projeto produz militantes para a construção da paz no mundo a partir da Austrália. Eu fui estudar outras práticas que utilizam movimentos corporais como terapia e isso me aproximou da dançaterapia. Então, comecei a pesquisar a respeito e a utilizar as suas técnicas na Capoeira. Ao investigar essa técnica, que usa a dança como movimento de cura e de reabilitação mental de pessoas, os envolvidos no projeto começaram a olhar a atividade da Capoeira Angola da mesma forma. Esse era um mundo diferente, mas era possível navegar porque a Capoeira traz muitos elementos de dança além da música. Eu fui me aprofundandonisso e fomos produzindo uma série de atividades que eram conduzidas com o uso da expressão da Capoeira Angola. Eu comecei a trabalhar só com a expressão corporal da Capoeira Angola, a expressão da ginga. A ginga como ligação, a ginga como afirmação, a ginga como base estrutural, a ginga como relação com seu próprio corpo, ou seja, ao gingar, tocar no corpo, de diversas formas, para que as pessoas sentissem o próprio corpo. Isso ficou muito bom para trabalhar principalmente com jovens e adultos, cuja condição traumática é bem aprofundada, tal como a rejeição e o risco de suicídio era muito próximo.

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Ao sentir a necessidade de aprofundar nos estudos, eu fui cursar Ciências Sociais, a parte de desenvolvimento humano, e fui investigar como a Capoeira Angola e a cultura afro-brasileira poderiam produzir conhecimento dentro e fora das atividades. Essa foi a melhor escolha, embora não tenha sido fácil, porque eu me formei em uma Universidade australiana, na língua inglesa, que não é a minha. Tive uma série de dificuldades e de mestre eu passei a ser o aluno. Não era só aluno da Universidade, dado que eu precisava de ajuda para desenvolver conhecimento a partir dos deveres que me eram passados. Então, eu retorno para os meus alunos em outra posição e começo a desenvolver pensamentos como aprender a aprender e aprender a ensinar, enquanto uma narrativa da minha visão profissional. Isso se tornou muito aguçado em mim. Entendo que poderia avançar mais um pouco e entro na especialização na qual me encontro nesse momento. Como bacharel e cursando a especialização, comecei a produzir alguns artigos e os financiadores entendem, agora, melhor o nosso trabalho. Esses artigos começam a ser aprovados e a gente começa a ver as nossas narrativas e práticas indo além da sala de aula. A Capoeira socioeducativa é desenvolvida em várias partes do Brasil e em alguns lugares do mundo. E, por uma grande tristeza, no Brasil, esse trabalho ainda não é reconhecido. Muitas pessoas estão fazendo por meio do voluntariado e doando o seu tempo. Em algumas viagens que fiz pelo Brasil, eu consegui visitar alguns projetos interessantíssimos, os quais estão dando resultados grandiosos, desenvolvendo cidadãs e cidadãos incríveis. Além de pesquisar autores e pensadores como Paulo Freire, Nelson Mandela, Abdias do Nascimento,

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eu também encontrei materiais de capoeiristas que já estavam no espaço da Universidade e produziram artigos importantes que contribuíram muito para a formação do projeto. Posso citar alguns, como o livro do professor Pedro Habib, “Capoeira, cultura e Educação”, que foi um material que eu pesquisei e achei interessantíssimo em vários pontos, os quais contribuíram bastante para a construção do que temos hoje como processo educativo da Capoeira Angola. Outra intelectual encontrada em minhas pesquisas é Mestra Janja com a tese “Capoeira Angola da escola Pastiniana” e também vários outros trabalhos que foram sendo escritos logo depois do Projeto Bantu já extremamente amadurecido. Eu acho que esses trabalhos produzidos sobre a Capoeira Angola são muito importantes para nós que trabalhamos com a Capoeira, por isso, quando eu falo da continuidade dos estudos, é no intuito de me capacitar para que eu possa dialogar com essas linguagens a partir dos estudos. Esse material, eu uso de forma explicativa para as pessoas que não são capoeiristas, que não conhecem a Capoeira. Eu acredito que meus colegas e minhas colegas devem mais do que nunca produzir o seu protagonismo para alçar novos voos, porque a linguagem da ritualidade e da tradição vai ser feita dentro da aula, mas é necessário ter uma linguagem que descreva projetos de forma a atingir um público mais abrangente. Nesse sentido, tal material produzido sobre a Capoeira nos deu subsídios quando iniciamos o trabalho nas Filipinas. Assim, começamos já realizando uma forma diferente de olhar para a Capoeira como ferramenta socioeducativa por causa do público alvo.

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Quando eu cheguei às Filipinas pela primeira vez e vejo as crianças dormindo nas calçadas, o que lembrou muito o Brasil na década de oitenta, eu pensei: temos que fazer alguma coisa para reverter isso. A Capoeira é uma ferramenta muito poderosa para trabalhar a vida desses jovens. Então, iniciou-se um trabalho com esses jovens em situação de rua. Nós olhávamos para cada um a fim de oferecer um cuidado, além da prática da Capoeira. Procuramos entender de onde eles vinham e qual era o lugar de origem para que pudéssemos dialogar com a sua história. O que leva esses jovens à rua? Sabíamos que é por questões sociais, baixo acesso ao saneamento básico, família com baixa renda, etc. Mas, além disso, outros fatores, como violência e rejeição, também empurraram os jovens para a rua. Nós procuramos entender a origem desses jovens e fomos construindo o processo nas Filipinas. É claro que as minhas idas nesse país não me dão o mérito de um trabalho solitário. Ainda, é importante falar do Jaime, que é uma pessoa extremamente dedicada e

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focada a desenvolver esse trabalho. A partir dos direcionamentos que eu lhe dirijo, ele passa isso para os jovens. Sempre nas minhas visitas anuais, eu contribuo com mais informações e dou direcionamento e orientação através da minha experiência. Alías, nas Filipinas, conseguimos trilhar os mesmos caminhos percorridos na Austrália e tivemos trabalho nas organizações governamentais, dentro de uma comunidade, e, na sequência, deparamo-nos com a necessidade de implementar também o acampamento. Depois, vimos a necessidade de implementar o encontro de jovens. Esse era um encontro anual em que colocávamos todos os jovens dos centros e jovens que treinavam na comunidade no mesmo espaço, ou seja, dentro do centro de ressocialização de jovens. Além de possibilitar uma valorização dos jovens, nesse centro, os mesmos desenvolviam uma percepção de que estavam sendo valori-zados, trazíamos os outros jovens que moravam na rua para que percebessem uma realidade da qual eles não iriam gostar de estar. Isso produziu nos jovens um maior cuidado de não cometer nenhum conflito com a lei para que não ficassem confinados naqueles espaços. Desse modo, conseguimos reduzir o número de jovens em situação de rua, alguns deles decidiu voltar para e aqueles que já viviam em uma casa e não frequentavam a escola, voltaram a estudar. Tanto aqueles que queriam produzir um comportamento para sair da condição em que estavam quanto os que estavam em uma comu- nidade pobre, percebiam que ali não era um lugar interessante de estar, assim, tomavam cuidado para não cometer nenhum delito, nenhum erro. Desde Salvador, quando o projeto começou e chega até Lins e no exterior, fomos nos

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trans- formando, mudando junto com o projeto para ir atingindo metas até chegar onde estamos , no processo de formação de jovens lideranças. O projeto de jovens lideranças nada mais é do que um processo de aquilombamento. Um espaço de empoderamento e fortalecimento de jovens, o qual nos permitiu perceber as oportunidades que a partir do processo de capacitação quanto Jovem líderes, com as experiências vivenciadas a partir da Capoeira Angola, dará para eles uma melhor visão de mundo. Quando eu cheguei na Austrália, eu comecei a dialogar com a questão do trauma conectando com a situação do Brasil e percebi que, na verdade, deveria se falar mais sobre o trauma, pois precisamos trabalhar com esse jovem que entra em conflito e não quer ir para a escola ou que causa danos e violência no âmbito escolar. Aliás, isso também é uma questão de saúde mental, por conseguinte, é um problema tanto do Estado como da comunidade. Cito um o provérbio: “É preciso de toda uma aldeia para educar uma criança”, ou seja, todos de uma comunidade devem se responsabilizar por esse jovem, acolhendo-o, além de capacitá-lo para que possa enfrentar as dificuldades. Quando pensamos na Capoeira Angola, é nesse sentido. Eu desenvolvi um método musical a partir do reco-reco, ele é tocado de olhos fechados e os alunos vão produzindo a melodia do ritmo por meio de números. Enquanto um arrasta a baqueta uma vez, o outro arrasta duas e quem vier seguida arrasta de acordo com a sequência numeral, então cada reco-reco dá um tom porque eu começo a partir do número um. Assim, eles começam a atividade de forma desordenada e partir da concentração, que é o mindfullness, concentração direta, eles começam a produzir um ritmo. E ao produzir o ritmo, é possível

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perceber a felicidade que aflora, assim observamos o resgate de autoestima, empoderamento, acolhimento, pertencimento, uma série de sentimentos que vai aflorando nesse processo. Essa atividade do reco- reco nasce porque normalmente quando se distribui o reco- reco as crianças não querem pegálo, visto que querem pegar o pandeiro, o atabaque, o berimbau, instrumentos que tem poder de som, e de presença, dessa forma, o reco-reco sempre fica por último. Assim sendo, eu pego o recoreco para mostrar que tudo deve ser valorizado, que tudo que tudo faz parte. Eu falo que o reco-reco poderia ser a professora, a mãe, uma pessoa acima delas na hierarquia para que assumam uma postura de respeito. O jovem traumatizado perde a confiança no adulto e isso gera um conflito porque haverá um desrespeito, o xingamento ou violência. Em nossas práticas, desenvolvemos metodologias para aplacar esse processo violento. Vamos formando com o objetivo de que tenham uma melhor qualidade de vida a partir de si. Nesse sentido, encerramos o ciclo da Austrália dizendo que o conhecimento é como a água de um Ribeirão: vai sem escoar buscando longas distâncias para descansar. Todavia, é um descanso que não para e vai buscando outras paredes para alcançar outros lugares, além da ideia do provérbio que diz que a água sempre encontra o meio. Portanto, vamos seguindo levando esse conhecimento da Capoeira enquanto socio educação e como processo de ligação entre as pessoas e o mundo, tal como as pessoas com as suas raízes. Quando eu falo de pessoas e suas raízes, eu falo que o mundo hoje sofre um problema social sério. Na atualidade, as pessoas atravessam oceanos de maneira muito mais fácil e se distanciam das suas bases, da sua terra natal e se denominam

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como pessoas do mundo. Desde o momento em que elas se denominam pessoas do mundo, naturalmente, fragilizam alguns pontos de si mesmas, porque acreditamos que todos nascem de um lugar, o nascer é raiz. O fato de sermos de um lugar, de uma terra, embora mudemos ao longo do tempo, faz com que sempre pertençamos a ele. Esse processo de pertencimento, que eu venho desenvolvendo na Austrália com refugiados, é a parte fundamental do nosso trabalho. Uma vez que trabalhamos com refugiados de guerra os quais foram retirados das suas terras por questões políticas e religiosas. Há, entre eles, uma desconexão com a língua, com a cultura e com as questões religiosas. Quando temos a oportunidade de se conectar com essas pessoas, a partir da Capoeira Angola, procuramos apresentar a importância dessas relações apesar de estarem distantes da sua terra. Nós relacionamos a Capoeira Angola como se ela fosse um alimento. Alimento espiritual, físico, mental, filosófico, a partir da sua prática. Então, isso desenvolve nos jovens uma outra relação consigo mesmo, com o mundo e com o lugar que vive. Até porque as pessoas discriminam bastante os refugiados, sem pensar essas pessoas estão em conflito consigo mesmo e é claro que isso ocasiona um conflito social no lugar em que estão. O refugiado fica deslocado por estar em um lugar que não fala sua língua, que não têm a sua comida, suas práticas culturais, dentre outros elementos próprios de sua cultura, tudo isso fragiliza o ser. E a resposta a isso, muita vezes, é a violência. Quando chegamos com a Capoeira Angola, ela se torna uma válvula de escape para que o sujeito coloque para fora esse sentimento de raiva, de rejeição, de não pertencimento, dado que a Capoeira Angola abraça tudo isso.

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É importante destacar que a Capoeira Angola não abraça tudo, não comporta tudo, assim ela tem que contar com a didática do educador. Eu costumo dizer que se nós distribuirmos dez canetas, da mesma marca e azuis, para dez pessoas, não teremos o mesmo resultado de escrita. Para além dos benefícios que a Capoeira por si só traz, é preciso que ela seja essa caneta nas mãos de alguém que tem uma inspiração diferenciada. O jovem refugiado, que traz uma série de traumas ou um sintoma pós-traumático por causa das violências vivenciadas em seu país, está castigado. Com a prática da Capoeira Angola, ele pode dialogar com aquilo como uma medicina, assim como no Brasil, em que os jovens vem de condições de miséria e de famílias quebradas. Tudo isso por causa da escravidão e da colonização. Quando uma criança cresce vendo um pai alcoólatra, essa criança absorve essa informação com o sentimento de tristeza, o que produz um trauma. E essa criança leva esses sentimentos para a escola. Ainda, quando a criança apresenta desatenção ou um comportamento agressivo,

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nada mais é do que uma resposta a esse trauma. Desse modo, o que devemos fazer é acolher, dar um espaço onde ele possa se sentir pertencente. E isso vai dar condição para o resgate de si mesmo. Essas formas de diálogos abrem pontes para que os jovens possam se construir de forma segura. Além disso, isso produz uma autoestima tão aguçada que os mesmos começam a olhar de cima. Não olhar de cima como soberba, mas se sentindo bem. Temos produzido esse trabalho na Austrália e tem dado resultados expressivos nas mudanças de comportamento. Em uma aula do Leadership, conversando com um jovem sobre o que ele vai escolher no penúltimo ano da escola, ele ressaltou que quer ser um educador de Capoeira. Portanto, o processo de multiplicadores é muito presente no dia a dia do nosso trabalho, o que tem nos deixado muito felizes. Ao trazer esse projeto para o Brasil, eu percebo que a discussão no espaço escolar ainda é muito atrasada. É uma discussão que não inclui os mestres porque esses não são portadores de diplomas acadêmicos, mas sim do saber empírico. Quando se discute Capoeira e educação formal, vamos lidar com elementos que não são do âmbito natural dos mestre de Capoeira. Durante a transmissão dos conhecimentos da Capoeira entre o mestre e o seu aluno, se constrói uma relação muito próxima. Eles passam a dialogar a partir do ato de contar histórias, pois, ao ensinar um movimento, não se ensina apenas um movimento, ensina-se um processo histórico e cultural, com base no lugar onde esse mestre aprendeu, com quem esse mestre aprendeu e com quem esse mestre, que ensinou ao mestre, aprendeu. Então, trazemos toda um processo histórico e geográfico que é jogado ali por meio daquele movimento.

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Quando há a passagem desse conhecimento, tornamos ancestral essa conexão, assim conhe-cemos o mundo em sua historicidade. Não é apenas um processo de educação, passamos a inserir esse jovem a um nome que possa ou não estar mais presente. Essa transmissão desse conhecimento da Capoeira Angola, de forma relacional, histórica e geográfica, é muito diferente de pensar só na Capoeira e na educação. Refletindo sobre a Capoeira e a socioeducação, consideramos a abrangência dessa discussão, porém, trazemos a relevância da inclusão dessas mestras e mestres, o que impulsiona a inserção da Capoeira na escola. Necessariamente, isso deve estar nos espaços escolares, podemos produzir isso nos nossos próprios espaços a partir de uma ideia quilombista. Ainda, podemos trabalhar os valores civilizatórios afro-brasileiros sem nenhuma ideia de conflito religioso no decorrer do processo escolar. Para transmitirmos os valores civilizatórios africanos, somos ancorados nas religiosidades africanas que podem trazer, por exemplo, elementos para o combate à intolerância religiosa. Nós vivemos hoje uma guerra religiosa, a partir da intolerância religiosa, na qual o Pentencostalismo está em uma luta de poder no espaço brasileiro para seja a religião dominante.

“Quando dois elfantes brigam, quem sofre é a grama.” (Provérbio africano)

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A Pandemia de Covid-19 (20192020)

A Capoeira é uma forte ferramenta para livrar os jovens da possibilidade do suicídio, pois permite que o jovem tenha um conhecimento de si mesmo.

Dentro desse processo em que eu pude transitar nos últimos vinte e sete anos, passei por cidades grandes e pequenas do Brasil e do exterior. Dialogando com as línguas e povos, o que me permitiu compreender o quão grande é esse rio a partir da cultura afro-diaspórica e indígena do Brasil. Ainda, pude, juntamente com os colaboradores/multiplicadores dos projetos, desenvolver papéis em diversos níveis nas vidas das pessoas. Então, nesses vinte e sete anos, eu consegui, de uma forma muito cautelosa, compreender o meu papel enquanto educador, como mestre de uma prática cultural, enquanto indivíduo e um homem preto nessa sociedade. Eu fui me permitindo dialogar com os desafios, com os enfrentamentos, assim como diz o provérbio; “O rio dá muitas voltas, porque ninguém mostra o caminho” e com os erros e com os acertos, de acordo com o tempo da minha vida, com o tempo

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social, no decorrer das gerações. Hoje, aqui me encontro, eu retorno ao Brasil para disponibilizar um espaço para a prática da cultura afro-diaspórica no Brasil, em especial a Capoeira Angola. Dentro de um olhar afrocentrado, de modo muito sucinto, com o objetivo de ter contato com crianças, adolescentes e adultos, mostrando as possibilidades que essa prática pode permitir para eles, apesar desse contexto desfavorável no qual vivem. Aliás, pretendo falar um pouco da minha experiência na Austrália na qual eu tive uma imersão na questão do trauma com refugiados, por isso, eu agradeço muito à STARTS, uma organização que abraçou o projeto Bantu, e que trouxe a possibilidade de dialogar com essa linguagem do trauma. Diante disso, eu começo a ter um olhar muito mais aguçado sobre o comportamento dos jovens aqui no Brasil, assim entendo que também vivenciam uma questão traumática resultante de suas histórias repletas de violência direta e indireta, que esse jovens sofrem no Brasil devido à relação familiar ou ao próprio cotidiano na comunidade em que vivem, principalmente jovens pretos, que vem de uma classe desfavorecida, desse modo, automaticamente, se tornam vulnerável. Eu passei a compreender melhor as suas dores e os seus momentos. Embora eu não tivesse uma concepção de julgamento diante do comportamento desses jovens, quando eu retornei, o meu olhar se encontrou muito mais afinado sobre isso para que eu pudesse compreender melhor as possibilidades que a Capoeira Angola permite. Serei sempre grato à STARTTS por ser essa ponte de ligação com essa

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narrativa do trauma e da psicoeducação. Aliás, eu tive que estudar bastante para melhor compreender isso. Então aos 40 anos voltei a estudar e fiz um curso técnico designado ao trabalho social, (Diploma em community Development) traduzindo seria Diploma em Desenvolvimento Comunitário, e três anos depois resolvi encarar a faculdade fazendo uma graduação em (Comunity Well-being and Social Science), ou seja, bem estar comunitário, e Ciências Sociais, hoje eu me encontro tentando achar tempo para terminar uma especialização na mesma universidade Charles Sturt University, mas está difícil achar tempo para concluir, mas isso se dará quando for o tempo, assim como dizem os mais velhos que o tempo é o senhor das respostas, então vou seguir aguardando as respostas sobre esse processo de aprendizado. Temos diversas formas de buscar o caminho da comunicação, esse meu diálogo através desta escrita tem também o propósito de sugerir aos meus colegas a se aproximarem dessas possibilidades de acessar esse espaço de oportunidade, que é um mercado promissor para um trabalho socioeducativo a partir da Capoeira. Quando isso é feito de forma organizada, de forma cautelosa, as possibilidades surgem e lhe remetem a desenvolver outros pensamentos e outras compreensões de passagem de conhecimento e aprendizado. Eu espero que esse livro possa atender os anseios de leitura de quem está buscando dialogar com esse contexto da Capoeira Angola e que ele também seja uma linha de conexão. Aliás, na existência

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O projeto os aproxima com a cultura, os cantos, a roda, a circularidade, tal como aguça nesses jovens uma reconexão ancestral. Ainda, proporciona a eles o enriquecimento pessoal.

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de críticas, que as mesmas impulsionem que continuemos nossos estudos, nossas vivências por meio desses saberes. Não para por aqui. Enfim, estaremos sempre buscando construir melhores formas de reduzir as desigualdades e talvez, ao fim da vida, ainda iremos ficar em dúvida de muita coisa. Que esse livro alcance as pessoas que mais precisam ter essa leitura na mão, além dos educadores que lidam com a Capoeira como arte educação, como atividade socioeducativa dentro dos seus espaços em que atendam crianças e adolescentes em vulnerabilidade, enfim, que esse livro seja essa ponte, fazendo jus ao provérbio que diz: Em tempo de crise, os sábios constroem pontes, enquanto os tolos constroem muros. Por tanto quero acreditar que vivemos em espaços de trocas e como não acredito que existe verdade absoluta neste espaço de leitura trago sugestões de saberes que funcionaram e vem funcionando dentro e fora das minhas atividades. Parafraseando o provérbio do Mestre João Grande, digo:

“Eu sou fruta madura, que cai do pé da árvore lentamente, que procura terra fresca para ser fruta novamente.”

Eu levei anos observando como a musicalidade dentro da prática da Capoeira Angola, com jovens, seria na construção do diálogo, entre o que os olhos vêem e o que o corpo sente, como que se dar a relação com a prática, a partir

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daí. A Capoeira, enquanto movimento pode ser rapidamente relacionada ao esporte ou coisa similar, quando entra o elemento música, surgem diversos questionamentos sejam eles no lado religioso, ou ofensivo a depender da letra ou linguagem utilizada. No Brasil, temos diversas experiências, na qual muitos jovens que pertencem a famílias, ligadas à religião neopentencostal, retiram sua filha ou filho da atividade alegando que aquela música é parte de feitiçaria/bruxaria, ou propriamente dito o Candomblé, só que na verdade, não é nem a música em si, que está causando aquele desconforto, é nada mais do que a má informação, alimentada pelo preconceito e racismo, passado como formação de poder e controle sob as pessoas. Sem saber que dentro da musicalidade da Capoeira Angola, em linguagens diferentes, são transmitidos diversos contextos de formação humana e de cidadania, assim com dialogam direto com a história e a realidade da própria pessoa, de forma bem intrínseca ao ponto de as pessoas se relacionarem com a Capoeira, como uma filosofia de vida. Na minha experiência, trabalhando com jovens refugiados de religião muçulmana, tivemos diversos momentos que a linha muçulmana não permitia cantar de forma alguma, e outras ocasiões especialmente no período do Hamadan por conta do jejum no qual eles não podem fazer nenhuma atividade, seja musical ou corporal. Trago esse tópico para dialogar com o processo do reconhecimento de que mesmo para nós que não temos nenhum tipo de restrição imposta sobre a música, ainda assim existem algumas letras ou músicas, que não nos atraem

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para fazer um jogo bonito e se conectar de forma intríseca. Dito isso dentro da nossa metodologia, nós não excluímos nenhuma música, mas selecionamos algumas que dialoguem com o nosso contexto de aula, e que levem para os jovens sempre um sentimento de reflexão e, posteriormente, de conexão com a música, mesmo que seja em um primeiro momento só com a melodia ou ritmo e não com a letra, pois esse exercício permitirá que exista um processo transitório nessa relação, até que a letra da música seja compreendida e contextulizada na sua prática, e quiçá no seu dia a dia. Por experiência, tanto no Brasil, como no exterior esse método vem funcionando sem causar discussão de cunho religioso ou preconceituoso, produzindo um sentimento de pertencimento. Incluo, aqui, algumas abordagens musicais que usamos repetidamente em nossas atividades:

A Música • Melhora a autoconfiança. • Possibilita trabalhar a autoestima. • Aumenta o estímulo para alcançar objetivos. • Melhora a autoexpressão. • Camugerê: cumprimento entre indivíduos e o mútuo respeito. • Vem jogar mais eu: parceria e a relação de respeito para com as diferenças.

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• Por cima do mar eu vim, por cima do mar eu vou voltar: a existência; a importância de se perceber como alguém e a importância da origem/raiz. • Ô sim, sim, sim; Ô não, não, não: os valores das coisas as quais temos hoje e amanhã talvez não tenhamos mais. • Tira a mão do balaio alheio: o respeito aos pertences dos outros; sempre dar ou pedir permissão; respeitar a privacidade de cada um.

Instrumentos, caminhos e transição

Com o passar do tempo trabalhando com jovens em vulnerabilidade, fui vivenciando momentos inusitados na forma em que eles se apresentam com os instrumentos pela primeira vez, na maioria das vezes o instrumento se torna a sonoridade de forma bruta, expressando o sentimento de tristeza, raiva, fome, dor saudades... Assim como em outros momentos ao tocar um instrumento pela primeira vez ele ou ela se emocionaram, expressando a alegria daquele momento. Tanto no Brasil, quanto na Austrália, Filipinas ou Estados Unidos, lugares onde estive mais presente nos últimos 20 anos, trabalhando com jovens, na rua, em escolas, e prisão de menores, em todos esses lugares o comportamento traumático está presente, é pouco notado, o que percebemos sempre é o julgamento sob o comportamento daquele jovem, sendo chamado de diversos

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nomes hoje identificados como bullying, precisamos quanto educadores ter nossa percepção aguçada, para entender e dialogar com a realidade desses jovens, no sentido de que a sua história pregressa, presente ou cotidiana, produz o seu comportamento diante as suas relações construídas nesses espaços. Na maioria dos casos até se agravando por conta da falta de percepção, por tanto em nossa atividade no decorrer dos anos desenvolvemos dinâmicas que dialogam com esses comporta-mentos de modo que não expressamos verbalmente mais percebemos e direcionamos a atividade nos moldes que atendam a necessidade daquele comportamento. Dinâmicas como fechar os olhos e entrar no ritmo após o chamado do nome de um instrumento, tocar o instrumento em momentos específicos, de acordo com o instrumento que está em mãos, ensinar o colega a trocar de instrumento, fazer ritmos com seu próprio corpo, fazer o som do instrumento com a boca, andar de olhos fechados para encontrar uma pessoa com o instrumento similar ao seu, todas essas dinâmicas, produzem uma série de resultados, como a correlação entre a música e construção das relações, autodisciplina, paciência, sensibilidade, coordenação, e a capacidade de memorização e concentração. Assim como baseado na minha experiencia através dos anos, trago como afirmação o poder da musicalidade com jovens hiperativos. Brescia, em sua pesquisa diz que: A música, como um instrumento terapêutico na educação, permite desenvolver a sensibilidade, a criatividade, o sentido rítmico, a imaginação, a memória, a concentração, a autodisciplina, o respeito pelo

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outro, a socialização e a afetividade, contribuindo também para uma efetiva consciência corporal e de movimentação. (Bréscia, 2003).  Concluo dizendo que a música possui um poder incomparável sobre o corpo e a mente, sendo por vezes, usada como método de relaxamento. A musicoterapia trabalha o ritmo, a melodia e a harmonia e tem a capacidade de estabelecer relações entre os pares. Entendo que é extremamente importante termos essa perceptividade para melhor dialogar com outras capacidades dentro das nossas atividades e poder responder de forma positiva as necessidades dos nosso educandos, como bem diz o provérbio africano: conhecimento sem sabedoria é como água na areia, portanto que utilizemos os nossos saberes e conhecimentos munidos da sabedoria para que possamos obter resultados melhores. Que Olorum modupé!

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Referências

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Esta obra foi impressa no verão de 2023, com capa em papel Supremo 250g e miolo em Pólen Bold 90g, nas fontes Stone Sans e Franklin Gothic Demi.

Rua da Ferrovia, 47 Metropolitana, Núcleo Bandeirante Brasília – DF CEP 71730-050 @editoraaaldeiadepalavras E-mail: [email protected]

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